sexta-feira

As boas festas

Natal nos pega pelo pé, cria crostinhas de açúcar no coração e nos obriga a façanhas em que normalmente não nos jogaríamos de cabeça como nesses dias. Natal é um pouco covardia, mas é também alegria, que rima, e vontade de fazer coisas inusitadas. Alguns bebem demais, outros choram piscinas diante da família reunida; outros ainda comem demais, e talvez seja esse o resultado mais frequente. Mas quando chega o 24 de dezembro, a gente lembra de presentes que não comprou, corre ao shopping, que nos recebe de braços abertos para comprar mais e mais, e de punhos fechados para nos dar mil e um esbarrões no povo que vaievem sem olhar para onde anda, porque não dá pra ver onde anda. Na hora dos presentes, amigos ocultos ou exibidos, ocorrem alguns malentendidos que no entanto não conseguem empanar o brilho da estrela que pisca na árvore. No fim todo mundo se abraço, ri, espalha papel e sacolas pela casa, e como o dia que entra é feriado, não tem empregada pra arrumar e fica tudo assim mesmo, que ninguém é de ferro. Dorme-se até o meio-dia ou mais, e aí continua a comilança, o almoço cresce na mesa, a toalha mancha de vinho, cervejinhas, refrigerantes das crianças e molhos variados, mas tudo deve ficar na santa paz da sujeira abençoada. 
Os mais religiosos se revoltam levemente (cada vez mais levemente) com tamanho materialismo, mas ficam na deles (ou não, caso em que a família tenta ignorar qualquer voz dissonante, já que todos estão muito satisfeitos). Mas o tempo passa, as horas estão mais rápidas agora (dizem) e daí a uma semana será janeiro, entrando triunfante depois de mais uma noitada de comes e bebes, dança, passeios, farras homéricas ou moderadas. Praias cheias, ruas nem tanto, e a perspectiva de tudo recomeçar como era antes, porém enfeitado por sonhos novos.
Essas seriam as boas festas que costumamos desejar aos amigos e conhecidos.
Para alguns, nem tão poucos como se imagina, as festas acontecem numa solidão de tons menos ou mais sombrios, mas às vezes até bem-vinda.
Não faz mal. Que cada um tenha o Natal e ano novo que deseja, que lhe faz bem, e que o ano comece tranquilo. Melhor que isso, só no ano que vem.




Humor quase negro, sem direito a cotas





 

Diz Antônio Cícero que “só se sai da vida pela janela”, porque ninguém quer sair dela. Mesmo os suicidas, que se encarregam eles mesmos de abrir a tal janela, não resolvem isso assim de uma hora para outra. Desistir da vida é um processo sofrido e elaborado, e às vezes tão demorado que dá tempo até de subir ao topo da torre Eiffel


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 Brasilidade e suas variantes


Existe gente mais cínica do que político brasileiro?
Será que a vocação política implica cinismo?
Que tal mandar a raça toda pro Japão e submetê-los às leis de lá, onde a barra pesa de verdade?
Político japonês costuma praticar o haraquiri, quando é apanhado com a mão na massa ou a boca na botija. Não seria um destino justo pra essa gentalha? Parlamentares do Brasil estão se dando aumentos astronômicos – mais de 60%. Ministros e Dilminha vão ter mais de 100%, segundo as notícias que rolam na mídia. Já os professores...

Enquanto isso, o Ficha Limpa fez água. A Justiça brasileira, com pouquíssimas exceções, também merece ser banida para algum lugar de autoridades menos cúmplices dos bandidos que elegemos ou dos que são escolhidos por eles.

Doce ultimato


                    

— E então? – perguntou Luana, assim que ele chegou.
Lopes olhou para ela como quem tem muita coisa a dizer, mas não disse nada. Chamou-a para irem à cafeteria de costume, na torre do shopping, ela ansiosa, ele um pouco misterioso. Mas logo que sentaram para conversar ele sorriu.
— Está tudo bem, garantiu. Ele entendeu.
— Entendeu? Como assim? O que foi que ele disse?
— Que sim, que entendia, que essas coisas podem acontecer...
— Logo que você falou? O que foi que você disse a ele?
Lopes franziu a testa e acendeu um cigarro.
— Eu só expus a situação, o que estava acontecendo entre nós. A princípio ele ficou calado, sério, e eu pensei que fosse reagir mal. Mas uns minutos depois começou a fazer perguntas.
— Perguntas? Que perguntas?
— Ah, bobagens, banalidades... Eu até estranhei a reação dele, mas depois percebi que estava ganhando tempo para se controlar.
Luana desviou os olhos para um ponto indeterminado. Parecia meio decepcionada e ele notou.
— Pensei, disse ela lentamente, que fosse ficar bravo, enlouquecido, furioso. Ele é mesmo imprevisível. Estamos casados há onze anos. Sempre pensei que fosse louco por mim...
— Estão casados?
— É, quer dizer, ainda não nos divorciamos, você sabe.
Lopes apagou o cigarro com uma ruga na testa.
— Se você quer muito saber, acho que ele ainda é mesmo louco por você. Ficou falando abobrinhas enquanto eu esperava uma resposta mais clara, uma solução para o impasse...
— Impasse? Você chama nosso caso de impasse?
Ele sorriu de leve e teve vontade de beijá-la ali mesmo, mas se conteve.
— Não, bobinha, não estou falando do nosso caso, estou falando da situação. Ele demorou a se definir, acho que não queria bancar o troglodita. Ou então segurou a onda pra não parecer um fraco, manter uma atitude digna. Houve um momento em que pensei que ia desmontar, ficou de cabeça baixa...
— O Luan? – Ela perguntou com um leve sorriso.
— O Luan. Ficou parado olhando para o chão como quem procura uma saída. Mas depois voltou a me encarar e começou a falar da vida de vocês, de como andavam distantes ultimamente.
— Culpa dele, que está sempre viajando para o pai, tratando de negócios em outros países. Deus sabe quantas vezes desejei um homem perto de mim...
— Agora você tem um em tempo integral.
Ela ignorou a dica.
— Mas foi só isso que ele disse?
— Quase só isso.
Outro silêncio embaraçoso.
— Eu devia ir ao encontro dele, você não acha?
— Se você acha que deve, vá – Lopes respondeu de cara fechada.
— Tenho que voltar lá para pegar minhas coisas, tomar minhas providências.
— Claro. Quer ajuda?
— Pode parecer afrontoso voltar lá com você para fazer a mudança. Não quero que ele fique ofendido, magoado. Chega a separação, que ele nunca esperou. É, tenho que conversar com ele, afinal ainda é meu marido.
— Ainda? Me diga uma coisa, você está arrependida?
Durante uns segundos, houve um silêncio cheio de ambiguidade. Depois ela olhou nos olhos dele e fez um afago em sua mão.
— Você é o homem mais inteligente e mais sensível que já encontrei em minha vida. – E acrescentou — Te ligo mais tarde – antes de sair.
Lopes pagou a conta e foi ao cinema. Precisava muito de um happy end.

