segunda-feira

Uma história incompleta cap. 17


17

Revendo a papelada e os artigos sobre o desastre do estádio, Cosme se deparou com o nome de Antônio Malafate, autor do primeiro parecer que Mônica havia conseguido sobre a culpabilidade de Munhoz naquela história mal engonçada. – Vou falar com esse cara, declarou, e saiu do escritório de Pôncio sem fazer qualquer ruído, mesmo quando abriu e fechou a porta. Ele anda como uma sombra, pensou o jornalista, sorrindo. Tinha aprendido a estimar aquele caboclo intuitivo, inteligente e discretíssimo, que já considerava um amigo.
Estirou as pernas sob a escrivaninha e jogou a cabeça apoiada nas mãos para trás, um gesto muito peculiar que repetia quando precisava pensar em alguma coisa que exigisse abstração do resto. Na verdade, duas coisas dividiam agora suas preocupações – a ameaça de uma sanção injusta, como se veem tantas nesta terra, e o vago mal-estar que percebia dentro de casa. A primeira questão estava em boas mãos, e só lhe restava esperar que o detetive, o Castro, as testemunhas e os amigos conseguissem as condições para enfrentar com vantagem o poder do dinheiro e do que considerava a podridão moral de seu adversário. A morte de Mônica Lessa, na flor da idade, havia de comover as pessoas e comprometer aquele crápula. Não lhe restava a menor dúvida sobre quem fora o mandante – ou até o próprio assassino.
Quanto à segunda questão, o relacionamento com Larissa tinha de novo mergulhado numa espécie de limbo. Talvez o motivo fosse só a pressão dos últimos meses, aquele turbilhão de acontecimentos em que tinha se envolvido por causa de uma inocente reportagem. Ela bem que tinha tentado reavivar o desejo de antes, e ele lhe era grato por isso. Tinha realmente sido um apoio e uma alegria retomar aquele amor, mas agora o tempo do amor parecia muito distante, as coisas caminhavam para um estado pantanoso, e tudo que conseguia encontrar dentro de si era um tédio que não predizia nada de bom.
Enquanto Cosme se punha em campo para descobrir o paradeiro de Malafate, ia pensando nas chances de seu cliente. Nada de muito promissor lhe chegava quanto às providências já tomadas. As testemunhas estavam sendo instruídas pelo Castro, mas o detetive sentia necessidade de um contato mais intenso com essas pessoas. Tudo lhe parecia ainda meio solto, e não poderia confiar cegamente na disposição de alguém que conhecesse a situação, sabendo da força política e econômica do senador.
Não saberia explicar bem por quê, mas o nome de Antônio Malafate lhe dizia alguma coisa ainda obscura. Precisava descobrir a razão de o antigo colega de Mônica ter se decidido a colaborar com ela contra Lauro Munhoz. Podia ser que se tratasse de um ingênuo ou de um sujeito predisposto contra o ex-prefeito para quem trabalhara. Nesse último caso, devia ser também um indivíduo corajoso ou ligado a algum grupo que lhe desse apoio, o que era mais provável. Munhoz contava com inimigos aos montes, mas sua força política e seu mau caráter mantinham à distância os desafetos. A não ser que – só mesmo cara a cara é que vai ser possível avaliar a situação, pensou, estacionando seu velho Passat a alguns metros da companhia em que Malafate trabalhava. Era uma empresa pequena num edifício novo da Glória, de poucos empregados, prestadora de serviços de tecnologia e informática, segundo o pequeno letreiro no portão.


Larissa apareceu em casa de Líria de surpresa, no momento em que a amiga saía para o trabalho. – Nossa, que foi que houve? Você está com cara de quem viu um fantasma; olhou com atenção para a visita e completou – um fantasma alegre. – Quase isso, a outra respondeu. Podemos almoçar hoje lá naquela cantina perto do teu trabalho? – Claro, vamos sim. Ando até querendo acertar a conversa com você, saber como vai o estresse do Pôncio. – Ah, ele está bem, mesmo dentro dessa situação toda, você sabe. O Pôncio é um cara metido a forte, não entrega o jogo assim. Havia um toque de impaciência na voz da outra, um pouco de ansiedade, mas sua expressão era quase radiosa. Por isso Líria se encaminhou para a cantina certa de que haveria novidades, e nem se surpreendeu quando Larissa, mal tocando no prato, anunciou que estava se sentindo como uma adolescente que vai ao encontro do primeiro namorado.
Depois que a amiga se foi, sem sobremesa nem café, Líria ficou pensando no resultado daquilo. Que maluquete. Uma mulher tão louca pelo marido, os dois filhos adolescentes em casa, e ela inventando álibis para encontrar com um cara que acabara de conhecer, e ainda se dando ao desplante de afirmar que dele podia vir a salvação para Pôncio. A coisa devia ser mesmo muito forte. – Mas você pretende subornar o tal Hartmann pra conseguir apoio da polícia federal? A pergunta era um tanto irônica, porque para Líria aquilo não passava de uma desculpa esfarrapada para ir ao encontro do tal Roberto. Na verdade o verbo que lhe ocorrera nem era subornar, mas não queria dizer nada que pudesse agredir a amiga ou a reprimisse naquele momento.
Imaginou que talvez Larissa tivesse atingido o limite da tolerância em relação à suposta indiferença de Pôncio. Às vezes não depende da gente, as coisas fogem ao controle, e nadando naquela baía de carência, podia ser que a atenção de outro homem – por coincidência tão atraente e interessado nela – fosse um remanso, um consolo, um elemento de reconstituição da auto-estima, quem sabe. De qualquer modo, um jogo arriscado, que tanto pode salvar um casamento como afundá-lo de vez. Suspirou como quem aceita o fato consumado e foi pagar sua conta dupla, ao mesmo preço de sempre, porque Larissa trouxera para a mesa um prato quase vazio.
Pôncio reagiu com surpresa ao fato de chegar ao escritório de Cosme – uma salinha antiga que alugara na Lapa – e encontrá-lo embevecido, ouvindo bem baixinho uma música que, chegando mais perto, identificou como o Adagietto da quinta sinfonia de Mahler. O detetive lhe fez um sinal para que esperasse um pouco. Um minuto depois a música terminava e ele se dirigiu ao outro com a mesma cara de sempre. – Não conhecia esse seu lado amante da música. E que música! Você é mesmo um cara diferente. Cosme abriu aquele sorriso ofuscante que lhe iluminava toda a cara morena e arredondada, a despeito da magreza de seu corpo. – Ah, a música é um refúgio no meio do dia-a-dia. Se a música não existisse, a vida seria ainda mais difícil de viver. – Por que você acha a vida difícil? Pôncio quis saber, com genuína curiosidade. Sempre achei, pela sua cara serena, que você era um cara zen e cheio de paz interior. – Nem sempre a cara diz a verdade, Cosme respondeu, com o olhar um pouco mais pensativo que de costume. Há umas coisas que nem a paz interior ameniza. Pôncio ficou calado, esperando o resto do discurso, que não veio.
— E então, conseguiu falar com o amiguinho da falecida? – indagou, desistindo de interrogá-lo sobre assuntos mais pessoais. O outro balançou a cabeça com uma cara de profunda preocupação. E como não repondesse diretamente à questão, o jornalista quis saber mais. Cosme positivamente não devia estar num bom momento, porque se limitou a levantar os ombros ossudos e continuou calado, oferecendo-lhe um copo dágua apenas através de gestos. Pôncio então desistiu da entrevista e achou melhor voltar para o escritório, onde o esperava uma coluna por escrever e a correspondência do dia, que não poderia ser negligenciada numa hora daquelas. – Te ligo depois, disse, ao que o outro respondeu – vou ligar pra você assim que tiver certeza.

