sexta-feira

Diferenças, cotas e injustiças


Foto Helen Levitt


Se as pessoa são corpos sensíveis e se as diferenças individuais resultam de contingências circunstancialmente explicáveis, nada justifica a (ainda) rigidez das castas e classes sociais baseada em poder financeiro ou privilégios em relação aos menos dotados. A única hierarquia possível se sustentaria então em superioridades extrínsecas e acidentais – diferentes graus de instrução, expertises técnicas e profissionais, que podem conferir alguma autoridade funcional a determinadas pessoas. E essa hierarquia não confere a ninguém direitos humanos diferentes dos consagrados e universais. 
Por isso, quando se falou das cotas, a princípio achei que isso só iria reforçar a discriminação injusta baseada nas diferenças raciais que, mesmo absurda, ainda aflige grande parte de nossa sociedade. 
Mas ouvindo a opinião da ministra Cármen Lúcia, acabei concordando com a existência dessas cotas. Diz ela: "As ações afirmativas não são as melhores opções, a melhor opção é uma sociedade com todo mundo livre para ser o que quiser. Isso é um processo, uma etapa, uma necessidade em uma sociedade onde isso não acontece naturalmente."
A ministra tem toda razão. Não se trata simplesmente de "dar uma chance" aos menos privilegiados, mas de tentar corrigir um erro estrutural dessa sociedade, que parece nunca perceber que as diferenças não significam superioridade ou inferioridade, mas apenas diferenças puras e simples, que não tornam ninguém melhor ou pior que os outros. 
Melhor ainda vai ser quando a camada mais pobre da sociedade ganhar oportunidades em pé de igualdade com as classes mais privilegiadas, com acesso a  boas escolas que lhes abram espaço a um futuro mais promissor. O que na certa dispensaria a política das cotas.
Mas aí entra a questão dos professores, uma das classes mais mal pagas do país. Até quando?

quarta-feira

Ana Angélica




Fala de tanta coisa ao mesmo tempo que no fim não sobra nada.
Ana Angélica, um nome assim tipo arrebatador. Não que ela faça o gênero – um pouco tosquinha, simpática e boa pessoa. Impossível é seguir o fio de seus pensamentos ou manter uma conversa coerente que dure mais de três minutos. O pensamento de Ana Angélica é como um tobogã transparente por onde deslizam incontáveis pedaços de assunto, nomes que não se sabe de onde vêm, lembranças e sensações mal definidas, misturadas como meadas de várias cores. Ana Angélica não conta uma história, conta várias ao mesmo tempo, e no fim é preciso fazer múltipla escolha entre os trechos de enredo e os finais. Por qualquer motivo ela ri, ri muito, o que torna suas falas uma colagem de palavras incompletas mas coloridas.
Não, não é doida nem passa perto disso. É alegre e adora se divertir. Ninguém a encontra em casa nas noites de sexta ou a qualquer hora nos sábados, sendo que aos domingos vai à missa – diz que se faltar à missa alguma coisa muito ruim sempre acontece durante a semana – e dali parte para a praia se não chover. Depois almoça um churrasco em casa de amigos ou amigos de amigos, toma todas que aparecerem e vai dormir cedo porque segunda é dia de voltar ao posto de recepcionista de uma clínica de estética na Barra.
Tem um círculo de amizades surpreendentemente grande, variado e flutuante. Tem orkut, adora sexo na internet e faz questão de espalhar suas fotos em todos os sites de relacionamento. Já fez dois abortos, porque diz que só quer filhos depois dos trinta e cinco e ainda tem vinte e oito. Fica, namora, sai sempre com alguém, faz qualquer coisa para não ficar sozinha, mas nunca demora mais de quinze dias com o mesmo cara.
Acredito que isso acontece porque uma vez passou uns meses com um sujeito que a trocou por outra e fez de seu coração risonho uma gruta escura. Caiu em depressão, parou de comer, quase morreu sozinha em seu canto. Os amigos a salvaram do desespero, mas depois do luto, voltou à rotina de variedades que a mantém sempre com o olhar brilhando e os dentes bonitos de fora.
Ana Angélica não quer servir de exemplo pra ninguém. Não se responsabiliza, e como tem o coração fácil de derreter, chora com facilidade, mas logo se distrai e esquece. Vive cada momento, não pensa no futuro nem pára em lugar nenhum do passado. Alguém já disse que ela é como espuma, sempre efervescente e renovada. Ana Angélica se especializou em esquecer.

segunda-feira

Minhas pombinhas


Foto Arthur K.