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‘A Terra é um planeta que deu bicho’

 
                                                          Foto Brassai.

Se todo mundo pensasse a sério nessa verdade comprovada cientificamente, a humildade e a simplicidade teriam mais chance de ser apreciadas pelas pessoas. Não falo em termos de virtudes místicas veneráveis, capazes de formatar santos para altares futuros. Não proponho humildade como subserviência ou submissão, nem simplicidade como simplismo ou ingenuidade.
De certa forma, penso o contrário. Humildade aqui tem o sentido de consciência dos próprios limites, e por isso valoriza a solidariedade, é capaz de empatia e dispensa a arrogância. Nesse sentido, humildade é saber que se é tão bom como qualquer outra pessoa, ainda que se conheça profundamente algum assunto, tenha conquistado uma posição de destaque na carreira ou ganhado prêmios por alguma realização.
Sucesso pessoal, prêmios e reconhecimento não têm nada a ver com isso. Admiração e aplauso são incentivos necessários e fazem bem ao coração, contanto que os aplausos não venham de claques pagas para aplaudir quem não fez nada para merecê-los. Nesse caso, tudo não passa de uma mentira pregada a si mesmo – um tipo de mentira que costuma deixar um gosto muito ruim na boca de quem a pratica e o ego secretamente esfolado.

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Maiakovski por Gal Costa





Vida mansa


                                                                 Imagem Manolo Valds.


Sentou para escrever e respirou fundo. Mas quando ia começar a pôr na telinha o que lhe ia n’alma – enfim uma chance de usar essa expressão! – o telefone tocou. Era a Geruza, amiga dos tempos do colegial (colegial era então o nome do ensino médio), que tinha descoberto seu telefone pela Norma, lembra da Norma?, que encontrou no supermercado. Ficou tão contente, a Geruza, e ela também, porque afinal não é todo dia que se recebe uma chamada assim para falar de um pedaço da vida que se desfrutou junto... Aí o celular chama. Pede licença à crise saudosista da Geruza e atende. É o bombeiro avisando que o orçamento do material ficou em seiscentos e oitenta pratas, o que somado à mão-de-obra dá um total de mil e quinhentas pesetas. Despacha o homem sem fechar nada, que isso não é coisa pra ser decidida apressadamente, e volta à Geruza, já recuperada e resgatada da beira das lágrimas (sempre foi tão sentimental, essa minha amiga) e agora conta novidades quentíssimas sobre a Marly, lembra da Marly? Pois é, minha filha, deixou o Leo, lembra do Leo?, e agora está sabe com quem? Você não vai acreditar.
Você – no caso ela – nem quer acreditar, porque isso não lhe interessa a mínima. Pra cortar o papo sem empanar muito a alegria da Geruza, diz que está atrasada para a hora do dentista e marca um encontro pro sábado à tarde no shopping.
Senta de novo para escrever e respira fundo. Na quarta linha precisa levantar para abrir a porta pra Rosa, a empregada, que esqueceu a chave. Pede a ela que atenda o telefone e a porta e anote os recados.
Senta de novo etc. Pela altura da décima linha chega-lhe aos ouvidos um estardalhaço do que parece um tiro, gritos e vidro quebrado que a arranca da cadeira de um salto, achando que chegou sua hora de testemunhar a manchete da seção policial do dia seguinte. Corre à janela, mas ainda não vai ser dessa vez. Foi só um pneu estourado, os gritos são de dois motoristas alterados que nem sequer sacaram armas nem têm mesmo cara de quem vai sacar, e os vidros são lanternas em cacos sobre o asfalto.
Volta ao escritório e dessa vez respira fundo antes de sentar, pra ver se dá sorte e também pra reduzir o nível da adrenalina. Mais serena, senta de novo. Num relativo e abençoado silência de quinze minutos consegue fechar duas laudas no monitor, mas aí Rosa chama. É o carteiro, tem que assinar. Podia ser você mesma, viu? Quando for pra assinar... – ia dizendo, mas Rosa já sumiu da vista. O carteiro tem pressa e se irrita visivelmente porque ela não trouxe logo a caneta. O senhor não tem? – ela pergunta, e ele nem responde, se limita a lançar um olhar de desprezo de quem ouviu uma bobagem dessas que a gente nem responde. E como Rosa voltou para o tanque e de lá não escuta chamar, ela mesma vai para dentro pegar a caneta que teoricamente fica sempre no bloquinho junto ao telefone, no momento desaparecidos ambos. Procura dali e daqui, percebe que está mais preocupada do que devia com o estresse do carteiro, e resolve não se apressar mais. Como sói acontecer em tais casos, acha a caneta assim que relaxa a musculatura espatular e solta as cervicais. Volta à porta, à qual o carteiro se recostara acintosamente e agora coçava a barriga com aparente volúpia. Pega a folha amassada que ele lhe estende e assina bem devagar, pra ver a reação dele, que lhe dá as costas com a brusquidão de quem odeia.
O telefone toca, e como passava por ele bem na hora, atende. Não devia, porque é tia Malu, a solitária, que precisa contar a alguém o que de rotineiro lhe aconteceu na véspera, as gracinhas de sua cadela decrépita e a evolução dos males que achacam sua vida, o que leva em média quarenta e cinco a sessenta minutos cravados. Mas o que significa esse tempo, afinal tão curto, pra quem trabalha em casa, nessa vidinha mansa – uma vantagem que não é pra qualquer um, não é mesmo? É sim, tia, ela murmura abafando um suspiro. Nada como ter uma sobrinha tão boa como você, você sempre foi uma pérola, e me conhece tão bem, sabe desta minha vida, como fico sozinha, você nem imagina. Os filhos são todos muito egoístas, só pensam em suas famílias, suas ocupações... Têm que ganhar a vida, tia Malu – mas tia Malu não escuta, toda mergulhada em seus queixumes. Corta a arenga com um beijo e volta ao computador.
Onde estaria mesmo? Nem bem reencontra o fio dos pensamentos, ouve a campainha de novo, mas dessa vez decide ignorar tudo que não seja o texto a sua frente. Três minutos depois, porém, Rosa lhe aparece com uma cara estranhíssima, seguida de um sujeito atarracado e armado e de outro, comprido e de touca ninja. 