sábado

uma história incompleta cap 16

16

— Que nome esquisito, comentou Líria, que acabava de dar o banho do mês em Pascal e o enrolava na toalha com um capuz de orelhas de gato e bigodes. – Esquisito porém fundamental para o caso do Pôncio, respondeu Laio, que lia o jornal, terminado o café da manhã. – Olha como ele treme, tadinho, dizia ela, ligando o secador no grau mais fraco. Laio olhou distraidamente na direção do gatinho. – Está ficando grande, observou, deixando o jornal de lado e acariciando Pascal. Esse gesto deixava Líria muito enternecida, e ela se pendurou em seu pescoço para beijá-lo. Dentro do cercadinho, o gato sacudiu a cabeça e pulou a grade sem ser percebido. Mas sua dona só iria procurar por ele uns quarenta minutos mais tarde.
O depoimento de Marconolo trouxe uma novidade que surpreendeu todo mundo: Mônica Lessa nunca tinha estado no estádio do Rio Comprido e muito menos assistira ao começo do desastre naquela tarde de dez anos antes. Cosme deu de ombros. – Isso agora não faz nenhuma diferença, comentou, com seu ar um pouco blasé. Ela mentiu só pra poder incriminar o Lauro. Foram amantes durante uns dois anos, aparentemente um dos primeiros casos mais sérios da vida dela, que tinha dezessete anos quando começaram a se encontrar. – Foi uma mentira inútil, observou o Castro, já que ela conhecia o episódio por seu envolvimento com ele. Na certa quis encobrir o caso entre os dois para se proteger.
Marconolo contou também que Mônica só começara a trabalhar na prefeitura já no final da ligação com Lauro, quando atingira a maioridade e seu protetor agitava a campanha para a eleição que iria ganhar. Lauro a deixou de lado por uma vereadora de grande força política, sem a qual dificilmente teria conseguido o posto. Mônica nunca o perdoou. Ultimamente, tinha aceito o assédio dele para se vingar de Pôncio, por quem estava muito interessada e que a evitava. Além da posição, o senador lhe oferecia altas vantagens financeiras, um emprego em seu gabinete e um estilo de vida irrecusável. – Você ainda é muito moça, minha querida, e eu nunca deixei de querer a sua volta – ele tinha dito, após um jantar opulento em sua suite luxuosa. Depois da famosa transa que quase acabara com o casamento de Pôncio e Larissa, ela pretendia entregar a fita ao senador, com quem tinha reatado e de quem ganhara o apartamento no Leblon. Novamente, esperava status e dinheiro pela ligação com Lauro. Mas não contava com a desconfiança dele, que temia ser traído por ela durante os depoimentos. Mônica sabia demais, e punha em risco sua segurança e a impunidade com que ele contava.
Quanto a conseguir testemunhas em favor de Pôncio, Marconolo se propunha a indicar dois ou três nomes de antigos colegas de trabalho e, embora titubeante e suado, não teve outro jeito senão confirmar que aceitava depor contra Lauro. Pouco depois de sair da sala do Castro, ele caía com uma vertigem. Cosme sugerira que denunciasse Lauro Munhoz como mandante do assassinato de Mônica Lessa, em troca de proteção da justiça. Positivamente demais para ele.
Larissa atendeu o telefone na tarde do domingo e não conseguiu responder logo. Uma voz familiar, que ela logo identificou como senda a de Hartmann, lhe propunha um encontro de amigos, num bar do centro, e logo depois se identificava, – desculpe, Larissa, é que ando com a cabeça meio fora de órbita, ele disse, rindo. – Ah, sim, comandante. – Como assim, comandante? Por favor, me chame de Roberto. Amigos não usam esse tratamento tão distante. Larissa sentiu o coração se agitar e não soube exatamente como responder. Precisou de alguns segundos para tomar a decisão, e disse que sim, quer iria ao bar do centro. Não estava segura do que iria fazer, mas não via como dizer não sem contar com um bom álibi. Primeiro era preciso ouvir o comandante, Roberto, um homem tão fino, tão encantador, que a impressionara tanto, embora – bem, era preciso dar tempo ao tempo. Pensou em Pôncio e, como uma sensitiva, não se surpreendia pelo comandante ter aparecido exatamente naquele momento. Não fosse Hartmann, quase certamente apareceria algum outro homem capaz de lhe despertar tais sensações.
Falaram-se como velhos amigos, irmãos, e Pôncio declarou que estava cansado demais e queria dormir muito, até umas onze horas do dia seguinte. – Claro, meu bem, você está estressado, precisa descansar. Estava resolvido: aquela entrevista com Hartmann poderia bem ser útil para garantir a defesa de seu marido. Não tinha a menor ideia de como isso aconteceria, mas se acreditasse firmemente, quem sabe, estaria decidindo a sorte deles dois.

quinta-feira

Uma história incompleta cap 15

15

Loredo preparara uma reunião informal com o Castro e dois juízes amigos do Canhedo, em volta de uma galinha ao molho pardo que os deixaria predispostos a fornecer todos os esclarecimentos necessários e ainda solidificava a amizade recente, selada a cerveja gelada. Dias depois eles se encontrariam de novo, dessa vez na presença do comandante Hartmann, de Pôncio, incluído agora na roda dos ilustres, e do estrogonofe de lagosta do Canhedo, que era de lamber os dedos. O redator-chefe criava um ambiente favorável a seu repórter, mas não reivindicava privilégios. Sequer pensaria em prevaricar, oferecendo qualquer presentinho aos magistrados ou ao comandante, um cara que transpirava lisura e lealdade. Para todos os efeitos, tratava de se informar em detalhes sobre as chances de Pôncio e, entre uma e outra pergunta, introduzia observações cuidadosamente formuladas para impressionar bem os ouvintes.
Loredo aliás não descansava, enviando mensagens pelo correio eletrônico, fazendo ligações, reunindo-se com a assessoria jurídica. O caso de Pôncio mobilizava um pequeno exército solidário, enquanto a imagem pública de Lauro Munhoz se deteriorava a cada dia – diga-se a bem da verdade, com a ajuda do Jornal e de uma rede ligada a partidos adversários. Das sombras do esquecimento surgiam desafetos insuspeitados para contribuir na divulgação de excessos de todo tipo praticados pelo ex-prefeito, agora conhecido como o ogro, graças a sua fama e a sua cara de poucos amigos, de sobrancelhas felpudas. Como dizia porém o Castro, assumindo a pose de causídico padrão, – não devemos nos iludir com esse repúdio à figura do senador. Estamos fartos de ver corruptos premiados e a iniquidade tratada como virtude. – Isso parece coisa de Rui Barbosa, ria Cosme.
Marconolo só respondeu às mensagens depois de receber a quarta ou quinta. Assim mesmo, seu silêncio só foi quebrado para repetir o já dito. Cosme e o Castro então se mobilizaram para descobrir seu paradeiro e partiram para uma visita informal. Foram e tornaram a ir até a ruazinha sem saída na Tijuca, mas não havia ninguém em casa. Na terceira investida, uma empregada os atendeu e informou que o patrão estaria de viagem. Marconolo escorregava como quiabo. Castro conseguiu então um mandado de busca. Intimidado com o rumo que as coisas iam tomando, resolveu aparecer.


Canhedo, o gourmet, revelou-se uma figura ainda mais singular e cheia de truques do que o próprio Loredo imaginava. Cosme não tardou a perceber a versatilidade espantosa com que ele circulava das bancadas de sua cozinha para os bastidores da prefeitura. Tinha prometido ao amigo de infância que havia de encontrar o caminho para provar até que ponto a administração do Munhoz tinha sido desonesta e omissa. Lembrava-se de cada mancada do ex-prefeito, de cada esperteza, por causa das interferências que criaram dificuldades a seu trabalho, na época ligado aos estaleiros que funcionavam – alguns ainda hoje em atividade, embora seus ganhos tenham diminuído sensivelmente – no estado do Rio de Janeiro. Antes que Loredo esfregasse um olho, Cosme tinha conseguido de Canhedo informações sobre sua vida e suas andanças pelos estados do Brasil até 1998, quando resolveu ficar no Rio de uma vez por todas.
É verdade que os soldadores – profissão original de Canhedo – eram até então bem remunerados em serviços de construção naval, que exigiam deles uma formação impecável e lhes rendiam horas extras e serviços em condições especiais, com adicionais por insalubridade e insegurança. Parte da renda do gourmet viera daí, mas o detetive logo percebeu que Canhedo não era homem de se contentar com o possível. Abriu ele mesmo uma empresa do ramo, trabalhou por contrato para o setor naval durante mais de vinte anos e levou o calote de praxe do governo federal. Um processo que rolou na justiça durante mais de cinco anos, até que, um ano antes, teve ganho de causa para o reclamante que, deitado em sua rede do norte ao lado de Rainha, como chamava sua atual namorada, comemorou com ela as benesses que o futuro prometia. Eram mais de três milhões de reais, mais juros e correção monetária, garantidos por um contrato cujo original ele guardava em seu cofre-forte, instalado por trás da adega climatizada de sua cozinha.
Munhoz entrava nessa história como um vilão que, conhecendo os altos valores de seus contratos, multara seguidamente sua empresa por instalações insalubres – uma alegação fantasiosa, naquele ramo de atividade, e uma intromissão indébita na jurisdição, que de direito pertencia à fiscalização federal – e uso indevido de terrenos municipais não autorizados.
Havia ainda entre os dois uma pendenga antiga, dos anos 70, quando haviam se encontrado em Salvador, Munhoz em viagem de turismo e Canhedo, recém-casado, naquele tempo ainda empregado de um pequeno estaleiro, cuja mulher fora seguidamente assediada pelo jovem político que Lauro ainda era. Os dois tinham trocado uns socos sem maiores consequências, separados aos dez ou quinze minutos de briga pela turma baiana do deixa-disso, certa de que não valia a pena apostar em nenhum dos dois, já que não pareciam ferozes o suficiente para divertir a galera. Só isso talvez não justificasse a prolongada implicância do político, mas o prefeito era do tipo popularmente conhecido como carne-de-pescoço. Não desistia fácil de prejudicar um desafeto, e com o Canhedo a coisa rendeu até que, cansado de ser incomodado por aquela autoridade mesquinha, o empresário decidiu acionar a prefeitura por abuso de poder.
Canhedo parece ter nascido com o traseiro virado para a lua. Apoiado por amigos influentes, ganhou também essa ação – coisa de um acumulado de três centenas de milhares de reais. Descobriu nesse período que o prefeito conseguira reunir um número notável de inimigos, durante sua gestão, e Cosme gostou de saber disso. Munido de endereços e nomes, partiu para suas investigações e teve grande sucesso em ao menos seis delas. Tinham agora mais seis testemunhas contra o ogro.

