quinta-feira

Papai Noel não existe



                                                                        Imagem sem nome de autor


Espécime ambíguo e pouco confiável que é o ser humano. Investimos recursos incomensuráveis para fazer a guerra – que é o jeito oficial e socialmente aprovado de dar vazão à fera que vive em nós. Os fora-da-lei apostam a vida – e de um modo ou de outro a perdem – no jogo da violência e da força bruta; outros, como os políticos desprezíveis e os servidores públicos de mau caráter que conhecemos tão bem, usam os cantos menos claros da lei para arquitetar golpes milionários, enquanto falta o mínimo para que tantos possam viver com decência. Quantas maneiras existem de matar?
Parece bem verdadeiro que o coração não se perturba com o que os olhos não veem. As equipes econômicas trabalham com abstrações e eternos métodos de ensaio-e-erro, dando seu jeito de fugir ao óbvio com ar de quem sabe tudo. Seus saberes passam ao largo das necessidades primárias de dar de comer a quem tem fome ou criar condições que facilitem a todas as camadas da sociedade o acesso a uma vida digna. Interesses mais altos se levantam, e além disso existe esse ser metafórico e mutante a que chamamos mercado – álibi perfeito para legitimar a ganância dos mais fortes.
Enquanto isso, com a cabeça ainda povoada de transcendências esgarçadas, a gente cria programas inócuos de nomes tocantes, campanhas de efeito fugaz e abraça o Pão de Açúcar invocando a paz. Como se a paz fosse um orixá e não um estado de espírito. 
Mas afinal, quem somos? Será que von Trier foi pessimista demais quando construiu sua Dogville?