quarta-feira

Custo de um parlamentar no Brasil

Só não concordo inteiramente com o prólogo, não só quanto ao sentido: o português está lamentável. 
Mas que o fato em si é de entristecer, isso é mesmo. 


Vê se pode:



Menino teu



Esse garoto que às vezes te visita
vive uma práxis
de outros dias
e se imiscui em teu cotidiano de aço e vidro
com sua bola de meia
num pomar de terra e verde
e seu balanço de corda.

Esse menino magro te perturba
e te renova
como se fosse o rosto da memória
e ainda te faz sorrir entre os sisudos.

É curioso, o menino, e traz questões
que não dizem respeito
ao homem sério que agora te tornaste.

Enquanto imóvel ponderas papéis de tuas pastas
ele se agita e brinca e mexe em tuas gavetas
e sem te consultar
sopra em tuas letras a brisa de outras tardes
e sensações de afago e de varanda.

Esse garoto que às vezes te visita
à noite em tua cama
canta baixinho cirandas e prelúdios
e te chama
porque em verdade
não queres que ele se perca de tua vida.
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Tempo tempo tempo

As visitas aos amigos andam em baixa. O tempo começou a rugir de novo, ronda o relógio adiantando os ponteiros e não me deixa fazer tudo que gostaria. O tempo às vezes morde a gente, não admite ser contrariado. O tempo é também um ditador, e às vezes lembra um outro, histérico, aquele do bigodinho.

terça-feira

O dia e os dias


Hoje, por tradição, é dia de lembrar os mortos. Coisa que todos seremos um dia. 
Não defendo, não prego as crenças correntes sobre o que a morte significa. Estar morto, não existir mais entre os vivos, significa um corpo em decomposição ou em cinzas. Se a morte se limita a essa triste realidade, então o dia de Finados deve servir para lembrar de quando os finados eram vivos. Cultuar aqueles que amamos e se foram, homenagear os atos meritórios, embalar boas recordações, olhar retratos e lembranças que eles deixaram conosco, e repaginar ou esquecer o que deixaram de mau ou prejudicial.
Mas se a morte for mais que isso, se é verdade que ela libera as pessoas para seu verdadeiro destino, se há uma vida depois desta aqui da terra, então a coisa muda completamente. Além da saudade, do culto e da admiração ou desprezo que eles mereceram em vida, é bom que haja uma oração, algum tipo de reflexão mais atenta sobre o que podem ser agora. Contanto que não envolva fanatismo ou intolerância, a hipótese da fé é das coisas mais bonitas que podem acontecer a alguém.

 

Vale a pena

Veja esse blog, seus vídeos e poemas.

domingo

O coração resgatado



Janaína Amado (org.) Jacinta Passos, coração militante. (2010) Salvador: EDUFBA e Editora Corrupio.

