terça-feira

A semana de Teresa

Acordou prisioneira daquele quarto de paredes azuis, quadros de molduras meio douradas e tapete bordado. Olhou em volta deitada em decúbito dorsal de corpo e alma. Nada a animava a levantar-se, naquela segunda-feira de um sol tão luminoso que as cortinas pareciam prestes a pegar fogo. Mas o relógio, aquele mesmo, tão seu conhecido, marcava sete horas, hora marcada a ferro e fogo em seu espírito invertebrado daquele dia.

Sentou na cama e girou o pescoço lentamente para um lado e depois para o outro. Sentada, as coisas adquiriam certa consistência, mas mesmo assim ela continuava pertencendo a outra realidade, supra ou infra. Pôs os pés para fora da cama e procurou os chinelinhos felpudos, que a mãe insistia em deixar no banheiro para depois do banho, mas não para ela, que para ela tudo existia para ser fruído, usado, sugado por seu dono ainda em vida.

A lembrança da mãe a fez sorrir para a estância interior onde conviviam seus sonhos e memórias numa pequena caldeira caótica. Não achava ruim encontrar todo dia as mesmas coisas a sua volta, a sala com os dois abajures verdes e aquelas cadeiras que lhe davam a impressão de estar num museu da Primeira República. Implicava mais seriamente com as cortinas rendadas de um tom creme-dúvida (seriam brancas amareladas ou cremes de verdade?), mas não tinha nada que se meter no gosto da mãe e no modo como arrumava a casa.

Entrou na cozinha atrás de um copo de suco, que sempre tomava em jejum, e esse sempre vibrou em sua cabeça como uma lâmina. Foi súbito. Sempre lhe pareceu uma enormidade. As mesmas coisas seriam o mesmo que sempre? Se era assim, então precisava de um olhar muito mais possante, talvez equino, para encarar o que aquela vida lhe oferecia. Voltou ao quarto sem o suco de laranja, e logo à porta reparou na bonequinha de metal torneado, meio tocado de amarelo, pendurada desde toda a eternidade na chave daquela porta cansada de ser branca. Notava de repente como as coisas são profanadas pelo tempo, e fez um esforço de realinhamento que não surtiu efeito.

Seu barco fazia água. Urgia aliviar o peso da carga a bordo. A bonequinha de metal torneado voou janela afora com um pequeno ruído que lhe pareceu um acorde promissor. O quadrinho de figura desbotada, moldura rococó descascada nos dourados, seguiu a bonequinha com um pouco mais de estardalhaço, porque foi aterrissar na área de serviço de um vizinho meio azedo que logo se fez ouvir. Mas aliviar-se do peso do dia-a-dia era tão instigante, que Teresa logo se viu munida de uma sacola funda e espaçosa, dentro da qual couberam todas as quinquilharias e badulaques varridos por seus olhos naquela manhã. Entre elas o relógio das sete horas, as caixinhas desconjuntadas da coleção da estante do corredor e umas flores esquálidas que pendiam desde sempre do aparador da sala.

Os olhos brilhando, sentou no chão da cozinha com uma manga e uma faca. Não se lembrou mais da mãe, que chegaria à noitinha, e já imaginava a manhã seguinte, quando pretendia mudar alguns móveis de lugar.

segunda-feira

Março celebra a poesia

Dia 14 é o Dia Nacional da Poesia. Dia de aniversário de Castro Alves. Dia 21, Dia Internacional da Poesia. E como diz o Veríssimo, “poesia numa hora dessas?”
 
Brincadeirinha. Poesia é para sempre. Com ou sem métrica, rimas de todos os tipos ou nenhuma. Às vezes, nem versos. Em casos muito particulares, o poeta nem consegue se expressar. Ou não sabe, mas vive de um jeito que mais cedo ou mais tarde o obriga a falar, e as palavras erigem um poema.

Não só a linguagem mudou. O modo de sentir o mundo e reagir aos estímulos se tornou mais tenso, mais áspero, porque é preciso ativar as defesas para não se ferir a toda hora. Nada no entanto impediu que continuassem surgindo poetas neste mundo difícil e cruel. Parece que enquanto existir gente na Terra, existirão poetas. Poetas que falam não só de amor e flor, mas da humana condição, da falta permanente de alguma coisa que amenize a inquietação e a angústia, das coisas que nos afetam, da própria circunstância do poema.

Específico da poesia é o sentimento súbito do que chega à pele, da percepção aguçada que se amplia, instigadora, e num certo momento irrompe e mobiliza alguém a expressá-la. Mas para isso é preciso que haja um silêncio interior, uma certa contemplação desse processo, condição para ouvir o “barulho” da poesia.