quarta-feira

Uma história incompleta cap. 14


14

Loredo costumava frequentar a casa de um cara chamado Canhedo, um novo-rico sem deslumbramento, ainda com hábitos de homem do povo, cujo maior prazer na vida era reunir amigos e conhecidos e cozinhar para eles. Ocupara grande parte do espaço ao lado da casa com uma espécie de cozinha do gourmet, equipada com uma adega respeitável, dois fogões, uma enorme churrasqueira de tijolos, grelhas, freezers, geladeira, uma ampla despensa, bancadas que se estendiam a toda volta e todo tipo de temperos e especiarias. Um imenso galpão, caprichosamente coberto de telhas sobre um bonito arcabouço de madeira lustrada, sob o qual havia mesas de quatro lugares e uma outra, mais comprida, para os dias de comemorações íntimas, onde oferecia almoços e jantares para cerca de quarenta a sessenta pessoas.
Canhedo conhecia a nata da zona Sul, e em seu galpão era fácil encontrar secretários municipais ou estaduais, vereadores, juízes, autoridades policiais ou clericais, lado a lado com violeiros, tecladistas ou percussionistas, além de pés rapados que curtissem música, gente de boa voz, artistas ou escritores. Vez por outra, um governador e com mais frequência o prefeito da cidade podiam ser encontrados lá, numa noitada um pouco exótica, mais divertida e agradável que uma boate. Além do ambiente eclético e do talento de anfitrião, Canhedo dava um tom família a suas reuniões, onde vips e plebeus podiam levar suas mulheres e onde os limites de cada um para beber eram respeitados. Não que fosse careta, ao menos quanto a drogas, por exemplo. Ele mesmo bebia seu vinho com classe e, se algum dia usara aditivos do tipo, estava livre deles. Nunca no entanto se aborrecia ou excluía alguém de sua casa por causa de um baseado ou de uma cheirada discreta. Mas havia certa moderação pairando no ar, de modo que todos se sentiam à vontade.
Além de tudo, no entanto, o que atraía grande parte daquela gente era a comida apreciável que o dono da casa sabia preparar, farta e bem feita, embora sem pratos muito sofisticados. O paladar do homem era excelente, e seu tempero afamado entre chefs de restaurantes de respeito. Ser convidado pelo Canhedo significava almoçar ou jantar como um príncipe do povo. Quando alguém que não o conhecesse bem queria saber por que não abria um restaurante, ele sorria um pouco misterioso, o rosto redondo e moreno alargado, e mudava de assunto com uma sutileza inesperada para um personagem com aquela aparência um tanto rústica.
Ninguém sabia ao certo de que vivia o Canhedo. Que era rico, ninguém podia duvidar, diante do casarão cercado por um terreno razoável, numa ruazinha escondida atrás da Epitácio Pessoa, no coração do bairro da lagoa Rodrigo de Freitas, e diante da prodigalidade com que tratava seus convidados. Mas seu passado e sua ocupação eram assunto de muita especulação, embora bem poucos soubessem tudo sobre sua vida, distante do clichê do livro aberto.
Loredo era um desses poucos. Conhecera o homem ainda saindo da adolescência, filho de gente humilde, retirantes do Acre, onde uma ação desastrada do governo estadual destruíra sua casinha de lata e madeira para deixá-los na rua poeirenta e esburacada. Numa viagem pelo Norte, Calixto Loredo, seu pai, funcionário público estadual no Rio de Janeiro, condoído com a situação da família, tinha dado um jeito de trazer os quatro – Silvino Canhedo, a mulher e dois filhos com cara de fome. Acomodou os quatro nos fundos da casa em que ainda viviam os avós do Loredo, num subúrbio não muito distante, e colocou Silvino e a mulher como contratados a serviço do governo, além de conseguir escola para os meninos e mais tarde uma formação profissional eficiente, que transformou Canhedo filho num soldador de respeito e seu irmão menor num eletricista de sucesso. Isso lhe valeu uma gratidão sem limites e a amizade que cresceu entre Loredo e o garoto mais velho, agora esse gourmet afamado.
Pôncio esteve algumas vezes com o chefe na casa da lagoa, e ultimamente levara Larissa e os meninos para um almoço regado a vinho chianti da melhor qualidade e cerveja muito gelada. Tinha sido um sábado divertido, de conversa amena e boa música, por conta de um conjunto recentemente incorporado ao grupo, que crescia sempre. Mas o que o redator-chefe visava não era só amenizar aquele período difícil da vida de um de seus repórteres mais destacados. Havia um interesse, cada vez mais claro para eles, no convívio dos amigos juízes e altos funcionários da segurança. Havia até um novo agregado, o Hartmann, comandante da Polícia Federal, pessoa de convívio muito agradável, entendido em história e sociologia, fala bem articulada e maneiras polidas, que encantou Larissa e deixou os jornalistas muito bem impressionados. A casa do Canhedo tinha esse dom de abrir novos caminhos, e não era só a comida de qualidade a responsável pelo sucesso e pelo crescimento de suas reuniões. E o sucesso era tanto que, pouco tempo depois da adesão de Pôncio ao grupo, os ágapes tinham ficado restritos aos sábados. – Não há tatu que aguente, desabafou o Canhedo para seu irmão postiço. Mas para os amigos do peito não tem dia nem hora – e isso incluía Pôncio e família.


A mensagem de Marconolo para Pôncio dizia apenas isso: sua história sobre a tragédia do estádio está incompleta. Nenhum indício de que o remetente pretendesse ajudar a esclarecer a parte que faltava, nenhum oferecimento de telefone, nada mais que isso: uma história incompleta. Aquele cara inibido, meio fóbico, não resistira a enviar um e-mail. Não se arriscava além disso, e só esse ato já lhe havia custado uma cruel luta consigo mesmo, que a consciência vencera, porque além de fóbico Marconolo era escrupuloso em seus atos. Media e pesava prós e contras, voltava a medir e pesar quantas vezes a dúvida o maltratasse. Havia uma espécie de prazer neurótico nesse processo, no vaivém da vontade, nas idas e vindas que pareciam percorrer, incessantes, todo seu corpo.
O teor da mensagem no entanto chamava a atenção de Pôncio, mais agora do que no momento em que a recebera. Envolvido pelas investidas de Lauro Munhoz e instado por Cosme, tinha examinado detidamente cada uma das mensagens conservadas na caixa de correio sobre a reportagem. Selecionou então as que lhe diziam alguma coisa e, com a ajuda de seu detetive caboclo, elegeu como a mais interessante essa que falava de uma história incompleta. Para mal dos pecados do pobre Marconolo, Cosme queria saber de quem se tratava, onde poderia ser encontrado esse sujeito de nome estranho e por que afinal enviara esse recado sucinto e enigmático sem ir mais a fundo em sua observação. – É preciso dar atenção a essas aparentes insignificâncias, coisas inexplicadas, por trás das quais há uma explicação que pode ser desde falta do que fazer de um remetente boboca a um dado decisivo que ele não explicitou. – Mas se fosse tão importante, por que o cara não entraria nos detalhes, afinal? – Vai saber por quê, disse o outro, encolhendo os ombros. As pessoas funcionam de modo muito específico, e você ficaria surpreendido se pudesse adivinhar o que se passa em cada cabeça. – Tenho uma ideia disso, respondeu Pôncio, pensando em Mônica Lessa. Eu mesmo – ia dizendo, mas se interrompeu, porque agora pensava no caso de Líria e na mancada que ele mesmo fora capaz de dar naquele dia em que quase tinha destruído as melhores amizades de sua vida. – Um cara que se dá ao trabalho de endereçar uma frase dessas a alguém, num caso como esse de sua reportagem, pode ser um lunático querendo aparecer a qualquer custo, mas também pode ser uma testemunha valiosa, que não teve a coragem suficiente para arriscar mais do que isso. Nesse caso, ele diz uma verdade importante sem identificar suas razões, deixa uma pulga atrás da orelha, e o único jeito é correr atrás dessa testemunha. Vai ver é isso que ele deseja.
Pôncio concordava com o detetive, e Castro também reconhecia a necessidade de buscar esclarecimentos que justificassem a mensagem. – Tudo nos interessa nesse caso, precisamos da verdade mais cabal, em todos os pormenores. Quanto mais detalhes e explicações de todas as circunstâncias, melhor para nós – para você em especial, Pôncio.
No momento em que Pôncio redigia a resposta solicitando esclarecimentos a Marconolo e encarecidamente explicava suas razões profissionais para tal pedido, sem entrar em detalhes de justiça e no envolvimento direto de Munhoz na história (Castro lhe explicara que esses dados podiam espantar a presa), sua mulher chorava, sozinha em casa, trancada no quarto, inteiramente dominada por uma aflição angustiada que não podia partilhar com o marido, já sobrecarregado de problemas. Pouco depois, como se adivinhasse, Líria chegava a sua casa trazendo um belo quiche para o almoço, que pretendia partilhar com a amiga. As duas se abraçaram e choraram juntas, porque, ao contrário de Larissa, ela e o marido ainda viviam a doçura da reconciliação, e Líria podia avaliar a agonia da outra, convencida de que Pôncio se desinteressara dela de uma vez por todas. – O pior de tudo, soluçava a mulher do jornalista, é que nem ao menos posso falar com ele sobre isso agora, e pode ser que tudo seja só por causa dessa maldição desse caso do senador. Mas como é que eu posso ter certeza? Ele mal olha pra mim, Líria, e eu não vou aguentar se o Pôncio me deixar. – Ai, sua boba, deixa disso, respondia a amiga, as lágrimas escorrendo aos pares, você vai ver que não é nada disso. Bem no íntimo porém, Líria temia tanto quanto ela que fosse verdade.

