quarta-feira

Resumo da ópera



O mundo é como um cinema que passa bem devagarinho: sempre sobra mundo pra conhecer.
Só é ruim porque não há como saber exatamente que papel a gente fez no filme.



Les memes sont encore les mêmes




O Marcelo Novaes, que tem um blog muito bom de ler, propõe um meme legal.

A receita:

1. Tome o livro mais próximo.
2. Abra na página 161.
3. Localize a quinta frase completa nessa página.
4. Passe a frase para o blog.
5. Escolha cinco blogs para repassar o meme.

O livro mais próximo de mim no momento é A Retórica de Rousseau, de Bento Prado Jr. O livro inteiro é uma delícia de ler. São ensaios em que o autor analisa o pensamento de J.J. Rousseau de várias perspectivas. E a quinta frase da p.161 tem tudo a ver, olha só:

“A linguagem imita a natureza quando colabora com a ordem, quando restitui, no interior da humanidade, a ordem que seu nascimento tinha contribuído para apagar.”

Quanto ao quinto item, posso sugerir alguns nomes para continuar a brincadeira, sempre lembrando que ninguém é obrigado nem será mal interpretado se não estiver a fim.

Então, vamos lá:

Marco, do Antigas Ternuras
Dora Vilela
, do Pretensos Colóquios
Jacinta, do Florescer
Carol Timm, do Casa de Leitura
Marcia (Clarinha), do Brincando com Palavras

sábado

Das religiões


Desenho Bia Salgueiro.

O texto a seguir, assinado pelo amigo Walter C. Moura, parece bem pertinente a nosso tempo:

"No princípio, na infância da humanidade, os deuses eram risonhos e terríveis, como as crianças. Assim nos contam as mitologias, a respeito de divindades tão humanas que com humanos chegavam a procriar e a lutar. Havia até híbridos: os semideuses e heróis. As criaturas divinas eram, em suma, seres humanos com o dom da imortalidade e com poderes – e fraquezas – ampliados, para o bem ou para o mal. E, se não fossem reais, pelo menos seriam poéticas. Seguramente, mágicas.
Mais tarde surgiram as grandes religiões monoteístas atualmente existentes, falando-nos de um deus ainda terrível, mas já não muito risonho, bondoso é verdade, sobretudo inexorável, despojado dos humanos defeitos. A seus desígnios já não há possibilidade de escapatória ou burla – este deus não se apaixona, não se embriaga, nem persegue ou sente ódio, e sendo assim não esquece. Ao homem, resta compreender humildemente que é em tudo inferior ao ente divino, e aceitar tal fato com alegria no coração. Esta divindade já quase não é mágica, embora seja mística, e já não há nela poesia, mesmo que se possa encontrá-la em sua criação.
Por último, como fenômeno recente, surgiu a crença em outro tipo de ser superior. Definitivamente deixado de lado o caráter risonho e algo ingênuo, o novo ser supremo é completamente frio, cada vez mais infalível e despido de emoções, sejam as boas ou as más. Não há nele misticismo, ou magia, ou nada que não seja objetivo, tangível e palpável. À humanidade caberia, segundo seus profetas, submeter-se a seus desígnios e assim confortar-se, ou pretender negá-los, e perecer em miséria, ainda nesta vida, que com vidas futuras esta divindade não acena. À nova modalidade de deus, criado à imagem e semelhança de seus acólitos, chamam Mercado."

Como atenuante desse conceito que se pretende realista - e em certo sentido o é -, persiste a virtude dos que guardam a fé em um Deus único, verdadeiro e misericordioso, capaz de perdão e amor, que traz em si a possibilidade da esperança, seja em outra vida, da qual só podemos ter uma idéia imaginária, seja na paz interior que pode trazer uma vida pautada nos princípios de justiça e solidariedade, de cuidado de si e do próximo.

A sabedoria chinesa tem um provérbio bem eloquente:

"Nada assenta melhor ao corpo que o crescimento do espírito."