Fico imaginando o que significou para a historiadora Janaína Amado a pesquisa, organização e preparação da história de sua própria mãe, cuja obra ameaçava se perder. Num volume de 574 páginas, Janaína registrou o que ela escreveu em vida – seus quatro livros publicados, obras esparsas, textos de vários gêneros, manuscritos em cadernos (dos quais muitos não foi possivel recuperar) e os textos jornalísticos.
Além da obra escrita, o livro traz a biografia detalhada da militante Jacinta, cujo texto, uma narrativa preparada com carinho e seriedade, foi enriquecido por inúmeros depoimentos de parentes, amigos, correligionários e tanta gente que teve contato com ela. Descreve ainda as dificuldades e o sofrimento da poeta e jornalista, de quem ela diz, na apresentação da obra:
“Pagou um preço altíssimo por derrubar tantas barreiras, na contramão da vida, na construção do caminho duro de seus ideais. Afirmou-se como mulher e intelectual, mas sua existência foi muito difícil, marcada por rupturas, fortes desilusões, crises psicológicas. Foi excluída, perseguida, presa, internada em sanatórios.”
Tais dificuldades, que terminaram por afastá-la da mãe ainda bem cedo, na infância, não impediram que sua filha preservasse, com cuidado e carinho, a memória e o trabalho dessa mulher singular, que literalmente deu a vida por uma causa.  
Janaína coligiu ainda a importante fortuna crítica referente ao trabalho de Jacinta, textos assinados por intelectuais de importância em sua época, como Antônio Cândido, José Paulo Paes, Sérgio Milliet e muitos outros, assim como textos mais recentes, preparados especialmente para figurar no livro.
Quero agradecer a Janaína a dádiva de conhecer esse livro, uma edição bem cuidada, perfeita e belíssima, não só pelo magnífico conteúdo e pelo trabalho gráfico de alta qualidade, como pelo carinho com que foi preparado. Um livro que testemunha o que podem o amor e a dedicação, e agora brilha aqui em minha estante. Obrigada mesmo, Janaína, também pela delicadeza do presente e pela alegria que me deu.



sábado

Ser tímido é...



A timidez costuma interferir na comunicação entre as pessoas, especialmente se for em excesso. Uma das causas disso é uma delicadeza de espírito do tipo que deixa você invisível. Acontece, quando se teme mais que tudo magoar alguém, abusar de sua paciência ou incomodar quem parece distraído ou ligado em outras coisas que não o assunto que nos interessa no momento.
Frequentemente a raiz disso tudo é mais funda do que se imagina e invisível a olho nu, porque quase sempre alguém se torna assim tão tímido por conta de uma baixa autoestima que o torna inseguro e limita sua capacidade de avaliar as coisas de modo mais objetivo e/ou pragmático. E a baixa estima por si próprio pode ter sido causada por interferências externas, bullying severo, violência doméstica ou intenso sentimento de medo sofridos na infância.
O tímido é, quase sempre, alguém de pouco senso prático e baixo poder de decisão. O que ele deseja torna-se sem importância e pode mesmo ficar momentaneamente esquecido, diante de interesses e desejos alheios, que sempre privilegia. Paga um preço muito alto por isso – quase sempre frustrado, e em muitos casos ressentido. Sente-se passado pra trás, quando na verdade ele mesmo se colocou nessa posição. Pouco importa: o sentimento de mágoa por ter sido desprezado é o mesmo. Continuará sempre cheio de dedos para lidar com o próximo, o que vai desicentivá-lo de conseguir o que no fundo mais deseja.
Esse ser contraditório e sofredor pode também se explicar por algum tipo de fobia social, pré ou pós adquirida aos traumas psíquicos por que passou ou passa. De certa forma, esse seria um resultado mais extremo o fenômeno.
Mas existem formas de timidez que fogem a essa fórmula. São traços de personalidade, características de temperamento que não interferem no comportamento dito normal nem impedem o tímido de se realizar na vida. Nesses casos, a timidez pode ser encantadora, confunde-se com ou torna-se a delicadeza que todos desejamos encontrar no próximo. Coisa tão mais desejada quanto mais rara vai ficando

 
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All the things you are


O que tudo isso quer dizer?