terça-feira

Uma história incompleta cap.13


13

Marconolo – nem Marcondes nem Marcolo – era um homem de ar austero e muito moralista. No momento em que a reportagem de Pôncio trouxe a público o lado B de Lauro Munhoz e a vida do jornalista foi envolvida num ciclone, ele perdeu o sono e o sossego. A mensagem que endereçou ao jornal fora uma encabulada tentativa de repor as coisas em seus devidos lugares. Não conseguia ver senão a verdade – ou o que lhe parecia ser a verdade – estampada naquela reportagem de um veículo de grande circulação, motivo de noticiários um tanto desencontrados e boatos de efeito. Sabia que ao menos parte da história publicada antes era falsa. Uma joia falsa muitas vezes faz mais vista que uma verdadeira, guardada no escurinho de um cofre. Mas além de escrupuloso quanto à verdade dos fatos, Marconolo era também um homem tímido, que tinha horror à publicidade. Não suportava a ideia de se expor à vista dos outros, ter sua cara exibida em uma foto ou num vídeo. Ainda mais naquele contexto perigoso. Suava frio, imaginando as consequências que poderiam advir de uma declaração sua. A coisa era genética, herança de um pai professor universitário e tão amedrontado com a vida que literalmente morrera de medo, durante a ditadura militar, quando o AI5 abriu espaço para que colegas seus fossem indiciados por incitar os alunos a práticas subversivas. O velho foi fulminado por um infarto no momento em que recebia a notícia da prisão de um de seus pares.
Olhando por esse ângulo, compreende-se que Marconolo suasse e tremesse, só de pensar na hipótese de uma denúncia contra um senador da república. E a coisa iria até mais longe, caso viesse a público o que ele sabia sobre um dos depoimentos decisivos de que a reportagem se valera. Marconolo tivera um cargo de confiança na prefeitura daquela época. Toda desídia, toda mentira, toda desonestidade lhe eram repulsivas, e no entanto convivera com essas fraquezas do ser humano durante os anos em que atuara, a bem dizer de olhos fechados, olhando em outra direção para não ver o que acontecia diante dele, a consciência torturada e oprimida, sentindo-se um verme. Deixou o cargo altamente remunerado por puro asco. Preferiu voltar ao posto antigo de almoxarife de um depósito de materiais, onde receberia duas vezes menos.
Marconolo porém sabia muito mais. Sabia também de falsidades ideológicas, tramas envolvendo segredos de alcova e até do destino de elevadas verbas malversadas. Seu medo era certamente patológico, mas não deixava de ter algum fundamento, levando-se em conta o que acontecera com Mônica Lessa, que ele e Lauro Munhoz conheceram ainda muito jovem.


Enquanto, a pedido de Cosme, Pôncio fuçava as mensagens dos meses anteriores, sobretudo aquelas das semanas que precederam a publicação da história do desastre do Rio Comprido, Larissa remoía ainda a fita da transa com Mônica – aquela devassa sem caráter, que Deus a tenha – e tentava amenizar a úlcera do marido, que ameaçava ressurgir, anos depois de ter lhe dado um susto daqueles. – Cheguei a pensar num câncer de estômago, contava ela a Líria e a Pascal, que a olhava com uma atenção notável para um gato. Tinha ido buscar os filhos de volta para casa, porque esses meninos não fazem mais nada senão babar o Pascal, nem estudar direito estudam mais. Líria sorria, encantada, e Pascal se enroscava em seu braço, meigo, como se entendesse o drama da amiga de sua mãe adotiva. – Às vezes parece que ele ri, quando os meninos vêm brincar. Um tanto desconcertada, Larissa sorria amarelo. – Tenho que voltar, Pôncio não demora e tenho que preparar a dieta para o jantar. Se deixar por conta dele, não sai do computador e não larga os noticiários. – Que horror, isso, comentava Líria. A gente vê vocês hoje à noite. Laio já programara um bom filme, desses que fazem esquecer um pouco as agruras da vida, e iria com a mulher passar umas horas na casa dos amigos.
Larissa dirigia um pouco distraída, e Cinho teve que conter um pequeno grito de susto quando um caminhão de mudanças por pouco não os abalroa num cruzamento onde o sinal acabara de fechar para eles. A mãe se voltou para o bando de trás, ela mesma assustada, – e aí, tudo bem? Desculpem, não reparei no sinal, falha nossa. Os dois se debruçaram no banco da frente. – Mãe, nunca vi você dirigir assim, disse ele, como um adulto. Paula sorriu e voltou a se encostar no banco. – Você bem que podia deixar a gente ter um gatinho. Larissa não respondeu, muito atenta ao sinal e um pouco perturbada por uma inquietação que não saberia explicar nem eles entenderiam. – É mesmo, mãe, Cinho reforçou, voltando a ser um menino de onze anos.
Chegaram sem maiores incidentes. Os dois subiram para o banho e Larissa correu para a cozinha, porque o marido não tardaria, cansado, abatido e com fome, talvez, embora ultimamente seu apetite andasse bem fraco. Pode ser que nem só o apetite, Larissa se pegou pensando. O mal-estar inexplicado continuava a perturbá-la. Tanto que acabava de fazer um corte no dedo, e ficou olhando o sangue pingar e escorrer como um riachinho novo pelo granito da bancada.

segunda-feira

Uma história incompleta cap.12

12

Não havia jeito de Pascal se acostumar com as batidas do relógio da sala de sua dona. Se estivesse dormindo – e geralmente estava – dava um saltinho e virava os olhos azulíssimos para o alto da parede. – Ele resolveu que o relógio é a ameaça maior em sua vida, e Líria morria de rir por causa da postura defensiva do filhote, que acompanhava os movimentos do pêndulo. Cinho e Paula passavam agora parte do tempo em sua casa, e já andavam à procura de um bichinho daqueles, mesmo antes de consultar a mãe sobre o assunto.
Laio também se divertia com as gracinhas do gato, e mais ainda com o entusiasmo de Líria, que ele via com uma indulgência paternal. Ultimamente no entanto a situação do amigo o preocupava mais do que tudo. As manobras do Castro lhe pareciam ineficientes. Pôncio andava abatido, com um olhar sombrio que não lhe caía nada bem. Estava habituado a ver seus olhos determinados, e se havia um cara cujo rosto podia ser definido como resoluto, esse era Pôncio. Mas o pior de tudo talvez fosse a relação entre ele e Larissa, que, eles temiam, podia sofrer algum abalo com a história do assédio a Mônica. – Não acredito, ela disse a Líria, logo no início; ele não é um homem desse tipo.
Visto no conjunto do pacote, porém, esse item era mortificante para ela. Teria preferido tudo a essa acusação, mesmo injusta. Era incômodo, deixaria qualquer mulher constrangida, e Larissa era uma pessoa naturalmente discreta e um pouco tímida. Mas naquele momento, achou que devia pensar mais no marido do que em si mesma, e tentava passar-lhe uma sensação de segurança que na verdade não sentia. Dispôs-se a testemunhar a favor dele, procurava distraí-lo e propôs uma pequena viagem que ele deixou em suspenso – quero ficar por perto, saber o que está acontecendo dia a dia. No fundo, Larissa começava a sofrer de uma dúvida bem mais difícil de suportar do que os processos e toda aquela chateação com o advogado e as conversas intermináveis ao telefone, no escritório e até em casa: e se fosse verdade? Por seu lado, Pôncio se inquietava cada vez mais com a perspectiva de que ela tomasse conhecimento da tal prova circunstancial de que Mônica falava, e que só podia ser mais uma fita nessa história. Uma bacia hidrográfica cheia de afluentes que se multiplicam, como tinha dito o Loredo, com a testa franzida.
Excetuando-se as estrepolias de Pascal e a lua-de-mel de Líria e Laio, nada parecia acontecer durante as semanas que antecederam o desfecho da primeira instância. Um processo em geral demorado, que afinal correu surpreendentemente rápido, o que só se explicaria pelo envolvimento dos interesses de um senador da república. Pôncio atravessou o tempo da espera numa espécie de hibernação afetiva que só Larissa conseguia quebrar de vez em quando e que o protegia – ou reprimia? – da ansiedade excessiva que ele não queria demonstrar. Laio diagnosticava a aparente tranquilidade do amigo como autodefesa. – Tem andado como um robô, comentava o Loredo, que também não esperava o resultado muito tranquilo.
Em parte se confirmaram os maus prognósticos quanto a Pôncio, embora o resultado tenha sido favorável ao jornal. Mônica teve sucesso contra o jornalista, considerado culpado dos crimes de que ela o acusava. – Vamos para a segunda etapa, animava-o o advogado, nada está perdido. Tenho certeza de que vamos sair bem dessa, a sujeitinha vai ver. Já encaminhamos seu habeas corpus ad subjiciendum, cara, não há por que se preocupar. Você não vai pagar por um crime que não cometeu ou eu não me chamo José Getúlio de Castro Almeida.
Pôncio tinha contado o episódio todo a Larissa, que o escutou sem interrupções e aparentemente muito serena, como se estivesse ouvindo uma história de terceiros. Ela não pode ser tão controlada assim, ele pensava, enquanto descrevia a cena, até que uma espécie de engasgo o paralisou e os dois se abraçaram. Alguma coisa ali soava como uma perda. Pôncio queria saber o que a mulher estaria sentindo, mas Larissa parecia um tanto catatônica e não disse nada. Naquela noite fizeram um amor quase violento.
— Homens como o Pôncio não podem pisar em falso, comentava Loredo, em conversa com o Castro, na redação. Não sabem como agir, não têm a manha. – Coisa rara, disse o Castro, mas há uma razão séria para isso: eles se reprimem demais e nem têm consciência disso. Acabam numa espécie de redoma invisível, internalizam de tal forma seus princípios morais que se tornam prisioneiros de alguma coisa que só depende deles, e quase sempre o corpo reclama e quer seus direitos. O resultado é que qualquer Mônica os faz escorregar feio. – Não é fácil, considerava o Loredo, ela é uma mulher e tanto, vamos reconhecer. Castro espichou os lábios e balançou a cabeça, – se é. – Mas não acho que Pôncio seja por assim dizer um cara prisioneiro de escrúpulos. Não é, não. É preciso perceber a diferença entre um cara puritano e um sujeito de caráter. Ele não tem a manha porque não tem o hábito, não por falta de, digamos assim, talento para a coisa. Conheço o Pôncio há mais de trinta anos, nos conhecemos moleques ainda, vizinhos no Grajaú. É temperamento dele, sempre foi assim. As namoradas que teve se contam nos dedos, e com cada uma delas ele foi fiel e sincero. – Um santo, disse o Castro, levantando-se e pegando a pasta. Então o castigo é de todo imerecido. Vamos tratar com carinho desse caso.


