terça-feira

Coisas de Cortázar















À disjunção palavra-coisa corresponde o desencontro para o qual se desperta e que é como comer o fruto proibido: a palavra ingênua designa a coisa, e uma vez perdida a inocência e percebida a precariedade da identificação entre elas, descobre-se que a coisa não está onde a palavra a designara, que já não há redução possível de uma à outra. Que fomos vitimados por uma série de separações, enquanto acontecimentos como perdas, mortes, omissões se reduziam a palavras que deixavam escapar seu verdadeiro sentido, e então “lhes damos figura e lugar: uma casa imóvel e seus odores que já não existem; um olhar de mãe que se desvia (pior: para dentro dela mesma, onde não estávamos nós); qualquer pequeno nada que tenha sido aquilo que nos fazia falta” (p.193-4).
Em um outro conto de Cortázar, Casa tomada, os dados da realidade são progressivamente engolidos por ruídos denunciadores não se sabe de que invasores, até expulsar os donos da casa, dois irmãos sozinhos que viviam um para o outro numa rotina estagnada – um “casto casamento de irmãos” – vazia de sentido como as palavras que se distanciam dos acontecimentos e de seu sentido.
Mais grave do que o caso do tigre – que afinal se consegue subverter em função do real objetivo – os invasores não podem ser encaixados em nenhuma categoria definida desse real. Não têm sequer um nome, o que significa que poderiam ter qualquer um, e portanto não correspondem a um ser reconhecível, como no caso do tigre.
 Fantasmas inidentificáveis e com o poder de fechar a casa, verdadeiros seres de alucinação (dessa vez auditiva), nem mesmo assim deixa de haver uma imagem por trás desse invisível, que é como a imagem dos cegos: sabe-se que existe, mas não pode ser percebida pelos olhos do corpo. Não são os sons que expulsam de casa os seus donos, mas as figuras que nem sequer foram mencionadas, os seres que produzem esses sons, porque o espaço não pertence aos ruídos mas aos corpos. Mais uma vez é a imaginação que se encarregará dessa imagem, e com tanta força e intensidade que nada se pode contra ela.
Figura da psicose, o conto mostra como o recalcado tornado inatingível aniquila qualquer possibilidade de subversão em seu reduto. As palavras, diálogos anódinos, são sempre cúmplices contra o real de fora, que no texto poderia ser identificado em vagos primos para os quais os dois irmãos se recusam a deixar seus bens em herança. O sentido é uno, fechado, concorde. As palavras têm um rumo preestabelecido, e não se cogita em nenhum momento de lutar contra uma fatalidade que não se identificou. O vínculo com o real – peças de lã inutilmente tricotadas e coleções sem outra finalidade que ser revisitadas durante as horas de tédio, além do trabalho doméstico sempre repetido – não subsiste à invasão.

F





sábado

A Educação segundo Rousseau





O respeito às diferenças e a obediência às leis da natureza, tanto no sentido genérico como no de diferenças individuais nas diversas fases da existência, foram princípios que o genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) levou às últimas consequências. Sua crença de que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe conduziu um pensamento em que a educação deve livrar o homem das imposições sociais, ensinando-o a viver de acordo com a natureza e em liberdade.

A desigualdade entre os cidadãos, devida a circunstâncias sociais, indica as falhas da civilização, que vão do ciúme nas relações amorosas à institucionalização da propriedade privada, pilar do sistema econômico. Para amenizar essas desigualdades, a sociedade criou artifícios como o culto das aparências e a necessidade da polidez. Reconquistar a liberdade seria o primeiro objetivo da educação, a começar pela busca do autoconhecimento. Mas em vez de usar a razão, o educador usaria a emoção, sob a forma de entrega sensorial à natureza. E o primeiro passo nesse sentido seria modificar o relacionamento rígido entre adultos e crianças.

A criança deixa de ser um adulto em miniatura. Suas idéias e interesses são diferentes daqueles dos adultos, e o relacionamento rígido entre elas e os mais velhos precisa mudar.

A disciplina e a memorização mecânica são impróprias ao desenvolvimento das virtualidades humanas, impondo valores alheios aos interesses genuínos do indivíduo. A educação não deve vir de fora, mas busca a expressão livre da criança em contato com a natureza. Para isso utiliza o brinquedo, o esporte, o trato com a terra, a aprendizagem de vários ofícios e seus instrumentos; a linguagem, o canto, a aritmética e a geometria abrem caminho à adaptação livre da criança a seu meio até os 12 anos, quando prevalecem os sentidos, as emoções e corpo físico, enquanto a razão ainda se forma. A formação moral e política nessa fase são prioritárias, mais importantes que a mera instrução. Nesse sentido, Rousseau precedeu Maria Montessori (1870-1952) e John Dewey (1859-1952). Sistematizou uma nova concepção de educação, depois chamada de ‘escola nova’, reunindo vários pedagogos dos séculos 19 e 20.

