sábado

A rede




           


A Armando doía como uma perda a conquista de tanto território, chão espelhado, paredes coloridas. Desde a véspera sentia calafrios, a cabeça estourava a cada movimento. Nem do balcão do quarto, que ela chamava de varanda, ele gostava, por causa da grade fria, escura e de arabescos exatos, que aprisionava a paisagem verde em outro lado do mundo. Não relaxava na cama e seu desejo gritava por uma rede que tinham deixado no apartamento antigo.
O apartamento antigo ficava numa ruazinha pequena em Laranjeiras. As janelas dos fundos davam para umas árvores e ele tinha pendurado a rede diante das folhagens de aparência tenra, sempre novas, e sonhava que balançava debaixo dos galhos como quando era criança em sua terra natal. Estava aposentado por causa de uma doença de nome esquisito e tinha dado muita sorte com dinheiro: dias antes de sair a aposentadoria, caiu em suas mãos um prêmio de loteria, um prêmio grande o bastante para tudo aquilo que Angélica tinha inventado, dando pulos de alegria. Nunca mais dormiria sossegado, nunca mais teria uma rede debaixo das árvores do sonho. Naquela nova casa tão grande não havia espaço para sua rede. As árvores ficavam distantes, a paisagem não o incluía e tudo era lustroso e cheirava a tinta.
Angélica não acreditava nele. Queria que ajudasse a pendurar os quadros, empurrasse móveis detestáveis, atendesse ao telefone que não parava de tocar. Angélica ria, multiplicada em braços, dava ordens aos homens da mudança e tomava providências que lhe pareciam confusas, repentinas, que não chegava a entender. Nem queria.
Fechou os olhos com força diante da janela e quando os reabriu houve um segundo de espanto, como se tivesse uma pedra num ponto qualquer entre o estômago e o esterno. Um momento solto no fio do tempo. A paisagem se moveu e estacou como uma criança brincando quando ele abriu os olhos. Sentiu náuseas, os calafrios voltaram. Um inimigo oculto teria sido mais confortável, pensou, passando a mão na testa. Havia um inimigo dentro dele, e Angélica não tinha culpa disso. Sua culpa não ia mais longe que a medida da sala.
Estirou-se na cama sem lençol e tornou a fechar os olhos que ardiam. Se ao menos dormisse, pensou de novo, mas o pensamento ia além das palavras, percorriam um terreno secreto para si mesmo, onde havia talvez muita lama pelo chão. Faltava até o desejo da rede. O corpo estava imóvel, mas dentro dele havia uma aflição que o fazia girar e se agitar sem descanso num lugar interior. A qualquer momento, sabia, alguma coisa incontrolável podia aparecer. Não seria capaz de identificar o quê. Estava cansado demais para responder à voz que vinha de longe, amortecida por uma espécie de ruído insistente que era como uma cortina entre ele e o mundo exterior. Desistiu de ouvir o que ela dizia, desistiu de tudo e deixou-se mergulhar numa penumbra morna que rodeava sua boca como água.
Ainda notou quando ela apareceu na porta do quarto e perguntou alguma coisa. Viu seus olhos muito abertos e um silêncio escuro foi engolindo tudo – Angélica, a janela da prisão, o teto com uns desenhos intrigantes – até que não viu nem ouviu mais nada. Não ia morar naquela casa hostil. Estava de novo balançando de leve na rede do Norte, tão macia que era como não estar em lugar nenhum.