Notícia de além-mar



Um poeta e amigo de longe, Nuno Dempster, lança seu novo livro, Dispersão.
Só para vocês sentirem a força, eis o poema de abertura:

Ítaca

Quando partires, em direção a Ítaca,
que a tua jornada seja longa...

(Konstantinos Kavafis)

Se ao longe imaginares Ítaca,
que não te dê saudades.
Uma ilha é um monte sem caminhos.
Descansam nela as aves migratórias,
e a gente que a povoa
gasta o tempo a sonharem aonde irão
as aves no seu alto voo
quando partirem.
E sobretudo Ulisses há-de
segui-las com os olhos,
lembrando-se de Circe.
O azul, digo-te, é uma cor volúvel,
e o céu e o mar são só desertos.

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Update:

O curioso caso de Benjamin Button



Nem só de Brad Pitt (que além de bonito está maduro) vive esse filme: há o script perfeito, na contramão da realidade, correndo sem qualquer tropeço. Baseado no romance de F. Scott Fritzgerald, vale pela técnica perfeita, pela qualidade do cinema que oferece: direção, atores e efeitos especiais, usados em favor da narrativa (ao contrário do que acontece tantas vezes que já virou quase rotina), conseguem imprimir verossimilhança à história.
No fim, tem-se a sensação de ter virado a vida pelo avesso, de ter conjugado o presente pelo passado, de ter virado a experiência de cabeça para baixo. Talvez valha como um exemplo radical do que significa ser diferente dos demais. Mas vai bem adiante em termos de imaginação e sutileza da narrativa.
Conta uma história cheia de humanidade e aventura, com direito a tipos inesquecíveis, como o capitão-artista e Queennie (ótima, Taraji Penda Henson), a mãe adotiva de Benjamin.

terça-feira

Pavana da velha senhora


Foto Imogen Cunningham

Agora tudo nos lugares e ninguém para desarrumar. Da porta de entrada até as poltronas, o piso lustroso de desenhos bonitos que um dia temera tanto ver arranhado. Os cinzeiros no lugar certo, os pés da mesinha bem alinhados com o sofá. Os badulaques do lustre desenhando triângulos no teto em nítidas linhas de luz. As cortinas ameaçam uma solenidade despropositada. O espelho alto traz para dentro a vista da janela – a lagoa, o verde, o céu cruzado de improvisos.Examinou o rosto com cuidado: as imagens do espelho guardam sempre um traço de falsidade, mas a pele cansada estava nítida. Uma senhora extraordinariamente respeitável, no entanto; bolsas debaixo dos olhos, sorriso impassível. Um certo ar de enigma lhe cairia bem, mas já não havia motivo para isso. Em lento desconsolo, os ombros descaídos, notou entre o corpo que envergava e a imagem uma nota dissonante, e foi como se alguém a olhasse no fundo dos olhos em um momento crítico.Pratas e cristais a sua volta se tornaram presenças agravantes, como se lhe virassem a cara. Não há de ser difícil conseguir a paz, tentou convencer-se a caminho da janela, e teve a sensação de pisar sobre pequenas flores murchas. A tarde ia escurecendo ligeira, numa dança de luzes e trevas, e uns sons abafados chegavam a seus ouvidos.Lembrou de tanta coisa de repente – as lutas sem fim, as crianças, os adultos em que haviam se transformado, uma certa indiferença nos olhos deles – agora com certeza não mais os mesmos. Onde estariam nessa noite de sábado?Pouco importaria a quem quer que fosse se a casa estava ou não arrumada. Nem mesmo a ela. Mas era preciso tentar.Entreabriu a vidraça. O ar novo no rosto e a súbita fisgada romperam o equilíbrio precário, construído como um mosaico de peças trazidas de fora, que não respondiam a nenhum de seus apelos. Cravou os olhos no lado mais escuro do céu e se aprumou diante da noite. Um vento indiscreto e atrevido ameaçava seu penteado.Voltou para dentro da sala. Do sofá olhou devagar para tudo, lembrando o tempo em que a sala não parava arrumada, o espelho respingado, marcado de dedos, até uma boca de batom tinha encontrado. A indignação daquele dia era uma lembrança alegre. O tapete, a franja sempre embaraçada, a ponta virada. A luminária de opalina em mil cacos. A cortina comprida com os fios da barra repuxados pelas unhas da gata Clotilde, os olhos fosforescentes no canto escuro junto ao sofá. As paredes, ora acetinadas em creme, naquele dia encardidas, manchadas de mostarda do sanduíche de Marquinhos, dedos sujos de tinta de carimbo do jogo de Maria Isabel.Tinha afinal alcançado a perfeição sonhada durante todos aqueles anos. Mas tinha sido há tanto tempo... As lágrimas lhe desenharam linhas sinuosas e negras rosto abaixo.