terça-feira

Santa, Noel e as renas




Neste ano Papai Noel não saiu no trenó de renas, que as crianças adoram ver desfilar do alto de suas janelas. Repassou a correspondência volumosíssima a seu assistente imediato, encarregado de vestir o uniforme vermelho e cruelmente quente na noite do dia 24, para levar os presentes dos filhos da classe A, normalmente uma tarefa do chefe. Neste ano o assistente acumulou as entregas com as da classe B, sua atribuição regulamentar. Outros dois assistentes são encarregados respectivamente das crianças de classes C e D, além de um quinto, que coordena os trabalhos e orienta os componentes da equipe quanto a endereços difíceis de encontrar.
Impossível precisar dia e hora, mas tudo parece ter começado com São Nicolau, um bispo grego da cidade de Mira, que gostava de distribuir presentes aos pobres. Venerado por várias igrejas cristãs, é padroeiro de muitas profissões (incluindo os ladrões), crianças e estudantes em diversos países do Leste europeu; padroeiro de Nova Amsterdam, primeiro nome da cidade de Nova York, e da guarda dos imperadores bizantinos, encarregados de zelar por suas relíquias. De tão conhecido e estimado, acabou sendo identificado ao velhinho de roupa vermelha e barbas brancas – Santa Claus – que segundo a tradição distribui presentes na véspera do Natal a todas as crianças de bom comportamento. Até aí vai a lenda, porque a gente sabe muito bem que bom comportamento é uma exigência retórica, sem muita ligação com a realidade.
Há décadas Noel faz esse trabalho com grande satisfação. Terminadas as entregas, gosta de ver as carinhas saudáveis e bronzeadas dos meninos ricos diante da árvore iluminada e dos embrulhos, que rasgam com pressa de ver aparecer jogos eletrônicos, livros, bonecos, bichos, instrumentos de música, trenzinhos, bicicletas. Gosta em particular de ver a excitação dos mais taludinhos diante de jipes, cartes e motos. Até barcos e asas delta Noel tem entregado a garotos que mal entraram na adolescência, e sabe deus como irão usá-los. Alguns desses presentes o deixam mesmo apreensivo, mas é preciso cumprir sua missão com o mesmo ho ho ho para todos.
De acordo com a versão americana, Santa mora em sua casa no Polo Norte. Pela versão britânica, vive nas montanhas de Korvatunturi, na Lapônia, com Mamãe Noel – invenção de autores americanos – incontáveis elfos e oito ou nove renas voadoras. Uma figura anacrônica. Foi principalmente por causa do interesse comercial nos festejos de Natal que a imagem de Papai Noel ganha vida e vem falar com as crianças em shoppings, lojas e nas ruas do mundo todo. Alguns pais reforçam a lenda na noite dos presentes, para provar aos filhos pequenos a existência do velhinho de vermelho. Devia ser muito grato aos fakes que ganham uns trocados para confirmar sua existência e impedir seu ostracismo. Mas uma pessoa de existência perene não se preocupa muito com isso. Afora sentir-se quase equiparado a Deus, e portanto satisfeitíssimo consigo mesmo, deve achar bem chatos os humanos convencionais.    
Neste ano, Noel entrou em recesso, como a maioria dos funcionários públicos, parlamentares e empregados qualificados das empresas em geral. Mas ao contrário desses, seus dias de folga não foram motivo de alegria nem serviram para lindos passeios ou aventuras gastronômicas especiais. Nem pensaria em viajar nas últimas semanas do ano. Esteve todo o tempo ocupado em resolver os itens de seu litígio com a senhora Noel, pessoa de trato difícil, reunidos cada qual com os respectivos advogados para redigir os documentos da partilha dos bens e fixar a pensão dos filhos – dois gêmeos de onze anos que, à meia-noite do dia 24, receberam seus presentes pelas mãos do encarregado da classe média baixa à qual pertencem.
O problema familiar de Noel jamais atormentaria Santa. Mamãe Noel, sua senhora, séculos mais jovem, deve ser uma espécie de Virgem Maria. Ainda que fosse atingida pela morte, ressuscitaria inteira e mais viva que antes. Não subiria ao céu, e sim ao Polo Norte, para continuar sua existência naquela casa confortável e alucinatória. No mundo deles, nenhuma dificuldade. Talvez nem mesmo o dinheiro seja conhecido por lá. Quem convive no próprio quintal com figuras tão exóticas está acima dessas mesquinharias. A história não especifica até que ponto sua vida pode ser divertida, mas é difícil imaginar o tédio morando com eles. Talvez no período que vai do fim de janeiro ao início de novembro, quando começam as atividades locais. Ou não. O tédio deve ser um triste privilégio dos humanos, que precisam viver inventando agitos, festas e toda espécie de lazer e armações para não mergulhar na mesmice. Mas é difícil entender de que se ocupa um aposentado sem benefício na Lapônia.
Noel é um cara sensível, preocupado com a alegria das crianças, sempre atarefado em encontrar as coisas que lhe pedem antes do dia marcado. Seus ajudantes seguem seus passos, aprendem com ele a respeitar o desejo dos filhos dos outros como se fossem deles próprios. É verdade que nem todos os noéis de shopping e de rua têm tanto caráter. As falsificações se desdobram e crescem a cada Natal. Isso não o abala nem faz esmorecer. Noel incorporou sua missão e nunca relaxou, quando se trata do 24 de dezembro e dos dias que precedem o mês dos presentes.