A opção pela democracia decorreu da defesa da liberdade individual. Seus conceitos sobre educação mostram o processo educativo do nascimento aos 25 anos, enfatizando a fase cognitiva. A infância é um período de virtualidades, indica Freinet, citado por Nascimento (1995): criação, empreendimento, liberdade e cooperação, a partir dos quais o educador visará transformar o educando em um homem e cidadão, antes de fazer dele um “magistrado, soldado ou sacerdote”. E como aponta Peres Pissarra (s.d.), professora de filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, “a dimensão política é crucial em seus princípios de educação.”

Rousseau foi acusado de individualismo e de negar a importância da civilização. Mas o mito do bom selvagem, que idealiza o ser humano livre de constrangimentos sociais, deve ser visto como mero recurso teórico. Seu pensamento soava rebelde, numa época de culto à razão. Enciclopedistas e pensadores da Revolução Francesa de 1789 manifestaram seu desacordo quanto a suas teorias e a seu misticismo, defensor de um Deus “que move o universo e ordena todas as coisas”. Isso não o impediu de colaborar na Enciclopédia Iluminista, com o verbete sobre música, e influenciar artistas do Romantismo; mas as dissensões se acentuaram até o conflito aberto. Voltaire chegou a dizer dele que "ninguém jamais pôs tanto engenho em querer nos converter em animais".


Cerisara, Ana Beatriz. Rousseau – A Educação na infância. São Paulo: Scipione, 1989. (Coleção Pensamento e Ação do Magistério).
Nascimento, M. Evelyna do. A pedagogia Freinet: natureza, educação e sociedade. Campinas: Unicamp, 1995.
Peres Pissarra, Maria Constança. Rousseau – A Política como exercício pedagógico. Moderna. s.d.

terça-feira

Tragédias da banalidade





Patrícia Melo. Inferno. São Paulo: Planeta de Agostini, 2003. 368p.


Matutando aqui a respeito de minhas leituras mais recentes, lembrei do livro Inferno, de Patrícia Melo, e a imagem de um pântano de areia movediça me veio à imaginação, talvez inspirada na epígrafe do romance: “A descida é fácil, as portas do inferno estão abertas dia e noite.” (Virgílio, Eneida, Livro VI)

Linguagem dinâmica é pouco para definir o texto de Patrícia. Assim como a vida dessas pessoas que o livro retrata, em que viver é sem sossego e sem apelação, a história e sua linguagem também traduzem o desassossego e a intensidade da superfície. Como já disseram pessoas tão diferentes e tão importantes em seus guetos, como Jacques Lacan e Paulo Leminski, a profundidade está na superfície. Existir num lugar desses é acelerar a própria decadência, bem no ritmo alucinante de um funk em que o batidão é de cravar estacas no chão, para mais um puxadinho, e ao mesmo tempo no peito das pessoas. Se isso é sentimentalismo eu não sei, mas ali ninguém tem mais tempo pra ser sentimental. Foi-se o tempo do samba de favela, do romantismo, dos Cartolas e da poesia que pairava sobre a cidade derramada lá de cima. Agora é morte em vida, vida resistindo, fumando e cheirando, menino arrumando renda pra família com o chefe da boca – e pior, família empurrando o menino para a tarefa que vai, quase inevitavelmente, destruir essa vida que mal começa e ajudar na destruição de muitas outras.

Isso faz da biografia de Zé Luís, o Reizinho, uma leitura que, se tira um pouco o fôlego do leitor (e o Leitor é uma das figuras mais emblemáticas dessa história), é também mais um bom texto de autor brasileiro sobre o tema da vida bandida. Autores estrangeiros, como Claude Lévi-Strauss e Jean Baudrillard, falaram do assunto em seus ensaios; José Eduardo Agualusa e John Updike fizeram ficções sobre as favelas cariocas, o primeiro talvez com maior sutileza. O Orfeu Negro, de Marcel Camus (1959), adapta o mito grego de Orfeu e Eurídice a habitantes da favela, tendo como cenário o carnaval carioca.

O texto de Patrícia Melo, porém, assim como Cidade de Deus, romance de Paulo Lins, aborda o tema com o realismo possível do brasileiro, familiarizado com os tons dessa tragédia urbana repetida e banalizada pela população sofrida que, mesmo sem viver seu dia-a-dia numa favela, sabe do dinamismo delirante e das ameaças que representam os morros do Rio, dominados pelo tráfico de drogas e pela crueldade recorrente de seus soldados.