terça-feira

Férias



Amigos queridos do Umbigo, estamos entrando de férias, como sempre que vai chegando o fim do ano.
Neste ano, começamos mais cedo e talvez a volta seja mais demorada, já que a programação de dezembro e janeiro está um tanto agitada e meio confusa.
Assim, quero desejar a todos os leitores e amigos um natal e um ano novo cheios de alegrias e um novo ano ultrafeliz.

SEM ESQUECER QUE NO DIA 9 DE DEZEMBRO, SEXTA-FEIRA, LUIZ RUFFATO ESTÁ LANÇANDO DOMINGOS SEM DEUS, A PARTIR DAS 19H, NA  LIVRARIA ARGUMENTO, NO LEBLON (Rua Dias Ferreira, 417).

Beijo beijo e até a volta.

sexta-feira

Gato em dia de chuva








O Rio aproveita os dias de chuva para se encolher como um gato em suas almofadas verdes. O próprio trânsito engarrafado não lhe tira essa condição. O Rio não costuma viver sem sol. As pessoas saem de casa como se fizessem um teste: se a chuva continua, se está ventando, ainda se pode tentar sair de blusinha top. Quem sabe até deixar o guarda-chuva em casa, esse traste que só serve para esquecer em qualquer lugar que ofereça condições. Fazer de conta que não se viu a chuva, que isso aí não dá pra molhar ninguém.
Mas se a coisa é mesmo pra valer, a porção gato de cada um vai emergindo e tomando posição. Vem um certo sono, uma vontade de se encolher, que é o jeito que o hedonismo carioca encontra de curtir o frio e o céu cinzento. Os carros, cada ônibus, o metrô, as calçadas vão se enchendo pouco a pouco de felinos loucos para gozar o lado bom da chuva. Em matéria de curtição, o Rio tem um know-how inacreditável.

quarta-feira

Pelos cotovelos

Foto sem menção de autor.

 
Mais ou menos às quatro e meia da tarde passa um padeiro em minha rua. A gente sabe que ele está chegando pela buzina poderosa, que se escuta por todo o quarteirão. Se estou em casa nessa hora, gosto de comprar uns franceses quentinhos para o lanche.
Mas há alguns dias passei a só descer se dona Carmita não estiver lá escolhendo seus pães doces e bolinhos, feitos pela mulher do padeiro, que são mesmo uma delícia. Mas se ela já tiver descido, fico bem quieta e espero que entre em seu apartamento. Porque dona Carmita fala tanto e tão alto que já provocou incidentes desagradáveis no corredor, segurando a porta do elevador enquanto comenta suas vicissitudes familiares, de saúde, e fala dos preços, dos netos rebeldes, do motorista de táxi que cobrou além do preço, do médico, da violência. Dona Carmita é dessas pessoas que começa a falar e esquece de acabar.

segunda-feira

Alcides

 Imagem da internet sem menção de autor.

Alcides teve um AVC que lesou seriamente sua capacidade de locomoção e o deixou dependente de um par de bengalas ortopédicas. O braço esquerdo também ficou prejudicado, e só agora, depois de uns dois meses de exercícios regulares, começa a ter algum movimento. Alcides adora uma paquera. Aninha, a fisioterapeuta, acha graça, todo mundo gosta dele, e o Alcides não perdoa uma menininha malhada! Todo mundo tem um caso para contar sobre ele. O melhor de todos se passou dentro do elevador: quando eu ia entrando, esbarrei com uma lourinha de nariz arrebitado e músculos bem definidos, o rabo de cavalo balançando agitado, e ainda ouvi que ela dizia “vai procurar alguém da sua idade, tio”. Aninha se acabou de rir, e diz que o AVC dele foi mais leve do que parece, e só afetou mesmo dos joelhos pra baixo.

sexta-feira

Aceno


Foto Elizabeth Kasper.



Há dias que não te via
e hoje vi tuas mãos espalmadas na vidraça
a me acenar com os olhos.

quarta-feira

Guinada



Amanhã começa outra vida. Uma vida que roi as vísceras, uma ansiedade florindo em redoma. A noite veloz anuncia: coisas novas chegam amanhã. Como será te deixar para trás? Como será deixar de doer assim calada e passar a doer em liberdade rasgada? A vida se adianta como miragem e renasce sempre mais adiante. Talvez descubra que chegou o fim e não haja mais nada a desejar, e poderei enfim viver de minha própria carne.
Mil vezes já passou esta noite. Mil vezes ela foi ensaiada em desespero e paciência e agora irrompe diante de mim e me deixa calada de saciedade. Um pouco de temor do desconhecido, é verdade. Uma felicidade corrosiva e difícil. Como será recomeçar do que nem se conheceu? Minha vida é uma trama oriental de muitos tapetes: você me ajudou a tecer tantas agonias como grandes estofados bizantinos num palazzo veneziano alagado de medo.
Não me apresento bobamente para tua aprovação, não fujo como em outro tempo e também não suspiro mais por você. Não te consulto – eis a grande novidade. Estou em outra dimensão da vida, uma dimensão que você não conhece e não está autorizado a frequentar. Agora preparo mosaicos em imensos paineis que podem se animar a qualquer momento e preencher o céu com desenhos sem utilidade prática. Posso me dar ao luxo.
A glória que você podia me oferecer é uma grande morte. Vou voar em outra direção, talvez na direção do capim que se alonga, e minha imagem vai renascer disso. Ainda não conheço todas as imagens de meus paineis. O resto se abre como o céu e você não está nele.
Estradas esquecidas que o carro desperta, estados sonolentos que passam velozes, tempo quase ausente. Quero ter tempo para experimentar. Pressentimentos como flores invisíveis em copas muito altas. Como você é fútil. Pensa que sabe tudo. Pensa que já decidiu o destino do mundo e não tem sequer os diagnósticos, porque o espaço é pouco para o mundo e você.
Alguém vigia, há vida lá fora: um cão de guarda está prestes a atacar. A cólera se adiou até o limite. Um golpe traiçoeiro derrubou o dono da noite. Amanhã é outro dia. “Tá com enxaqueca outra vez?” Meu riso explode, escapa escandaloso. Pequeno gesto de reprovação: “que boba”, você diz. “Que é que você tem na cabeça?”