Começou com a pobreza extrema da maior parte da população, o que, como todos sabemos, leva inevitavelmente a  jeitinhos para sobreviver. Não falo só de nosso século nem do século passado, mas de um estado de coisas que começou com a colonização e piorou com a chegada de um povo de pele escura, arrancado de sua terra de origem para servir às classes mais abastadas, mas nada esclarecidas.
Daquele tempo até aqui, a civilização do jeitinho desenvolveu um know-how admirável no Brasil e se estabeleceu de vez entre um número crescente de pessoas, obrigadas a levar a vida de forma precária, inventando expedientes para não morrer à míngua. As favelas  surgiram e grassaram nas cidades. Os números falam por si, porque ninguém escolhe morar na favela. Famílias inteiras tiveram que se adaptar à vida suada e desorganizada que é preciso enfrentar quando se nasce no meio do caos, urbano ou não. É preciso comer e vestir, dar de comer à família. É preciso morar em algum lugar. Assim como é preciso de alguma forma ter um refresco na vida, uma diversão qualquer, um jeito de se manter à tona para respirar.
Segundo a CIA World Factbook, o Brasil de 2009 estava em 65º lugar numa lista de 145 países, quanto ao número de habitantes abaixo da linha de pobreza (população de 198.739.269 x31%= 61.609.173,39 de miseráveis).
O ranking citado pelo Relatório de Desenvolvimento Humano de 2004 analisava as condições de 177 países quanto ao bem-estar social:
“A desigualdade na distribuição de renda no Brasil o deixou na quarta posição entre os países mais desiguais do mundo, atrás apenas de Namíbia, Lesoto e Serra Leoa, todos na África Subsaariana, continente com os piores indicadores sociais do mundo.
O Brasil se iguala aos países africanos na fatia que os 10% mais pobres têm na renda nacional: apenas 0,5% [...]. O que evita que o Brasil seja o primeiro em desigualdade é a renda dos mais abastados”: os 10% mais ricos ficam com 46,7% da riqueza brasileira, enquanto na Namíbia, por exemplo, eles têm 64,5%.*
Dirão alguns experts em ciências ligadas ao social que muita gente de grana adere a recursos escusos por falta de ética e por maucaratismo. Isso existe mesmo – temos exemplos diários aos montes. Sonegadores, golpistas, achacadores, corruptos contumazes de todas as classes ou até assassinos e agressores, matadores covardes de mulheres, abusadores de menores, farinha do mesmo saco. Ter dinheiro não torna uma pessoa decente, porque não é o colégio de elite nem o conforto por si sós que definem o caráter de alguém. Personalidades deformadas existem em qualquer classe em todos os países do mundo.
Mas há gente que, seja qual for o nível de renda, ainda age como se vivesse na penúria em que viveram antepassados seus. Antes de subir na escala social, a família comeu o pão que o diabo amassou e teve que lançar mão do famigerado jeitinho para sobreviver. Essa mentalidade passa de geração em geração, pelo simples fato de que é em casa, com os pais e os avós, que se forma o caráter das pessoas.
Não é difícil entender que muitos descendentes seus tenham generalizado um comportamento não-ético e aceitem ainda, como gestos naturais, jogar lixo na rua, furar fila, dirigir alcoolizado, desrespeitar a lei do silêncio, praticar o gato, ultrapassar pelo acostamento ou estacionar em lugar proibido, para dizer o mínimo. "Tirar vantagem em tudo" foi um lema divulgado há menos de 20 anos numa propaganda que marcou época na mídia. Vai levar muito tempo pra mudar isso, se é que vai mudar algum dia. Talvez o Brasil esteja mesmo fadado a ser eternamente o país do jeitinho. Mas será só o Brasil?

Dicas e sínteses


Duy Huynh. Círculo completo.


Se você se interessa por artes plásticas, visite esse site e conheça, um a um, os quadros de Duy Huynh. Vale a pena. O vietnamita lembra um pouco o americano Justin Bua, por alguns temas. Mas sua pintura é mais lírica, mais fluida, com toques de surrealismo. Às vezes tem-se a impressão de que ele conviveu com Magritte também.

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                    A partir de 'O legado de Lula', segundo The Economist ...

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... o melhor é votar em Marina, que tem vida própria.






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Na Folha: Paul McCartney manda carta de apoio a George Michael, preso por dirigir fumado.


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Minis


Suas últimas palavras: não está carregado.



Sopa fervendo. Precisou implantar outra língua.


Tão frio que ganhou um caixão de aniversário.


Além das palavras

Solidão. Foto sem menção de autor.


Ninguém no mundo dos homens pode se considerar de todo amadurecido antes de perder alguma coisa ou pessoa que tenha representado muito em sua vida – um amigo, um amor, uma crença, uma certeza ou – como agora se tornou tão frequente, com os últimos acontecimentos da política – uma ideologia pela qual lutou e sofreu. É uma certeza dura e fria, que se adquire depois que muitas outras certezas se foram.
Uma grande perda faz com que a gente se perca um pouco de si mesma. É como se nos tirassem um pedaço, um lugar próprio, um alicerce. Como uma árvore sem raiz, uma construção sem fundamentos de repente. Grandes amigos são parte de nós, e quando Caetano diz que a amizade é superior ao amor, sabe o que está dizendo: perder um amor é um verdadeiro trauma, mas em geral o tempo se encarrega de amenizar esse sofrimento. Ver desaparecer um grande amigo, no entanto, daqueles fraternais, com que se conta pra qualquer ocasião, daqueles difíceis de encontrar, mas que às vezes nos são concedidos, é uma dor que nunca mais tem fim. E quando se perdem ideais que nos davam força e razão de lutar e viver, a vida parece vazia.
Ninguém deseja perdas, por menores que sejam. Mas a vida se encarrega de provê-las, e elas acontecem e nos afetam. Essa inevitabilidade, essa impotência diante do irremediável nos transforma, para o bem ou para o mal, em pessoas diferentes. O resultado final depende em cada um, de como elabora e consegue lidar com os golpes que a vida desfere. Depende das reservas subjetivas e da qualidade do caráter do perdedor.
Os livros de auto-ajuda nos recomendam uma atitude positiva diante da vida, e de tanto repetir isso ficamos sugestionados. Mas nem todos podem ganhar. A vida real não manda cartão de boas festas nem respeita o pensamento positivo. A vida real não tem a menor educação; golpeia quem encontra pela frente sem nenhuma razão e sem pedir desculpas. Sem aviso prévio desilude, pratica injustiças gritantes, arranca da gente filhos, pais ou amores. É cúmplice de juízes malignos, ídolos desmascarados, homens e mulheres violentos e crueis.
Meu palpite é que talvez seja mais produtivo pensar sobre como melhorar a realidade que nos cerca. É melhor promover mudanças do que embarcar em palavras que, por mais bonitas que sejam, são vazias como bolas de encher.

