terça-feira

Brincação com palavras


Por Manoel de Barros*

A gente gostava de brincar sobre palavras. A gente gostava de examinar o corpo fônico das palavras. E também as significâncias e insignificâncias delas. Escute, Manoel: o tuiuiú é três vezes você: tu, uma vez; you, outra vez; e you, de novo. Ele imita que nos conhece. Não acha? E que nos procura. E que nos descobre. E que nos aponta. Parece que aponta o dedo para a gente: és tu, és tu, és tu – como quem deda. Quanto ao corpo fônico das palavras, Rosa ainda me disse, rindo: bunda tem um belo corpo fônico, além do propriamente. Ele não sabia por que mistério, ou de que lado, apreciava a palavra bunda: se no propriamente ou se no fônico. Mas que era, de qualquer lado, uma linda palavra. Disse ainda que amava a palavra orgônio. Nem sei se a palavra existe, mas ela tem cara de órgão sexual de flor. Apresentei ao Rosa a palavra gravanha. Em Minas não conhecera. Conhecia guanha. Por instinto lingüístico achou que guanha e gravanha podem ser sinônimos. E eram. Guanha e gravanha são lugar de mato fechado, de mato bem espesso de filhotes por baixo: mesmo que zamboaba. Se um vaqueiro entra de a cavalo num guanhal ou no gravanha, se diz que caiu no gravanha ou no guanhal. Em Minas, Rosa não ouvira gravanha. E disse: nem no Sudão. Depois eu quis completar e informei ao Rosa: saracura só bota ovo no gravanha. E completei mais: caetetu veraneia é no gravanha. O que resta de grandezas para nós, ele disse, está nos desconheceres, Manoel. Eu que sim, acordei. Poucos enxergam as coisas sem feitio, salvo doidos e poetas. Você distingue bem as coisas sem feitio, perguntei. Que sim, ele acordou. E dou um testemunho. Veja: vi uma tarde verde nos olhos de uma garça. Não é coisa sem feitio essa, e difícil de ver? Que sim, eu concordei. Rosa gostava demais de frases em que entrem passarinho. Em sítio que houvesse um, ele poetava. Agora o vento deslocava o crepúsculo para longe. Achamos no meio da folharada um filhote de ema. Mal se agüentava em pé, o eminha, as pernas ainda moles não se equilibravam. Depois Rosa se referiu ao livro meu por publicar. Era o Compêndio para uso dos pássaros. Do que seu livro fala, Manoel, será de alpistes? E se riu. Eu respondi: é só palavra de ave e de criança. Mas no meio do livro eu inventei uma formiguinha que só andava de banda. Ia e voltava de banda como se estivesse na ladeira errada. Também eu botei orvalho no couro de um sapo. Aí Rosa comentou: mas isso fremosenta os sapos, Manoel. E fremosenta mesmo, Sô, eu disse. Depois a gente encontrou uma chuva de frente pra nós E demos no pé.

*Texto extraído do JB de 19 de novembro de 1997, caderno dedicado a Guimarães Rosa nos 30 anos de sua morte.

Longe é um lugar que não existe (mais)


Parafraseando Richard Bach, na era da Internet podemos dizer, sem eufemismo, que as distâncias – ao menos no que se refere a ideias, comportamento e realizações – encolheram tanto que às vezes nos sentimos vizinhos de personalidades fisicamente a milhares de quilômetros.  

Blog
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Superinteressante: entrevistas com Umberto Eco.
Professor, escritor, ensaísta e mito, desde que O Nome da Rosa abalou o mundo da literatura, produziu muito mais que esse romance imperdível.
Vale a pena conhecê-lo melhor. As opiniões de Eco dão o que pensar, assim como seu modo de vida, na enorme casa que já foi um hotel, onde as estantes abrigam cerca de 30 mil livros.

A segunda entrevista, também muito boa, está aqui.


Bio



Infância
Maravilhamento, chocolate, sonhos de voar, terror, solidão.
Juventude
Amor, crianças, vida partilhada, carreiras se cruzando, solidão partilhada.
Maturidade
Amor, solidão superpovoada, solidão assumida, solidão necessária.
Espera.

Comentário da Líria Porto:

descobrimento
líria porto

a infância é um barquinho
a transportar nossos sonhos
da enxurrada até o rio

a juventude um caiaque
a descer as correntezas
sem pensar em desembarque

a velhice é caravela
: terra à vista

domingo

Leitura e crítica



Em literatura, grandes escritores não são os que fazem grandes revelações. Estas na verdade costumam ser bem raras e precisam ser encaradas com senso crítico.
Verdades arrasadoras ou absolutas, a não ser num contexto de fantasia, não aparecem em textos de qualidade. A realidade em que vivemos mergulhados é quase sempre uma pintura impressionista, de contornos imprecisos que não deixam margem a interpretações radicais.
Ao contrário, um bom autor costuma fazer balançar ideias cristalizadas, jogar alguma luz sobre a importância da diferença e trazer à tona pensamentos que normalmente passariam batidos e se diluiriam sem deixar rastros.
Estamos muito acostumados a pensar por clichês que nos acomodam e tornam essa preciosidade única que é a vida uma espécie parque industrial, onde para tudo há um modelo pronto e ajustado ao preestabelecido.
No entanto, “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Ainda que não se concorde com a opinião do autor, o maior ganho da leitura é a aquisição de elementos para reflexão – o que não é pouca coisa. Vale não concordar, é claro.

Aí vai o texto, um pouco polêmico, um pouco original, com algumas palavras grafadas à portuguesa.

A felicidade vem da monotonia
Fernando Pessoa
1888/1935

Em sua essência a vida é monótona. A felicidade consiste pois numa adaptação razoavelmente exacta à monotonia da vida. Tornarmo-nos monótonos é tornarmo-nos iguais à vida; é, em suma, viver plenamente. E viver plenamente é ser feliz.
Os ilógicos doentes riem – de mau grado, no fundo – da felicidade burguesa, da monotonia da vida do burguês que vive em regularidade quotidiana e, da mulher dele que se entretém no arranjo da casa e se distrai nas minúcias de cuidar dos filhos e fala dos vizinhos e dos conhecidos. Isto, porém, é que é a felicidade.
Parece, a princípio, que as cousas novas é que devem dar prazer ao espírito; mas as cousas novas são poucas e cada uma delas é nova só uma vez. Depois, a sensibilidade é limitada, e não vibra indefinidamente. Um excesso de cousas novas acabará por cansar, porque não há sensibilidade para acompanhar os estímulos dela.
Conformar-se com a monotonia é achar tudo novo sempre. A visão burguesa da vida é a visão científica; porque, com efeito, tudo é sempre novo, e antes de este hoje nunca houve este hoje.
É claro que ele não diria nada disto. Às minhas observações, limita-se a sorrir; e é o seu sorriso que me traz, pormenorizadas, as considerações que deixo escritas, por meditação dos pósteros.


(O texto de Pessoa foi encontrado no Blog Citador, e atribuído a sua obra "Reflexões Pessoais".)