A situação de Pôncio se agravou na semana seguinte com a notícia do assassinato de Mônica Lessa, no apartamento do Leblon para onde se mudara menos de um mês antes. Estampadas em todos os jornais, e logo em algumas revistas, fotos da arquivista morta a tiros na própria cama, conseguidas por um fotógrafo furão; muitas outras fotos, oficiais ou flagrantes em festas e boates, fotos de biquíni e desfilando modelos exclusivos apareciam em praticamente todas as publicações. De um dia para outro o caso se tornou o assunto do momento e invadiu os noticiários de televisão e rádio, divulgando detalhes, alguns sem nenhum interesse concreto, apenas porque o público supostamente queria saber tudo sobre a moça. Uma celebridade póstuma, como disse o Loredo.
Uma denúncia anônima, vinda pelo telefone, apontava o jornalista como mandante do crime, e o Castro arregalou os olhos diante do fato. Isso atrasava o processo e ia criar maiores dificuldades ainda para provar a inocência de Pôncio, que em certo momento se flagrara como o inocente, e quase tinha perdido o fôlego com um acesso de riso. – Que foi? quis saber Loredo, espantado. Foi difícil explicar ao outro o que acontecia em sua cabeça, porque quanto mais tentava, mais ria.
O riso às vezes é um modo de liberar um peso que vai se tornando insuportável, como ser considerado um criminoso e ver tudo meio nublado pela frente, sentir-se ameaçado de sofrer por alguma coisa que não se cometeu. Há mesmo uma teoria do riso que nada tem de alegre, e o conceitua como uma espécie de transbordamento do que não se pode mais conter; a água que se acumula em um balde fatalmente irá transbordar, quando seu volume ultrapassa as bordas. E a água que transborda e escorre livremente pelo chão ameaça encharcar o que está pelas redondezas; já não se compara à contenção de um aquário ou de um lago, capazes de acalmar e dar prazer a quem os contempla. Um cara que ri descontroladamente desnorteia suas testemunhas, preocupa os amigos e corre o risco de passar por louco com todas as consequências desagradáveis que se seguem.
Pôncio não chegaria a esse extremo, no entanto. Segurou o riso antes que pudesse agravar sua situação. – Não se preocupem, meninos, disse, enxugando os olhos, foi só um ataque passageiro. – Já sei o que vou fazer, disse o advogado, batendo em seu ombro. Você precisa de um bom detetive. – Nós precisamos, corrigiu Loredo. – Sim, como você preferir. Ligou o celular e se afastou deles alguns passos. Voltou minutos depois com um sorriso de alegria estampado no rosto meio quadrado, que lhe havia rendido o apelido de Italiano, nos tempos de faculdade. – Cosme está chegando, anunciou, triunfante. Ninguém perguntou nada e Pôncio declarou que ia tomar um café. Loredo foi com ele.
Cosme, o detetive, era um sujeito magro, moreno, com cara de caboclo nortista; tinha uns olhos rasgados, grandes e brilhantes de chamar a atenção logo à primeira vista. Havia também o sorriso, uma iluminação de dentes branquíssimos, que às vezes ele exibia com uma expressão de alegria interior capaz de impressionar um pouco. Fora esses pormenores, o cara era econômico com as palavras e falava com voz mansa, pausada, uma fala descansada como se não pertencesse ao mundo a que devia pertencer por sua profissão. Pôncio ficou um pouco impressionado com ele, mas não muito tranquilo. O sujeito lhe pareceu estranho, talvez um excêntrico, e ele receava perder tempo, num momento em que cada minuto era crucial. Livrar-se das acusações que agora pesavam sobre si passou a ser uma obsessão, uma aflição tão grande que lhe tirava a capacidade de trabalhar e concentrar-se em qualquer outra coisa. Foi preciso um esforço sobre-humano para recuperar o autocontrole.
A primeira reunião com Cosme e o Castro, na manhã seguinte bem cedo, no entanto, lhe trouxe um pouco de sossego, ou talvez nem isso, mas de qualquer modo um princípio de tranquilidade. O detetive era um cara zen, mas não desligado da realidade. Estava atento, bem informado sobre tudo que dissesse respeito aos fatos e seus raciocínios pareciam perfeitamente lógicos e bem fundados. Ao fim desse encontro, Pôncio levava mais fé em Cosme do que no Castro, e o rapaz parecia ter percebido isso. Passada a primeira semana sem notícias, ele lhe trouxe um relatório que não só inocentava seu cliente com um álibi imbatível como forneceu material para que o advogado conseguisse livrar o jornalista da acusação, agora comprovadamente falsa. Aliviado e mais tranquilo, Pôncio ardia de curiosidade para saber com certeza de onde partira aquele imbróglio. O que afinal nem foi tão difícil.
Difícil ia ser inocentar da culpa o mais provável mandante do crime, cujo álibi, além de confuso, era inconsistente. Os indícios mais evidentes, que Cosme ia descobrindo e confirmando um a um, encontravam no entanto uma barreira de subterfúgios capazes de adiar o julgamento e as manobras legais que o dinheiro pode comprar.
— Agora não dá pra sossegar antes de jogar esse sujeito na cadeia, dissera o jornalista a Loredo. Mas o redator-chefe se mostrava reticente. – Ele tem vários queijos e muitas facas na mão – o que lhe soou um tanto enigmático. Não vai ser tão simples como nós gostaríamos. Mas vamos continuar tentando. Tanto mais que agora abriram uma CPI para averiguar os atos do ilustre. Pode ser que a maré esteja virando para o Munhoz. Embora a gente esteja do lado mais fraco, do lado de lá já está bem desgastado. Pode ser que a Mônica acabe conseguindo a vingança que tanto queria. – E se não me engano, nunca deixou de querer, completou Pôncio.

quinta-feira

Umqa história incompleta, cap.11

11

– Meu lindo, você vai me dar muita sorte, eu sei que vai – Líria repetia, olhando o gatinho que cochilava sobre a almofada, parte do enxoval comprado na véspera para fazer da vida de Pascal, o gato, um paraíso completo. Encontrou-o no jardim de seu edifício, aparentemente abandonado; não devia ter mais de um mês de vida. Era um bichinho cinzento e gorducho, e os olhos azuis e redondos que olhavam para ela como se pedissem ajuda a conquistaram sem remédio. Mais ainda se encantou quando o viu pular de susto por causa das badaladas do relógio na sala. Pascal mamava numa chuquinha de plástico, e era uma alegria sem nome ver o leite diluído em água sumir em poucos minutos. Encarregou sua nova ajudante de alimentá-lo enquanto estivesse fora de casa, trouxe vitaminas e brinquedinhos macios, dos quais ele a princípio manteve uma distância muito prudente; mas logo depois, para êxtase de Líria, fazia piruetas e dava corridinhas atrás da bola e mordia delicadamente um panda minúsculo, que logo deixava de lado, mostrando sua preferência inequívoca pela bola.
De repente a vida valia a pena de novo, e ela se sentia subitamente mãe de todos os desvalidos. Na falta do filho que não podia ter, criaria Pascal como um bebê, até quem sabe quando. Talvez até adotasse um bebê de verdade, mas isso ainda era apenas um desejo sem forma definida. Por enquanto, ela e Laio passavam pela fase deliciosa de inventar um filho de todas as maneiras possíveis. E quando a noite ia chegando, ela corria para casa e se preparava para a chegada dele como uma adolescente que ama pela primeira vez, Cleópatra se banhando em leite de cabra para Marco Antônio, como qualquer mulher muito apaixonada.
As mensagens de Mônica na secretária eletrônica do escritório despertaram várias sensações em Pôncio, algumas bem contraditórias. Primeiro, um tédio agudo, quase uma repulsa que o teria enojado, caso logo a seguir não crescesse uma curiosidade avassaladora que o empurrou para o telefone; não completou no entanto a ligação, porque uma onda de sensatez o conteve, e ele pensou no caso do senador e da prudência que seria bom manter quanto a essa mulher venal. Nesse momento alguém tocou a campainha da porta e ele foi abrir com a expectativa de quem espera alguma novidade. Quando a figura de Mônica apareceu à luz que vinha da janela em frente, imaginou que tipo de proposta iria lhe fazer e de que missão Lauro Munhoz a teria encarregado. Tudo foi tão rápido que depois seria difícil reconstituir a cena – Mônica se colando a seu corpo, os dois aos beijos no sofá e a transa intensa e apressada, logo repetida, prolongada e sonsa, em que ele mergulhou inteiramente esquecido de tudo e de todos até adormecerem, exaustos e relaxados.
Quando caiu em si, eram sete e meia da noite, e a consciência do que tinha acontecido caiu sobre ele como um golpe que o pôs de pé a caminho do banheiro. Ela o seguiu pouco depois, mas o encantamento tinha cessado, e em lugar do fauno encontrou um sujeito mal-humorado, que fechou a porta em sua cara. – Prefiro que vá se arrumar bem depressa e siga seu caminho, ele disse, como quem dispensa uma rameira. – Eu volto, ela avisou, e ele respondeu – melhor não, mas ainda ouviu a voz da moça chegando através do ruído da água – volto sim, pode ter certeza.
Saiu do banho com a cabeça pegando fogo. Ligou para casa e não teve resposta, mas logo em seguida Larissa ligava para seu celular. – Ainda está no escritório? – É, ele respondeu, vacilante. – Vamos jantar fora? A proposta da mulher o apanhou desamparado, sem saber como voltaria a olhar para ela, como devia agir agora. O episódio da tarde estava atravessado em seu corpo, em sua cabeça, e ele disse que sim, que era uma boa ideia, quase sem saber o que dizia. – Os meninos foram para a casa do Laio, parece que eles têm um gatinho agora, os dois ficaram lá – mas Pôncio não entendia bem suas palavras, e de repente lhe deu um desejo desenfreado de beijar Larissa. – Sim, meu amor, te encontro lá no Piacere.
Desligou o telefone com um misto de desespero, medo e culpa, muita culpa. Naquela noite levou uma enorme rosa vermelha para ela e não quis demorar no restaurante. Mal conseguia se controlar, acariciando o braço da mulher sobre a mesa. Larissa olhava o marido com uma espécie de deslumbramento, sentindo em seu toque uma força diferente, como se do contato da pele dos dois se desprendesse um fogo brando e persistente que ia tomando conta dela toda. Além da culpa, a escorregada da tarde tinha libertado nele um homem ainda desconhecido, que trazia o desejo à flor da pele e praticamente não deixava mais espaço para o cara sensato, jornalista respeitável e pai de família austero que tinha sido até aquele dia. Mas o que mais a intrigou foi que, na hora do amor, ele tremia e viu que havia lágrimas em seus olhos.
O dia seguinte seria inaugurado por um telefonema do Loredo, que o convocava – agora mesmo, é claro. – Alguma coisa com a fita? que foi que houve? perguntou, sobressaltado, mas o outro desligou sem responder. Pôncio chegou à redação em tempo recorde e achou que tinham lhe passado um trote, porque tudo parecia calmo e as poucas pessoas daquele horário trabalhavam normalmente. Foi à sala do Loredo, que o mandou sentar e assumiu um ar de conspirador. – Munhoz está processando o jornal, mas não é só isso, cara. Ele está processando você também. E a tal da Mônica avisou agora há pouco que entra hoje com uma ação contra você por assédio sexual e atentado violento ao pudor.
Pôncio sentiu os olhos escurecerem por alguns segundos e ficou imóvel, olhando para o Loredo. A cena da tarde anterior passou por sua cabeça como num filme. Inacreditável como podia ter caído na lábia daquela vadia. Tinha sido de uma fraqueza inconcebível, insuportavelmente idiota. Como não percebeu logo?
— Loredo, o que é mesmo que ela alega? – perguntou para ganhar tempo e poder pensar melhor. – Ora, ora, cara, ela avisou que possuía provas circunstanciais de que você a atacou ontem em seu escritório, onde foi procurá-lo para discutir a situação. – Que provas, que tipo de provas? Ele perguntou, tentando esconder o sobressalto. – Ah, não sei, ela só disse que – bom, de qualquer jeito você vai precisar de um advogado da pesada. O Castro, ia adiantando, mas Pôncio o interrompeu. – Loredo, vamos conversar primeiro. Ontem – começou, debruçado na mesa do redator-chefe. Pensava em Larissa, nos filhos, nos amigos. Pensava em tudo e todos ao mesmo tempo, enquanto contava ao outro os acontecimentos da véspera.