segunda-feira

Um poema de Jorge Wanderley


Ele foi meu professor de poesia durante dois semestres. Lecionava para uma turma numerosa, que adorava as aulas sobre poemas e poetas. TInha enorme prazer de falar do assundo, era cordial, amável e um excelente profissional.
Era médico, tradutor e poeta. O pernambucano Jorge Wanderley (1938-1999) nasceu no Recife, onde se formou em medicina, que exerceu durante largo período, e também em letras. Em 1976, atraído pelo assunto que o encantava, transferiu-se para o Rio de Janeiro e concluiu o mestrado e o doutorado em letras. Lecionou literatura na UERJ até sua morte. 

ALGEMAS LEVES

Os zeladores têm maneiras médicas
e calvas comportadas como padres.
Seu reino de limpeza é de varsol,
vassoura, espanador e ordens sumárias.
Vão limpos, com suas mãos odontológicas,
atentos em cuidar do alheio
embora alheio já sublocado
a alguém que como sempre, não conhecem.

Por trás dos gestos neutros, voz sem timbre
conduzem edifícios ou navios
— são capitães civis de vida ordeira
e todos nordestinos, comandando as naves.

Nos últimos andares, zeladores.
Escuros subsolos, zeladores.
Os edifícios têm algemas leves
e de gravata, o zelador, tão calmo, não vê
nem sente.

          De Coração à Parte (1979)

sexta-feira

Poesia e repressão - ou não?





Às vezes fico pensando se a poesia japonesa, sempre tão delicada e contemplativa, não será o antídoto contra o sentimento de culpa que parece marcar a vida dos nipônicos. Isso não diminuiria em nada o valor dos poemas, ao contrário. É que os opostos se atraem mais do que supomos à primeira vista. Rigor e uma certa repressão, que me parecem constantes naquela ilha (me corrijam se eu estiver errada), talvez resultem – que bom – em sensibilidade à flor da pele no uso das palavras da poesia.

quarta-feira

Técio



Conheci Técio no esplendor de meus dezoito aninhos. Não se fazia blog nem se usava e-mail naquele tempo. As mensagens vinham por bilhetes, cartas, telefone. Ninguém era amigo virtual, não se namorava por chat e muito menos se imaginava uma paixão em que um não conhecesse o outro na real. A não ser em romances ingleses, o amor precisava dos sentidos físicos para existir. A começar pela visão, passando pelo som da voz, uma que outra incursão táctil, até que se desse a implosão, o tremor de terra de que falava Luís Vilela num conto que inaugurou gloriosamente sua carreira de escritor.
Uma crônica de Martha Medeiros fala daqueles homens que vão logo avisando: “sou um cara difícil”. Eu devia ter lido essa crônica naqueles dias ditosos, que logo deixaram de ser tão ditosos assim, porque Técio tinha o perfil que a cronista descreve. Incauta, achei aquilo o máximo. Ao mesmo tempo que me enchia os olhos, o gato convocava em mim minas de ternura, sentimentos maternais, e ainda por cima, inexperiente e boboca como se costumava ser naquele tempo (e até hoje ainda se é um pouco aos dezoito, apesar de todas as revoluções das últimas décadas), me sentia a eleita entre todas as mulheres. Ele confiava em mim, se abria comigo, mostrava como lhe fazia bem contar com minha atenção e carinho.
Logo o lado difícil de Técio destruiria o que seu lado sedutor tinha construído. Não podia deixar suas paqueras porque era “emocionalmente muito instável”. Jogava flores em minha janela e escrevia poemas na calçada porque era um “passional”, mas no dia seguinte sumia sem dar notícias. Voltava como se nada tivesse acontecido e de repente armava uma cena patética de ciúme em qualquer lugar. Um dia entrou pela casa a dentro e invadiu meu armário procurando alguma coisa que confirmasse “uma suspeita que o torturava”. Percebi de repente que nada mais interessava a Técio senão seus próprios rompantes, o impacto que causavam suas palavras exaltadas, o culto que mantinha por sua personalidade azuretada.
Por sorte, mesmo as mocinhas românticas podem ter algum bom senso. Algumas não sabem como usá-lo e até casam com um Técio, que para mim passou a ser sinônimo de egocêntrico irresponsável. Antes que minha vida virasse um caos de lágrimas onde não haveria lugar senão para ele, desapareci do mapa. Quando voltei, havia bilhetes, cartas, presentes e flores murchas que minha mãe foi empilhando num canto do quarto. Joguei tudo num grande saco plástico trazido por ela. O saco deslizou pela lixeira quase sem ruído.