Wisnik e eu escolhemos Marina


Em sua coluna no Segundo Caderno de O Globo, hoje, José Miguel Wisnik fala do encontro de Marina Silva com gente da área cultural em São Paulo. Os comentários versam sobre o que se disse, no dia seguinte, sobre o encontro no site da UOL.
Wisnik, que admiro há muito tempo como uma das cabeças mais lúcidas e dignas de respeito entre os pensadores de agora, faz uma crônica moderada e bem articulada. Lida com atenção, no entanto, percebe-se em seu texto uma crítica, quase uma denúncia, sobre a superficialidade que informa quase todos os textos do tipo. Crítica, porque as opiniões emitidas partem de premissas impensadas, possivelmente comprometidas com posições prévias que impedem uma visão imparcial da questão em pauta.  E denúncia porque, em jornalismo, não se pode abrir mão de alguma isenção, mesmo que o autor do texto pertença a outra vertente ideológica ou partidária.
Mais especificamente, ele alude a uma confusão que se estabelece entre a religião de Marina, com as convicções pessoais daí decorrentes, e sua capacidade de ver claro o lugar das diferenças na sociedade. Não é justo dizer que Marina “nem pode ouvir falar” em questões como o casamento gay e a legalização do aborto e das drogas. Diz Wisnik: “A capacidade de fazer essas distinções com clareza é, aliás, uma das coisas que mais me chamam a atenção no discurso dela”.
Inteiramente de acordo. Se Marina fosse uma fanática, nem me passaria pela cabeça votar nela. Não é. Marina sabe o que está dizendo e sabe também ser muito objetiva quando se posiciona diante das questões sociais.

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Lenine canta 'Paciência'

NY, 11 de setembro









FOTOGRAFIA DE 11 DE SETEMBRO

Atiraram-se dos andares em chamas.
Um, dois, ainda alguns,
mais acima, mais abaixo.

A fotografia deteve-os na vida,
preservou-os
sobre a terra rumo à terra.

Cada um ainda na íntegra,
com rosto individual
e sangue bem guardado.

Ainda há tempo
para os cabelos esvoaçarem
e do bolso caírem
chaves e alguns trocos.

Ainda estão ao alcance do ar,
no âmbito dos lugares
que acabaram de se abrir.

Só duas coisas posso por eles fazer:
descrever este voo
e não acrescentar a última frase.

WISLAWA SZYMBORSKA
(de Instante, tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio Neves, Relógio d'Água, 2006)



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ABAIXO A REALIDADE

Poemas Reunidos
No próximo dia 15, acontece na Livraria Argumento do Leblon o lançamento e sessão de autógrafos do livro Poemas Reunidos, de Geraldo Carneiro. Na ocasião serão exibidos os filmes "Miragem em abismo", de Eryk Rocha, e "Rascunhos do tempo", de Jorge Brennand, sobre a poesia e os poemas do livro.
15/09 a partir das 19:00 Livraria Argumento, Leblon, Rio de Janeiro (Rua Dias Ferreira, 417)





Exercício da noite




Amanhã começa outra vida. Uma vida que rói as vísceras, uma ansiedade florindo em redoma. A noite veloz só anuncia: coisas novas chegam amanhã. Como será te deixar para trás? Como será deixar de doer assim calada e passar a doer em liberdade rasgada? Será que brota desejo em terra mais fértil? A vida se adianta como miragem e renasce sempre mais adiante. Talvez descubra que chegou o fim e não haja mais nada a desejar, e poderei enfim viver de minha própria carne.
Mil vezes já passou esta noite. Mil vezes ela foi ensaiada em desespero e paciência e agora irrompe diante de mim e me deixa calada de saciedade. Um pouco de temor do desconhecido, é verdade. Uma felicidade corrosiva e difícil. Como será recomeçar do que nem se conheceu? Minha vida é uma trama oriental de muitos tapetes, e você me ajudou a tecer agonias como grandes estofados bizantinos num palazzo veneziano alagado de medo.
Não me apresento bobamente para tua aprovação, não fujo como em outro tempo e também não suspiro mais por você. Não te consulto – eis a grande novidade. Estou em outra dimensão da vida, uma dimensão que você não conhece e não está autorizado a freqüentar. Agora preparo mosaicos em imensos painéis que podem se animar a qualquer momento e preencher o céu com desenhos sem utilidade prática. Posso me dar ao luxo.
A glória que você podia me oferecer é uma grande morte com que não conto. Vou voar em outra direção, talvez na direção do capim que se alonga, e minha imagem vai renascer disso. Ainda não conheço todas as imagens de meus painéis. O resto se abre como o céu e você não está nele.
Estradas esquecidas que o carro desperta, estados sonolentos que passam velozes, tempo quase ausente. Quero ter tempo para experimentar. Pressentimentos como flores invisíveis em copas muito altas. Como você é fútil. Pensa que sabe tudo. Pensa que já decidiu o destino do mundo e não tem sequer os diagnósticos, porque o espaço é pouco para o mundo e você. 
         Alguém vigia e avisa: há vida lá fora. Um golpe traiçoeiro derrubou o dono da noite. Amanhã é outro dia. “Tá com enxaqueca outra vez?” Meu riso explode, escapa escandaloso. Pequeno gesto de reprovação: “que boba”, você diz. “Que é que você tem na cabeça?”

Face to Facebook



O engraçado nas chamadas redes de relacionamentos sociais é que os amigos caem do céu, por assim dizer. Quem já era amigo, continua sendo. Quem era mero conhecido, entra na lista e se converte em novo amigo, às vezes com lucro para ambos. Ou não, nunca se sabe, porque algumas dessas pessoas só queriam mesmo engrossar a lista. Existe até quem faça a proposta sem ter a menor ideia de quem você é ou deixa de ser.
No balanço final, quase sempre se ganha.