Poesia não é antídoto de nada, não é remédio, não relaxa. Ao contrário do que alguns imaginam, não significa serenidade por si mesma. Uma poesia da serenidade pressupõe que essa serenidade preexistisse ao poema. Poesia ignora rótulos e ideias preconcebidas. Como tudo nesta vida, tem suas formas próprias, que devem e precisam ser bem cuidadas para que o poema soe verdadeiro, mas que pouco valem se o que se diz for fraco, falso, artificial, pretensioso.

Os puristas que me perdoem, mas um poema tem que ser do mundo, dos outros, da morte, e sempre, sempre da precariedade humana que se recria em palavras. Isso vale também para poemas que falam de uma realidade interior, de sentimentos subjetivos, porque, já dizia Vinicius, “a vida só se dá pra quem se deu”. E acho que não está errado dizer que fazer poesia é um modo bem-sofrido de viver – e por bem-sofrido quero dizer de dor e alegria, do amor e seus avessos experimentados em profundidade.

O que desenha um poema são marcas, cicatrizes, efeitos concretos da realidade sobre quem o escreve e sobre quem o lê – embora por ao menos um momento precise existir “calma e frescura na superfície intacta” para deixar que o poema venha à tona e se estruture. Um bom poema é um prodígio de significados e leituras possíveis. Importa muito pouco se é um soneto, uma sextina, um haicai, se são trovas, versos livres e brancos ou redondilhas. Um poema vale pelo que consegue suscitar no leitor, “com seu poder de palavra / e seu poder de silêncio.

Março é o mês de prestar homenagem aos poetas queridos, vivos e mortos, de hoje e de sempre. Não vou citar nomes, porque na certa deixaria alguns dos mais importantes, porque a cabeça sozinha não segura a lista inteira. Mas quero agradecer a eles, meus mestres, meus amigos presentes e virtuais, tantos e tão generosos.
Saravá, poetas do mundo inteiro e de todos os tempos! Obrigada por existirem, porque sem vocês o mundo seria ainda mais cruel.

sexta-feira

Gente mais que gostável


Max Moreira

Aqui você encontra um poeta que eu, particularmente, adoro ler.
Trouxe dois poemas dele, pra quem ainda não conhece tomar o gostinho:

Gume

Tender às bordas é uma sina.
Os limites,
ora estreitos limítrofes,
ora largo litoral,
inclinam-me.

Meandros confundem-se entremeios.
Entre o abismo e a orla,
pergaminho.

Ora a brisa, ora a água,
toca-me os pés.

Não-caminho,
margeio.

Além mar

meu coração está sobressaltado.
investigo o motivo, e
não sei.
procuro entre minhas paixões
algo de novo;
percebo-as com alguma distância;
elas me acenam.

e uma disponibilidade táctil,
sem urgência,
se instala.

percebo que a espera
é que agira, e
diviso, longeperto, a praia
e a espuma revirando a areia;
areia suja de algas esquecidas.

sobrevivente,
da amurada, saboreio a Espera,
como quem, faminto,
se deleitasse com os preparativos da ceia.








 
Coisas do Balaio

Moacy Cirne é um cara tão bacana que quer viver todo dia cercado de amigos. E consegue: reúne a gente em seu Balaio Porreta (veja só o post do dia 4 passado). O papo é delicioso e todo mundo fica feliz quando ele convida pro blog. Sem falar nas dicas perfeitas e na qualidade das fotos, textos e nomes que ele descola todos os dias, especialmente pra nos deixar mais felizes.
Obrigada, Moacy!






 
 
Johnny foi embora

Uma pena: morreu Johnny Alf, um dos compositores mais talentosos da MPB.
Uma grande perda, que deixa a gente triste, com saudade das canções cheias de poesia e delicadeza que ele compôs – Ilusão à toa, Eu e a brisa, Rapaz de bem e tantas outras composições em que se revela o jazz-man precursor da bossa nova.
Sua música passa uma imagem de improvisador, um frescor de inspiração.
Uma grande pena.
Vai com a brisa de Deus, Johnny.

 



Aqui, mais JA

http://www.youtube.com/watch?v=ejY9nDIbygQ&NR=
http://www.youtube.com/watch?v=RC7HBfgyMAg
http://www.youtube.com/watch?v=utflHf9zhrk
http://www.youtube.com/watch?v=oigNkJw9nuM

segunda-feira

O tempo e Borges



"O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrasta, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo"

Jorge Luís Borges. Nova Refutação do Tempo. Obras Completas, II, p.144.






Jorge Luís Borges em 1951, por Grete Stern.

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Sobre Mindlin e seu legado.Vale a pena conhecer melhor esse homem generoso e bom caráter.
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Estou também na Revista Cultura entre Culturas e no blog (Entre)laços do Coração.