segunda-feira

Uma história incompleta cap. 10

10

A reunião dos quatro em casa de Pôncio e Larissa foi marcada por um clima agridoce, que com o passar das horas foi ficando mais doce do que acre e acabou em puro mel. Líria chegou com um ar meio formal e Pôncio se esforçava para ser o mesmo de um ano antes, mas acabou desistindo e sentou ao lado dela no sofá debaixo da janela, um pouco distante do centro da sala. – Líria, acho que você já sabe por que fiz questão de convidar vocês dois para virem jantar conosco hoje. Acabei de concluir um trabalho que foi penoso e demorado, que me deu dores de cabeça e ainda vai dar algumas. – Por quê? Você não ficou contente com o resultado? – Ah, sim, por esse lado estou bem satisfeito e já comecei a preparar o livro sobre a história triste desse estádio e os personagens que fiquei conhecendo por causa dela. A questão é outra. Mas não é sobre isso que pretendo conversar com você agora.
Ela se empertigou e ficou esperando. Sentia um pouco de vergonha pela perturbação causada por tantos e-mails apócrifos, meu Deus, apócrifos, parece que estou falando da escritura sagrada. Mas não era sua vez de falar. Queria ver a atitude do ex-amigo, quase amigo de novo. De qualquer jeito, não pretendia voltar a mexer naquela sopa de ódio e ressentimento.
— O que preciso muito te dizer, Líria, é que agi como uma impulsividade desastrosa e fui bastante leviano quando me intrometi na vida de vocês dois. Logo de vocês dois, que sempre foram meus melhores amigos, as pessoas a quem sempre quis tanto bem, você nem imagina, – está bem, Pôncio, vamos pular essa parte da conversa. Sei bem o que nos custou essa leviandade de que você está falando, já tive vontade de matar você, mas agora entramos em outra fase. Não vou fingir que não aconteceu nada, mas acho que é tempo de ver as coisas com outros olhos. Me dá um beijo e vamos tentar recomeçar. Trocaram dois beijos fraternais e voltaram para junto de Laio e Larissa, que conversavam do outro lado. – Já ia chamar vocês para a mesa, disse ela. Durante a entrada, Pôncio apresentou desculpas formais aos amigos, sendo devidamente perdoado. Houve um brinde de champanhe, um presente à hora da sobremesa e depois do café ele pegou o violão e cantaram juntos, lembrando um antigo hábito que vinha do tempo de solteiros. Estavam um pouco altos, e a reconciliação os tornava mais felizes do que imaginavam ser possível.
Na semana seguinte, Laio e Líria aproveitaram um mês de férias por tirar e viajaram para a França, um projeto antigo, do começo do casamento. – Acho que temos que agradecer ao Pôncio, ela disse, sendo despertada por beijos e carícias num hotel da Provença. – Isso lá é hora de pensar em Pôncio – Laio respondeu, apertando seu corpo junto ao dele, tomado de urgência.


A fita gravada com a conversa entre os três, no café Tal e Qual – que Pôncio não pretendia envolver na história, em atenção ao proprietário, um homem de boa vontade – estacionara em sua gaveta de documentos confidenciais. À falta de um cofre, ele a mantinha trancada a três chaves com um dispositivo de segurança estrategicamente colocado na parte de trás, por baixo da escrivaninha. Tinha avisado o redator-chefe, mas Loredo – assim se chamava seu chefe – preferiu amadurecer a ideia, antes de fazer alarde sobre o caso. – Vou consultar o Castro, do jurídico. Ou melhor, vamos nos reunir com ele hoje mesmo, para analisar a questão. É preciso prudência com essas coisas. Mas também é preciso aproveitar enquanto a fita está quente. Te dou um retorno daqui a pouco.
Reunião marcada, logo após o almoço Pôncio se dirigiu à sala do redator e lá permaneceu durante mais de duas horas, sem celular. Não atendeu portanto à chamada de Mônica Lessa, que ligou para ele duas vezes e deixou mensagens um tanto ofegantes na secretária eletrônica do escritório. Também não recebeu o recado de um assessor de Lauro, querendo marcar “um encontro de seu interesse”. Tentava acompanhar em todos os detalhes os pareceres do Castro do jurídico e suas instruções quanto aos possíveis riscos a que a operação toda expunha o jornalista e, mais remotamente, mas não de todo remotamente, sua família. – Mas então o Lauro é um bandido, chefe de quadrilha ou coisa assim? Castro olhou para ele através da fumaça do parliament que nunca abandonava, – puxa, Pôncio, que foi que você bebeu na hora do almoço? Um cara que se envolve em tais, digamos assim, negócios é obviamente um bandido, um escroque, meliante que só difere do chefe do tráfico na favela pela roupa que veste e pelo lugar onde mora.
Pôncio imaginou que o advogado o considerasse um panaca completo, e tentou remediar a má impressão. – Para um senador da república sequestrar a família do jornalista que revelou seus podres à nação é de um baixo nível lamentável. – E ele é de um baixo nível lamentável. Ele é o fruto de séculos de políticas de educação e de trabalho calculadamente insuficientes e falhas, destinadas a manter os eleitores no nirvana dos alienados e garantir duas coisas fundamentais aos lauros munhoz da vida: carência econômica que os mantenha à mercê de uma esmola para sobreviver e incapacidade para processar corretamente as informações que chegam até seus ouvidos, muitas vezes já deturpadas. Eleitor não pode dispor de capacidade crítica. Toda notícia que ouve deve ser imediatamente avaliada segundo um critério único e exclusivo, que consiste em tentar descobrir em que os acontecimentos podem servir a suas necessidades e como tirar algum proveito deles. E os lauros alimentam esse estado de coisas, porque sem isso não conseguiriam chegar aonde querem. A desgraça dos famintos é a fortuna dos lauros, de modo que eles são os primeiros a incentivar essa atitude em suas campanhas e nos contatos diretos com a turba. No senado, na televisão ou nas declarações para o grande público, mantêm uma pose condigna e mentem tanto que se mentira matasse não conseguiríamos manter um só poder constituído nesta terra. Mas são esses eleitores que garantem a carreira e as venturas de nossos legisladores, de grande parte do executivo e por tabela as dos juízes e funcionários seus protegidos e corruptos como eles mesmos.
Loredo se mexia na cadeira, meio ansioso, e Pôncio teve um leve arrepio diante do quadro dantesco. Não ignorava a realidade crua da política de seu país, mas as palavras um tanto exaltadas do Castro tiveram um efeito de quase susto sobre ele. Pensou na família, nos filhos indo e vindo da escola, do inglês, da academia, da natação. Esteve a pique de dizer que preferia então destruir a tal fita e deixar tudo assim mesmo – mas assim mesmo como? Não poderia agora sair desmentindo a matéria que havia assinado com tanto entusiasmo e que pretendia aproveitar para um livro que, ele acreditava, lhe traria alguns trocados muito bem-vindos e, tinha esperanças, elevaria seu nome à galeria dos jornalistas de primeira linha.