O que mais incomoda na rede é que existem critérios automáticos para aproximar as pessoas. Como se um robô falasse com você - ou escrevesse, vá lá - propondo coisas, comportamentos e ações. Como se a gente precisasse de animação, fórmulas ou empurrões para se relacionar com alguém. A primeira proposta, às vezes, é uma mensagem que você não mandou. Há redes que tomam a iniciativa sem conhecimento do proponente, que até já desistiu da rede.

Tudo bem, não posso me queixar. Tenho conhecido gente bem legal, e novos contatos nunca fazem mal nenhum, especialmente se não implicam contato físico. Não me entendam mal: quando você ainda não sabe quem é uma pessoa, é melhor ir conhecendo aos poucos, em trocas de palavras. As palavras falam sempre além de seu sentido estrito, mesmo que não sejam inteiramente sinceras. E nas redes, em alguns casos, sinceridade é artigo meio supérfluo. Dá para entender.

A grande vantagem, além dos interesses comuns e das descobertas premiadas, é a chance de encontrar quem mora em outro estado, em outro país, e que na chamada vida real não teríamos a menor chance de conhecer. Em especial quando esse alguém vale muito a pena. No fim das contas, é bom estar no mundo de agora.

Poesia é um vício



Passa uma borboleta por diante de mim
e pela primeira vez no universo eu reparo
que as borboletas não tem cor nem movimento,
assim como as flores não tem perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
no movimento da borboleta o movimento é que se move.
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta, e a flor, apenas flor.

Alberto Caeiro

Desperta-dor










 
 
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Olhos de Barro

Pré-lançamento do livro Olhos de Barro, na 21ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Olhos de Barro recebeu menção especial na 3ª edição do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura.

Haverá na tarde de 16 de agosto sessão de autógrafos e diálogos com autores da coleção Orpheu: Edson Bueno de Camargo, José Geraldo Neres e Marcelo Ariel.

Autor: José Geraldo Neres


Tarde de autógrafos

Realizo, Logo Sou, do Mino Oliveira.

Às 17h do dia 14 de agosto próximo
Saraiva Megastore / Shopping Pátio Paulista.

Martírio




Era vizinho de nossa família nos tempos de minha infância. Estudou com meu irmão na escola municipal do bairro, e cursavam direito juntos quando resolveu ser padre. Ingressou no seminário, concluiu o curso, e ao fim de uns anos lá estava ele, um missionário radiante de felicidade. Meu irmão, ateu convicto, e eu, meio desligada de tudo que não fosse jornalismo e literatura, não deixamos no entanto de amá-lo, cada qual a seu jeito. Ele correspondia com a doçura que era só dele.
Um dia, os dois na varanda depois de um almoço lá em casa, eu disse a ele que o martírio era uma bobagem sem tamanho. Ele me olhou com um misto de surpresa e repreensão – a repreensão suave de que seria capaz:
— Mas como... O que é que você está dizendo? Já se deu conta? Nem falo só do martírio religioso, há outros...
Eu nem pestanejei. Achava aquilo mesmo. Sentia muito se o decepcionava, mas não via vantagem em morrer por uma causa. Mesmo a vantagem política me parecia questionável. O que seria mais importante: a força moral ou a força do braço que trabalha para mudar as coisas? Não é morrendo que...
Ele tocou meu braço e o apertou um pouco mais do que seria de esperar.
— Peraí, peraí. Você está delirando. Então você acha que vale mais quebrar pedra do que inaugurar um monumento?
— Se ninguém quebrar a pedra, o monumento não sai.
Ele refletiu por uns segundo, sem soltar meu braço. Acho que o olhei de um modo diferente, porque pareceu se dar conta do que estava fazendo.
— Ah, disse, largando meu braço, desculpe, eu... Mas você dizia – e se ajeitou na cadeira.
— Nada, respondi. Nada, não disse nada. Foi só um impulso.
Ele sorriu. O mundo estava em paz outra vez. Levantou a mão e fez um sinal de absolvição diante de mim. Naquele momento percebi: nunca seria meu.

Beleza em vídeo






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 Umbigo recomenda

Vale a pena ver e ouvir o que diz essa moça. Em sua palestra, ela nos passa não só uma lição de vida, mas o princípio mesmo que deve nortear toda ação e toda justiça.


A história de amor dos dois pintores


Egon Schiele

Por que não voltamos daqui – ela propôs – já é tão tarde e o dia está nascendo nos jardins de Monet.
Então é cedo – ele falou – as árvores de leve concordaram e tudo começou numa tela de Turner.
Arrumaram a casa com Peticov e Klee. Cézanne trouxe as frutas, Van Gogh as noites e Klimt erotizou a terra, que logo se dividiu em planos escherianos e pássaros voando em degradês sobre os casais de Schiele.
Picasso entrou em cena no início da guerra. Dali descobria coisas imprevisíveis, mas Munch já habitava suas entranhas. A casa de Jacek fazia água e os personagens de Magritte entraram em cena, meias-luas pairando sobre o chapéu. Passaram a ignorar perspectivas e Chagall subiu no telhado.
Desse ponto a Hopper foi pouco mais que um passo e a solidão campeava solta. O mundo se dissolveu, Miró eclodiu e respingou Pollock. Já não eram dois, mas muitos fragmentos, até que tudo ficou mais complicado por Bardinet e Yvette Jullien. Mabe pôs um fundo final na história deles, que nunca mais se viram.
 