Agora no entanto, pela primeira vez em toda a longa carreira, foi preciso delegar as funções que, de tão bem executadas, parecem determinadas pelo próprio Santa. Noel não é tão velho assim, não chegou a conhecer seu protótipo na ativa, mas ouviu muito falar dele, pesquisou e leu tudo que pôde a respeito. Quando a mulher lhe comunicou que decidira separar-se, quase caiu com o choque. Imaginava que, sendo ele quem era, também a senhora Noel se assemelharia àquele arquétipo de mulher perfeita e imperturbável.
Os personagens das lendas têm sua própria realidade, e até suas agruras, como os deuses antigos. No caso dos Santa, embora poucas coisas possam perturbar uma pessoa sem medo da morte, talvez tenham algum trabalho com uma rena de asa quebrada, um elfo de mau caráter, sabe-se lá. É complicado falar sobre a vida desse casal tão irremediavelmente bem ajustado. Não se sabe se tiveram filhos ou não. A palavra separação, porém, não consta com certeza do vocabulário deles, por inútil e até inexistente no dialeto lapônio.
O episódio da separação tem servido a Noel como parâmetro da distância, quase ou mesmo infinita, entre eles e os Santa. As duas semanas de preparação de ações, consultas jurídicas e sofrimento profundo, que precisa disfarçar diante dos meninos e dói ainda mais por isso, têm como agravante o sentimento da injustiça, da falta de equidade entre pessoas de funções idênticas e levadas a cabo com um perfeccionismo que vai muito além da simples competência. E essa agonia ainda vai durar pelo menos uns dois anos, até que tudo fique ajustado e os recursos e instâncias se esgotem. Sem falar na questão da partilha, que o preocupa e desanima. Não tem mais idade para recomeçar a vida, e seus bens, já tão poucos, serão reduzidos à metade ou menos que isso, na pior das hipóteses.
Santa é sem dúvida uma figura de recluso. A notícia de sua imortalidade deve ser uma das invencionices tão comuns em tais casos. Sabemos que as pessoas que somem de circulação – em geral artistas ou homens públicos a) cansados de bajulações e da incompreensão das massas e da mídia e b) fugindo de alguma sanção legal – deixam em seu rastro uma aura de mistério e um monte de boatos. O exemplo mais grandioso desse fato foi o Deus do Antigo Testamento, que vivia dialogando com os humanos ou distribuindo carões e castigos horrendos; passado aquele período assustador recolheu-se ao Paraíso e não interferiu mais na vida dos humanos senão de forma indireta e ambígua, deixando margem a teorias, cada vez mais populares e difundidas, que negam ou levantam graves dúvidas sobre sua existência.
Nunca passou pela cabeça de Noel tornar-se um recluso. Não é um homem sofisticado a esse ponto. Sua visão de mundo inclui a necessidade de trabalhar – é contador, na vida civil – e se resolvesse abandonar tudo para ficar em casa provavelmente iria acabar passando fome. Mesmo sua pequena empresa natalina, taxada pelo super simples, nasceu da necessidade de uma fonte suplementar de renda, antes de se tornar aquela paixão quase religiosa. O lucro não é lá essas coisas, mas serve como substituto do 13º. Em termos de preferência pessoal, ele na certa se dedica com mais amor e prazer aos afazeres do fim de ano. Daí a identificação crescente com Santa e a angústia profunda que o tomou diante do comportamento da mulher, tão em desacordo com a verdadeira senhora Santa.
Na impossibilidade de criar as renas da verossimilhança, Noel dá um jeito de encomendar pequenos veados-mateiros a um amigo do Centro-Sul, e todo ano os atrela a uma carrocinha, dessas que, puxadas por bodes ou pôneis, dão voltas nas praças para divertir as crianças. Conseguiu até uma licença especial do Ibama, com a condição de devolver os bichos a seu habitat natural depois da noite de natal (despesas por conta o amigo fazendeiro). O único problema é a falta das galhadas, e ele chegou a pesquisar a sério, esperando encontrar algum tipo feito em plástico, quem sabe. Impossível conseguir asas, mas os chifres lhe pareciam indispensáveis para criar uma cenografia aceitável e impressionar as crianças nos curtos percursos a percorrer.
Foi pesquisando a esse respeito que descobriu um detalhe fundamental para explicar as diferenças entre a senhora Noel e dona Santa. Acontece que, tanto renas machos quanto fêmeas têm chifres. Isso faz das renas um tipo único de veado e explica, de seu ponto de vista, a qualidade inferior de sua mulher: essas renas chifrudas simbolizam a têmpera e a fibra da parceira de Santa. Deve ser essa a razão por que elas são assim tão especiais. Um reles veado-mateiro não garante nada mais que força para puxar a carroça por um quilômetro, se tanto. Além do mais, as renas lapônias até voam, garantem um percurso majestoso e sublime, que seus veadinhos nem chegam a fazer lembrar.
Noel suspirou e baixou a cabeça, derrotado. Nunca seria um êmulo à altura de Santa. Tudo que tinha feito até então não passava de macaquice, diante da perfeição de seu ideal e das renas que o carregaram pelos céus de dezembro nos natais antigos.