sexta-feira

Uma história incompleta cap.9

9

Larissa apareceu na companhia em que Líria trabalhava, pouco depois das duas horas da tarde, com uma expressão marota, parecendo muito feliz. – Surpresa! – disse, da porta da sala dos recursos humanos, com um buquê de rosas-chá tão lindas, que a outra abriu a boca de puro espanto. Abraçaram-se como se não se vissem há anos, e Líria, ainda sem palavras, convidou-a a sentar numa das poltronas junto à mesinha de centro, no canto onde costumava entrevistar os casos mais complicados. – Meu Deus, quanta beleza, disse, contemplando as flores. Preciso de uma boa jarra – e foi até o interfone. – Hoje é dia de festa para mim, disse Larissa. Fiquei sabendo da novidade e saí na mesma hora para te dar um beijo. – Ficou sabendo? – É, o Laio me ligou, feliz da vida. A outra baixou um pouco a cabeça, com ar modesto. – Ah, a gente ainda nem entrou com o requerimento de anulação do pedido de divórcio. Estávamos esperando se completarem os dois anos da separação, porque antes disso não é possível se divorciar. No início... – Ainda bem! Essa lei é bem sábia. Porque depois de concedido, não há como anular. Ainda bem! Líria sorriu pela primeira vez. – Ai, Larissinha, estou tão feliz! – mas logo se lembrou da história toda, da culpa de Pôncio, e não disse mais nada.
Larissa percebeu o que passava por sua cabeça. Mais do que uma intuição, leu na expressão da amiga o ressentimento ainda bem forte, o esforço para não demonstrar o que sentia. – Estou aqui também em uma missão diplomática, disse, sorrindo. Pôncio me pediu que falasse com você, que desse a ele uma chance de tentar apagar o mal que causou. E acrescentou, diante do gesto vivo de Líria, antes que ela pudesse dizer alguma coisa – está disposto a te pedir perdão, pedir perdão a vocês dois, e quer marcar um encontro lá em casa, se vocês concordarem. O silêncio não impediu que Larissa repetisse o convite, dessa vez junto de Líria, abaixada ao lado de sua poltrona. Não havia outro jeito, era preciso aceitar o armistício. Depois se veria como as coisas iam ficar.


Para sua surpresa, Pôncio chegou ao café e encontrou Lauro Munhoz sentado a uma das mesas laterais na companhia de Mônica Lessa. Faltavam ainda vinte minutos para as seis horas. Procurou o dono da casa com um rápido olhar, mas não o viu atrás do balcão. A mesa de fundo lá estava, com a placa de reserva. Lauro ficou de pé para receber o jornalista. Mônica não parecia contrafeita e cumprimentou-o até com certa alegria. O senador esperava que ele sentasse, mas Pôncio preferiu mudar o rumo que as coisas estavam tomando e convidou-os a segui-lo. – Reservei um lugar mais discreto para nossa conversa, senador. Creio que vai gostar – e encaminhou-se para a mesa escolhida, desejando que o gravador estivesse lá. Munhoz pareceu surpreso, titubeou um pouco, mas a atitude resoluta e gentil do jornalista não lhe deixava outra saída senão fazer sua vontade. Na verdade, Mônica parecia mais surpresa que ele. Pôncio esperou que todos sentassem e ocupou seu lugar, fechando um triângulo nada amoroso. Mantinha uma expressão cordial, porém um tanto solene, e observava os dois, que recebiam mais luz que ele, graças a uma lâmpada discreta e providencial, embutida na coluna, que casualmente lançava seu foco sobre as duas cabeças. Esperou que Lauro falasse primeiro. Olhava-o de modo encorajador, e o senador não demorou a começar um discurso cauteloso de meias-palavras que o bom entendedor ia decifrando sem dificuldade. Mônica estava muda e, agora sim, parecia meio embaraçada.
O ex-prefeito, ou prefeito do estádio, como ficou conhecido na época do desastre – por conta do qual havia perdido feio para o concorrente da oposição na eleição seguinte – tentava achar uma brecha, talvez um momento em que o rosto de Pôncio estivesse menos atento, os olhos menos perscrutadores, fitos nos seus. Limpou os óculos, pigarreou, ajeitou-se na cadeira. – Sou todo ouvidos, senador – disse Pôncio, que começava a achar aquilo divertido. Mônica dava sinais de inquietação, e ele percebia os gestos acelerados com que acendeu um cigarro e logo o apagou com a sola do sapato. – Lauro, disse ela, a certo ponto, sem conseguir se conter, deixa que eu falo com ele. Pôncio vai entender.
Olhou para ela à espera de uma surpresa. Suas intuições não costumavam deixá-lo na mão. Então o arquiinimigo agora era de novo Lauro, nesse tom ameno, até meio meloso com que ela o pronunciara. Mentalmente via os dois numa conversa que pouco a pouco ia se tornando mais amistosa; via também alguma coisa que corria das mãos do senador para as dela, e via um sorriso e uma troca de olhares. Esperou que ela por sua vez se ajeitasse melhor, – Essas cadeiras parecem meio incômodas, não? – ele disse, num tom inocente, e ela sorriu sem vontade, – Não se preocupe, está tudo bem. Tomou fôlego – com muita graça, como Pôncio pôde observar – e continuou a falar suavemente da antiga amizade – fomos como irmãos – e de sua inconformidade diante daquele mal-entendido todo. – Cheguei realmente a pensar que Lauro havia surtado, quando percebi que fugia de falar comigo e me deixava naquele sufoco, sem recursos para salvar minha mãe, coitada, que Deus a tenha. De um relance, pareceu a Pôncio que ela ia chorar, mas logo retomou o controle e continuou falando sobre um sofrimento atroz e a falta que aquela amizade iria fazer em sua vida, até que se revoltou e decidiu tomar uma atitude radical contra ele. – Agi de acordo com meu senso de justiça, mas nós não somos mesmo ninguém para julgar os atos alheios.
A esse ponto, acreditando que tinha acertado em cheio em suas suposições, ele observou a expressão embevecida com que Lauro Munhoz a contemplava. A coisa já foi longe, concluiu para si mesmo, e agora passamos do suborno à chantagem emocional – uma mulher sozinha e carente, um cara com cacife para reconquistá-la em nome do passado e uma ou duas noites de amor bandido. Agora o senador tecia sua lenga-lenga e deixava transparecer um coração tão sensível que Pôncio teve vontade de lhe dar as costas. – Ninguém sofreu tanto quanto eu com aquela tragédia – ousou afirmar, mas diante do olhar severo do jornalista aliviou um pouco o tom e emendou – a não ser é claro aquelas pobres famílias enlutadas e os que morreram ou se feriram gravemente no sinistro.
Um homem que chama aquilo de sinistro numa conversa de café merece cadeia, pensava ele, quando Mônica desferiu o golpe final sobre sua ira, que se tornava difícil de conter, – eu e Lauro conversamos muito, durante horas, antes que ele tomasse a inciativa de procurar você. Eu o encorajei, disse a ele que você é um homem de bem, um cara ético, e que na certa compreenderá, afinal nem tudo na vida é o que parece ser, e quando nos enganamos devemos ter uma chance de corrigir nossos erros. É o que estou tentando fazer. E mesmo sabendo o quanto é difícil voltar atrás, depois dos atos que cometemos, estou disposta a desmentir minhas declarações sobre o Lauro – e os dois deram-se as mãos descaradamente.
Pôncio olhou para ele e perguntou – quanto o senhor vai me dar para desmentir minhas declarações também? – ao que o ex-prefeito teve um gesto difícil de definir, antes de enfiar a mão no bolso do paletó e lhe estender um cheque de dois milhões de reais. Pôncio olhou a assinatura do cheque, mas não era o nome de Lauro que constava na última linha à direita, e a conta pertencia a uma firma de que nunca ouvira falar. Então devolveu o cheque ao senador, – não aceito cheques, doutor Lauro, e este indagou, com voz clara e cordial, – prefere então em espécie?