sexta-feira

Homens sábios



Texto de
Alexandre Amorim

   Adolfo gosta de futebol. Torce para o Bayern de Munique e, do alto de seus dez anos, não se    lembra da seleção alemã ter perdido a final da Copa do Mundo para o Brasil, em 2002. Seu pai o leva para ver alguns jogos, comprou a camisa vintage branca e preta, de 1974, e diz que Adolfo pode ser um grande jogador, se treinar bastante. Adolfo nasceu na Costa do Marfim, mas foi viver na Alemanha com os pais ainda muito pequenino. O pai é alemão, trabalha como contador e casou-se em 1996 com a mãe de Adolfo quando foi trabalhar em uma firma de exportação alemã que tinha filiais na África. A mãe de Adolfo se formou em Administração no Congo e foi trabalhar na Costa do Marfim, onde conheceu aquele alemão branquíssimo, de olhos muito pretos. Adolfo é mulato, de olhos castanhos.
   Ontem de manhã, Adolfo não foi à escola porque estava com dor de barriga, e aproveitou para procurar na internet qual a chave da Alemanha na Copa. Acabou descobrindo que seu país de origem também está no campeonato. Adolfo vai torcer para a Alemanha, mas, se ela for eliminada, vai torcer para a Costa do Marfim. Seus amigos da escola acham engraçado que ele torça por aquela seleção tão chinfrim, mas ele se irrita e chama a todos de idiotas. Mal sabem eles que seu país é enorme e que muitos alemães trabalham por lá, até seu pai já trabalhou.
   Adolfo acaba se distraindo na internet e descobre que a África é chamada de “berço da humanidade”, porque dizem que a raça humana se desenvolveu lá. Ele se pergunta se foi na Costa do Marfim, onde nasceu, mas não consegue descobrir, porque as informações na internet são muito confusas, e algumas até duvidam de que tenha sido na África mesmo que o homem nasceu. Ele lê sobre Lucy, o fóssil do primeiro ser humano, ancestrais na Sibéria, instrumentos e desenhos encontrados nas cavernas da América Latina. Lê também sobre chimpanzés, linha evolutiva, Darwin, design inteligente, Adão e Eva... Até que se cansa e levanta da cadeira para ir até o sofá da sala e assistir à TV. Ele troca de canal com pressa, porque nenhum desenho ou filme lhe interessa muito, mas passa por um canal em que duas palavras que ele acaba de ler na internet aparecem na tela: Sapiens e Neandertal.
   Uma moça loura vestida de azul-marinho conta, em um jornal vespertino, que cientistas alemães descobriram que o Homo Sapiens se acasalou com o homem de Neandertal. A palavra “acasalar” não fica bem clara para Adolfo, mas ele entende que os dois se casaram e tiveram filhos. Entende também que eram de espécies diferentes e que ninguém acreditava nisso até que esses cientistas alemães provaram que realmente aconteceu. E que muita gente está chateada com isso, porque muita gente acreditava que o Homo Sapiens (que somos nós, pensa Adolfo) era uma espécie pura, de linhagem direta e sem cruzamentos. A moça da TV ainda comenta que esses cruzamentos aconteceram na Europa, mas não na África, onde o homo sapiens não apresentava sinais de cruzamento com outras espécies.
   Adolfo não sabe bem o porquê, mas sente certo orgulho de ser africano. Se sente especial, pensa que seus antepassados não se misturaram com aqueles homúnculos atrasados, os neandertais. Seu pai liga para casa e pergunta a hora de sua mãe chegar, e então Adolfo se lembra que o pai pode ser descendente de neandertais, porque é europeu e não é puro como os sapiens africanos. Ele volta para a internet, pesquisa e descobre que o primeiro neandertal foi encontrado justamente na Alemanha. Povo idiota, ele pensa. Adolfo também pensa que nasceu na África mas vive na Europa graças a seu pai, e sente raiva dele. Sente raiva de seus colegas de escola, que mexem com ele, falam mal do futebol da Costa do Marfim, mas também falam mal de sua cor. Os colegas de Adolfo mencionam um homem com um nome parecido com o seu, de sobrenome cheio de erres, que queria criar um povo puro, sem sujeiras, branco e perfeito. Adolfo sentia raiva de achar que não era perfeito porque não era branco, mas agora sabe que a perfeição e a pureza estão justamente onde nasceu, na África dos homens puros, sem cruzamentos e acasalamentos com outras espécies.
   À noite, sem conseguir dormir, Adolfo pede água a seu pai. Ele se levanta e vai até o quarto com um copo pela metade. Entrega ao filho, que bebe dois goles e devolve o copo. Pergunta ao pai por que a água tem que ser pura. O pai explica que nada é puro, porque sempre existe alguma mistura. O que não pode haver na água são elementos que causem doenças ou prejudiquem a gente. Como os neandertais?, Adolfo pergunta. O pai olha com estranheza, mas se lembra de uma conversa com colegas de trabalho sobre homo sapiens e neandertais. Quer saber o que eles têm a ver com elementos que causem doenças. Adolfo explica que eles prejudicaram os europeus, que não ficaram puros. O pai ri, diz que ninguém é puro, que nada é puro, que a última pessoa que pensou em pureza morreu triste e sofreu muito, porque isso não existe, que pensar assim é burrice. E prometeu levar Adolfo ao museu de História Natural para ele ver como os homens podem ser sábios.
   Adolfo, naquela noite, sonhou com futebol, com homens brancos, pretos e amarelos, grandes e pequenos, com homens felizes jogando bola e fazendo gols.

Da Revista de Educação Pública.
Publicado em 08/06/2010.

Alexandre Amorim é meu filho. Podem dizer que é corujice, porque é mesmo : D