sexta-feira

Aquele dias em Búzios



Lembrava Búzios de outro tempo, do tempo com ele. Daquele ponto em que só se via o mar e o céu, os rochedos envolvidos em espuma e a imensa placidez ondulando de leve. O vento era um clima, dava vida à música, levava e trazia, falava entre os cabelos. Um tempo de paixão e irreverência, langores e jogos movidos a ansiedade. O tempo da paixão é também um tempo de angústia, porque se tem tudo a perder. Mas quando ficavam sozinhos, isolados do mundo no jipe de capota aberta ao vento como jovens deuses pagãos – então tinham tudo e nada no mundo seria capaz de atingi-los.

Da colina só se viam mar e céu, espuma nos rochedos, a imensa placidez a ondular a nossos pés lá embaixo e o vento tecia palavras entre os cabelos. Tudo a ganhar. O tempo da paixão é quando se tem tudo a perder.

Naquelas noites, o brilho avermelhado de Marte parecia prestes a escorrer sobre suas cabeças. Ainda não conheciam toda a extensão da guerra em que se envolveriam. Do horizonte a lua atirava ao mar suas escamas e alagava o mundo com seu desvario misterioso. Reviu o pequeno terraço de mesas brancas, as duas taças esguias da comemoração, ele sussurrava tanta coisa em seu ouvido, o coração da festa, os dois a sós, donos de toda a beleza da terra e meio altos por causa da bebida gelada e dourada, o riso silencioso e o beijo em que tinham se perdido noite adentro. Na varanda da pousada, o café da manhã, rindo do grupo que haviam deixado sem avisar ninguém. A escalada pela encosta até a Prainha, os mergulhos na tarde morna, idílios no banquinho de madeira carcomida olhando os barcos no ancoradouro dos Ossos.

terça-feira

Assuntos de família




 
                                               Briga. Foto sem nome de autor.

Dia Metral vivia mergulhado em suas lucubrações. Era um tipo radical, fechadão e de poucos amigos. Desde os tempos de escola, nunca admitiu ser contrariado ou desmentido em nada, embora sistematicamente contrariasse todo mundo.
Quando se apaixonou por uma vizinha, moça muito dócil, e decidiu que se casaria com ela, foi vapt-vupt: em dois meses eram marido e mulher. A senhora Metral, que se chamava Peri, agora Peri Metral, mantinha a calma em qualquer situação e tentava resolver tudo na conversa. Contornava as situações com muito tato e diplomacia. Evitava brigas com vizinhos que contrariavam Dia e amansava-o com jantares e sobremesas deliciosas.

A rabujice e teimosia de Metral no entanto começavam a incomodar a pobre mulher além da conta. Tentou discutir a relação com ele, mas a resposta foi um taxativo vai pra cozinha. Peri, que nunca tomava decisões impensadas e contornava todas as dificuldades, foi ficando como se diz por aí cheia de tanto radicalismo e acabou pedindo o divórcio. Dia Metral ficou azul, roxo, vermelho e depois deu um murro na mesa. Peri correu para o quarto com medo dele, mas conseguiu o que queria: deixou de ser Peri Metral e voltou a usar o nome dos pais, senhor e senhora Frase.
Peri Frase não demorou muito a encontrar outro marido, o cordato Circunlóquio, que se tornou o homem de sua vida e com quem teve uma ninhada de filhos encantadores e prolixos.
Quanto a Dia Metral, após dez anos de solidão, encontrou enfim a musa de seus sonhos e não perdeu tempo: casou com ela e viveram brigando para sempre como cão e gato. A nova paixão se chamava O. Posta.