***

Na cantina da companhia, Líria falava com Ana Rosa e Marlon sobre a reconciliação. – Você tinha dito que os laços não tinham sido só desfeitos, que estavam cortados a tesoura e não havia volta, lembrava Marlon, com certo mau gosto. – Foi um tombo, uma decepção. Achei que Laio estava convencido de que era um corno, que tinha tomado aversão a mim. – E o que foi que ele fez esse tempo todo? Ela agitou a cabeça numa negativa enérgica, – não sei, mas também não estou interessada em saber. Nem durante o tempo em que acreditava que não haveria volta possível me preocupei com isso. Ninguém me informou de nada a esse respeito, e se alguma coisa de sério tivesse acontecido na vida dele, eu na certa ficaria sabendo. – Ah, é verdade, confirmou Ana, os abutres adoram uma fofoca. – Isso não foi problema para mim, e não vai ser agora. Ele é um homem, pode ter se virado por aí, não vou sair investigando. Também senti falta de uma trepada de vez em quando. Fui eu quem o expulsou de minha vida, não tinha como reclamar. Se ele fez isso, acho que não foi nada para durar, não criou outros laços, mas pode ser que tenha obedecido à natureza, não sei. Lembrou então da natureza de Marlon, e olhou para ele, que lhe pareceu pensativo. Mas o que estava dito não tinha como ser apagado. – Está na hora, disse Ana, levantando e dirigindo-se à caixa.


quarta-feira

Uma história incompleta Cap 8



8

– Sofre-se muito com a solidão, especialmente quando não era desejada, ele disse, e de imediato se arrependeu. Não pretendia queixar-se da vida nem provocar a piedade dela. – Acho que há coisas muito piores, como a ingratidão, a injustiça, o abandono, ela respondeu, pousando a xícara sobre o pires. Laio não se moveu. Se depois de doze meses era isso que tinha a dizer, então – Mas me conta como está sua vida, ele disse, e Líria deu de ombros. – Não há nada pra contar. Vamos direto ao assunto. Estou pensando em acionar o seu amigo, e preciso ter certeza de que você não vai ficar contra mim e depor a favor da figura. Ele a olhou longamente e balançou de leve a cabeça. – Preferia que você não fizesse isso. As palavras lhe saíram lentas e num tom mais grave do que o habitual. – Por que não? Aceito a acusação, abaixo a cabeça e consinto em ser aquela mulher traidora que ele inventou? Ou você se recusa a – Calma, Líria. Não me recuso a coisa nenhuma. O que houve com a gente foi uma intromissão infeliz de um cara bem intencionado. Daquelas boas intenções que vão para o inferno, como se diz. – Ah, entendi. Então é preciso poupar o pobrezinho. – Não, nada disso. Não é isso, tenta entender. Fazer reviver uma história mentirosa pode ser pior do que ficar calado e deixar que ela seja esquecida. Um processo é um desafio. Se você ganhar, a reputação dele como jornalista fica seriamente prejudicada. Se ele vencer, você fica para sempre tachada de adúltera, mesmo que não tenha sido verdade. – Mas o que eu mais quero é ver a reputação daquele canalha rolando pelo chão.
Laio se debruçou sobre a mesa e olhou-a nos olhos. – Mas ele, aquele canalha, como você está dizendo, não é mais o mesmo. Está em dúvida quanto ao que fez, acha que pode ter-se enganado em relação a você. – Ele te enrola e você acredita. Estive com teu amigo há uma semana, e ele me tratou com aquela superioridade arrogante de sempre. Se inventou essa história foi pra te tirar do páreo, pra te envolver de novo, como já fez antes. – Não é verdade. Estive com ele depois da tua visita. Me fez ir ao estúdio para conversar, mostrou-se arrependido e inseguro. Bancou o durão com você, provavelmente pra não te dar o gostinho da vitória, e deve estar se sentindo mal com tudo isso. Eu mesmo saí de lá irritado com ele, fui duro, deixei o cara falando sozinho. – Acho interessante que só agora você se irrite. Ele destruiu nosso casamento, arruinou tudo que nós tínhamos, e que não era pouco – ou era? – Então, Laio disse, tocando pela primeira vez em sua mão, em nome de tudo que nós tivemos, desiste dessa ideia.
Pode ter sido só uma impressão, quem sabe um desejo velado, mas pareceu-lhe que ela estremecia ao toque de sua mão. – Se tudo não passou de um engano, vamos tratar de esquecer, acho que é o melhor para nós todos. Líria resistia, não queria desmoronar assim aos olhos dele. – Se um ladrão tivesse levado nosso carro ou nossas joias, na certa teríamos registrado o roubo e tentado reaver o que era nosso. Laio estreitou a mão dela, que agora certamente tremia dentro das dele. – Não há termo de comparação entre o que nós perdemos e o carro e as joias. – E além disso, ela falou depois de alguns minutos lutando para não chorar, nós nem tínhamo joias. As primeiras lágrimas correram quando Laio se inclinou para beijá-la. Foi um beijo intenso, longo, que chamou a atenção das poucas pessoas em outras mesas.
A quinta e última parte da reportagem de Pôncio sobre a tragédia do estádio trazia o depoimento de Mônica Lessa e os documentos que ela pacientemente conseguira recolher e incriminavam Lauro Munhoz com dados agora irrefutáveis. Pôncio estava satisfeito, mais que satisfeito com o resultado da pesquisa e a eficiência de Mônica, que afinal mostrava a que viera.
Tinham convivido quase diariamente durante essas três semanas. A cumplicidade e o companheirismo, insinuados desde o primeiro encontro, agora eram laços quase sensíveis que transpareciam nos olhares, nas entonações da fala e até, em alguns momentos, em toques físicos – um abraço mais longo do que pede a etiqueta, um aperto de mão que se demora, o beijo supostamente fraterno que hesita um momento entre a face e a boca. Pôncio estava bem consciente da atração que crescia entre os dois. Isso o preocupava e deleitava em porções tão equivalentes que seria difícil prever a atitude a tomar daí em diante. O trabalho estava feito, não havia razão para continuar encontrando Mônica. Longe dela, na certa tudo se diluiria em distância e esquecimento e nada iria mudar na vida dele. Era cedo para tomar qualquer decisão, mas talvez fosse tarde para deixar que ela se distanciasse sem uma palavra sobre o fato.
O que deveria ser o último encontro, mais comemorativo do que de trabalho, deu-se no fim da tarde da terça-feira depois do encerramento da série. Na segunda do encerramento, um grupo da redação se reunira com ele para um chope e Larissa tinha participado da festinha. Tudo estava bem dosado, os ânimos alegres, e na volta ela preparou o ambiente, vestiu-se para trazer de volta as noites de alguns anos antes e envolveu o marido num jogo de carícias sem limites. Ele nem pensou em resistir. Larissa ainda o atraía bastante, apesar do tempo e da rotina. Deixou-se levar de volta ao paraíso que haviam conhecido nos primeiros anos, quando a visão da mulher o atirava numa espécie de vertigem. A luz da manhã não os despertou, e se não fossem as batidas de Cinho à porta do quarto, talvez tivessem dormido até o início da tarde em que Pôncio iria ao que, ele decidiu assim que abriu os olhos, seria o último encontro com Mônica Lessa.
Quando chegou ao escritório naquela tarde encontrou um envelope que alguém havia jogado por baixo da porta. Estava endereçado à redação do jornal, carimbado com um urgente em grandes letras vermelhas. Preso por um clipe, um bilhete manuscrito avisava que o envelope tinha sido entregue na noite anterior. Abriu com certa apreensão, imaginando o que poderia ser aquilo, e quando deu com o nome de Lauro Munhoz Clemente no papel timbrado sua curiosidade ensombreceu um pouco. Depois das flores vêm os ossos, pensou, largando-se na cadeira de braços para saber o que desejaria o senador. O bilhete dizia apenas: Ao jornalista Pôncio Rodrigues de Mattos. E mais abaixo: Prezado sr., gostaria de agendar uma troca de impressões, que acredito produtiva, a respeito de seu brilhante trabalho de reportagem publicado na série ora encerrada em seu jornal. Peço-lhe que compareça ao café Tal e Qual, esquina da rua Raul Pompeia com Júlio de Castilhos, hoje, dia 29 de setembro, às 18h. Desde já agradecido, L.M.
Pôncio balançou a cabeça e suspirou até deixar os pulmões flácidos, completamente esvaziados. Que arrogância, pensou. Depois lhe ocorreu que o sujeito talvez tivesse vindo ao Rio só para cuidar desse assunto, mas logo resmungou – não é possível, ele deve ter assessores saindo pelo ladrão, por que viria pessoalmente? A não ser que as intenções sejam tão escusas que não tenha tido coragem de encarregar alguém da – entrevista? entrevero? Ligou para a redação e chamou Caio Benévolo, encarregado de uma coluna de fofocas políticas. – Você é um jornalista de certo prestígio, Pô. Ele não ia se arriscar a mandar alguém no lugar. – Obrigado pelo prestígio, mas o que eu quero mesmo é saber como pegar esse peixe no pulo. O outro fez um silêncio de alguns segundos, e depois disse apenas – leva um gravador e registra tudo que ele disser, ora. - E se estiver com um gorila e me revistar no banheiro? Caio riu, mas concordou – é, pode até ser. Faz uma coisa: pede ao cara do café pra instalar o gravador debaixo do tampo da mesa. – E o brucutu não vai manjar esse truque? – Aí é jogar com a sorte, cara.
Chegou ao café Tal e Qual às três da tarde e procurou o dono. – Vou lhe pedir um favorzinho, disse, depois de se identificar. Posso até lhe oferecer uma chamada na seção de gastronomia do domingo, que tal? Estendeu o gravador ao homem, que de repente se tornara muito atento. – Quero reservar uma mesa para as seis horas, e gostaria muito que desse um jeito de prender esse aparelhinho debaixo do tampo, lá pelas cinco, depois que colocar a placa, para evitar que alguém ocupe a mesa à última hora. Pode deixar ligado, a pilha está nova. O dono do café se endireitou e pareceu refletir por um instante. – Senhor, o que é que está acontecendo? Alguma investigação sigilosa? Tem envolvimento com a polícia? – Nada disso, amigo. É só uma brincadeira com um amigo. Uma surpresa. Pode ficar tranquilo, é só isso mesmo. Não se preocupe, tem minha palavra. Vamos escolher uma mesa que não fique muito à vista, propôs Pôncio, sentindo que o sujeito vacilava, desconfiado. Levou-o até uma mesa de fundo, meio disfarçada por uma coluna larga de mármore. – Pode ser essa aqui. Depois que eu e meu amigo sairmos, por favor, deixe passar uma meia hora – não antes disso – retire o aparelho de lá e guarde que venho buscar logo em seguida. Mas não entregue o aparelho a ninguém, por favor. Como eu disse, é um pequeno favor que vai lhe render uma propaganda inteiramente grátis.