Vem aí o Dia Internacional da Mulher.
Que mulher? A variedade do gênero é infinita. Tem pra todos os gostos, todos os tipos. E não falo do tipo físico, que obviamente é o que menos interessa para a celebração.
            Pode-se entender isso no sentido politicamente correto – o chamado óbvio ululante: as mulheres merecem todo respeito porque são seres humanos como nós (homens). Aí entram sorrisos, flores, eventos dedicados ao dia, que dura vinte e quatro horas ao fim das quais tudo volta ao normal. Ou poeticamente: flores do planeta, seres delicados e românticos, luz de nossa vida (vida dos homens).
            As musas são seres inspiradores, sejam capas de revista ou ao vivo. Merecem exacerbadas homenagens que levam muito em conta a anatomia, a imagem desses seres divinais. As mulheres adoram e às vezes até se comovem muito com esse tipo de homenagem, não fossem elas sedutoras pela própria natureza, e saem correndo pra marcar a próxima plástica.
            Sentimental é o louvor dos filhos, do marido, homenagens singelas mas sinceras das pessoas mais ligadas a elas, que certamente as sensibilizam muito.
Pode-se entender a homenagem como uma forma de reparação por todas as injustiças, violências e trabalhos forçados por que as mulheres passam em todo o mundo, passaram e passarão ainda por muito tempo e em muitos lugares. Pela jornada tripla ou na melhor das hipóteses dupla de trabalho. Pela exploração em todos os níveis e tipos de atividade em que ela faz a mesma coisa e ganha menos que os parceiros homens. Pelas limitações que muitas civilizações e costumes lhes impõem pelo simples fato de serem mulheres. Pelas mutilações físicas, pela proibição do prazer, pela opressão, pelo controle da sociedade de mentalidade machista que contamina até as mulheres mais incautas e desinformadas.
Cá comigo acho que neste dia as mulheres deviam agradecer educadamente todas as homenagens, ficar felizes pela simpatia que despertam e tratar de pensar muito a sério no que é mesmo que elas querem da vida. Se algum dia conseguirmos chegar a um consenso, minhas pombinhas, o mundo vai mudar pra valer.
Enquanto não muda, vamos pôr as flores na jarra.

quarta-feira

Recado anônimo


 Foto Kris Kros

Era quase um lamento, mas não pedia nada. Na terceira pessoa, ele falava de não ter com quem trocar as opiniões mais importantes e não receber nunca o olhar ou o simples gesto de uma partilha; da falta que faz um abraço desses estreitos, que relaxam mais que qualquer sessão de ioga ou medicamento de última geração. Falava acima de tudo da necessidade que todos temos de achar quem ouça com atenção nossas preocupações, dúvidas e angústias; de um semelhante que nos acolha quando de repente o fato de viver sozinho pesa demais e a tristeza começa a fazer ruir as estruturas que nos mantêm em atividade.

Hoje, relendo as doze linhas desse comentário, vejo um pequeno poema em prosa. Um poema bem construído, sem açúcar nem afeto, mas sem amargura. Uma pequena imagem que fala por si, e lembra muito a ultrassonografia de um feto, com o coração pulsando como uma pequena estrela no meio do corpo, que ainda não é quase nada, mas sem saber testemunha sua sede de carinho.


segunda-feira

Minis






Solidariedade + empatia + calor humano + cumplicidade = amizade – o metal mais raro e mais imitado na história da humanidade.

Eu vi: no meio da cidade violenta, um pombo sozinho atravessando a rua na faixa.

To follow, or not to follow, that's the Twitter.

De Augusto Monterrosso: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá." Prêmio de melhor miniconto.

TOC eletrônico é sem remédio. Cada era tem a torre de Babel que merece, né não?

quarta-feira

Martírio


De http://musicantiga.com.sapo.pt/images/FradesSecXV.jpg


Era vizinho de nossa família nos tempos de minha infância. Estudou com meu irmão na escola municipal do bairro, e cursavam direito juntos quando resolveu ser padre. Ingressou no seminário, concluiu o curso, e ao fim de uns anos lá estava ele, um missionário radiante de felicidade. Meu irmão, ateu convicto, e eu, meio desligada de tudo que não fosse jornalismo e literatura, não deixamos no entanto de amá-lo, cada qual a seu jeito. Ele correspondia com a doçura que era só dele.
Um dia, os dois na varanda depois de um almoço lá em casa, eu disse a ele que o martírio era uma bobagem sem tamanho. Ele me olhou com um misto de surpresa e repreensão – a repreensão suave de que seria capaz:
— Mas como... O que é que você está dizendo? Já se deu conta? Nem falo só do martírio religioso, há outros...
Eu nem pestanejei. Achava aquilo mesmo. Sentia muito se o decepcionava, mas não via vantagem em morrer por uma causa. Mesmo a vantagem política me parecia questionável. O que seria mais importante: a força moral ou a força do braço que trabalha para mudar as coisas? Não é morrendo que...
Ele tocou meu braço e o apertou um pouco mais do que seria de esperar.
— Peraí, peraí. Você está delirando. Então você acha que vale mais quebrar pedra do que inaugurar um monumento?
— Se ninguém quebrar a pedra, o monumento não sai.
Ele refletiu por uns segundo, sem soltar meu braço. Acho que o olhei de um modo diferente, porque pareceu se dar conta do que estava fazendo.
— Ah, disse, como quem se apercebe, largando meu braço, desculpe, eu... Mas você dizia – e se ajeitou na cadeira.
— Nada, respondi. Nada, não disse nada. Foi só um impulso.
Ele sorriu. O mundo estava em paz outra vez. Levantou a mão e fez um sinal de absolvição diante de mim. Naquele momento percebi: nunca seria meu.