Amigos, depois de umas férias que me deixaram sem conexão, é uma delícia voltar.Obrigada mesmo pela presença e pelo carinho, beijos gerais e até breve!Se tiver escapado alguma grafia fora das novas diretrizes, não liguem não. Pior ficaram as palavrinhas que perderam pedaço, como se pode ver aí embaixo:

quarta-feira

Queridos amigos

Morta de saudade, retorno ao convívio querido dos bons amigos!


O Umbigo do Sonho saiu do rol dos blogs em evolução e caiu no limbo bem na época em que as férias do início do ano me levam a uma área de conexão imprevisível. Mas como a irresponsabilidade do provedor (Movable Type) não podia ser mais forte que o blog, ele retorna em novo endereço.
As mensagens amigas me comoveram mais do que eu me achava capaz, e tomei uma decisão apoiada em parte no incentivo dessas pessoas queridas, em parte em minha legendária teimosia (sou uma mula de teimosa, para quem ainda não sabia): o Umbigo renasce das cinzas antes mesmo de ser queimado.


A cena foi bonita: o azul explodiu em girândolas de dentro do elemento líquido. Na beira da piscina, grupos brindavam em flütes de cristal. Do lado onde fica a praia, o peixão comia sua ração dos dias especiais e parecia um saco sem fundo engolindo peixes, peixinhos e crustáceos infindáveis. Estava felicíssimo por ter arrancado de mim a promessa de que não o deixaria empalhado num museu de histórias desnaturadas nem preso para sempre no quadro do maluco do seu pai, Hyeronimus Bosch.


O final feliz merecia um nome à altura, e aí pensei em transformar o Umbigo do Sonho em Fênix dos Mares. O blog sairia então da teoria freudiana diretamente para a irrealidade mítica. Mas graças à intervenção sensata de gente como Márcia Cardoso, amiga da primeira hora, ele ficou com o nome antigo e retoma a tradição (não muito tradicional, por favor): com vocês, o Umbigo do Sonho velho de guerra, mas de casa nova.


Antes que me esqueça, obrigada, querida, por mais essa mãozinha providencial. Marcinha é, dos meus amores internéticos, um dos mais antigos e constantes.


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Gato em dia de chuva


O Rio aproveita os dias de chuva para se encolher como um gato em suas almofadas verdes. O próprio trânsito engarrafado não lhe tira essa condição. O Rio não costuma viver sem sol. As pessoas saem de casa como se fizessem um teste: se a chuva continua, se está ventando, ainda se pode tentar sair de blusinha top. Quem sabe até deixar o guarda-chuva em casa, esse traste que só serve para esquecer em qualquer lugar que ofereça condições. Fazer de conta que não se viu a chuva, que isso aí não dá pra molhar ninguém.
Mas se a coisa é mesmo pra valer, a porção gato de cada um vai emergindo e tomando posição. Vem um certo sono, uma vontade de se encolher, que é o jeito que o hedonismo carioca encontra de curtir o frio e o céu cinzento. Os carros, cada ônibus, o metrô, as calçadas vão se enchendo pouco a pouco de felinos loucos para gozar o lado bom da chuva. Em matéria de curtição, o Rio tem um know-how inacreditável.