segunda-feira

Depoimento de um engenheiro



Estive na China pouco após a Revolução Cultural (anos 70). Era um país arrasado, muito pobre e sem infraestrutura, amargando uma prisão ao passado, todos com o mesmo traje, nas cidades só bicicletas, jornais só em murais.

Voltei nos anos 80 e fui ao Tibet com os Budweg. No Tibet só tristeza, um povo submetido à tirania chinesa, dois mil templos destruídos. Voltei mais duas vezes à China, a última das quais em 2000 para atender ao Congresso Internacional de Grandes Barragens. A diferença foi brutal: hoteis, aeroportos, estradas etc. De lá para cá, esses 11 anos foram só de progresso acelerado. A ferrovia demonstra isso.

Na reunião dos executivos da Comissão Internacional de Grandes Barragens CIGB, realizada no mês passado em Luzern, um inglês radicado nos EUA disse que graças a Deus ele não precisa aprender outro idioma além do inglês como todos que não têm o inglês como língua mãe. O atual presidente da CIBG, engenheiro chinês, respondeu: "Just wait for some more few years."

O custo Brasil

O trecho da linha chinesa custou  US$ 4,1 bilhões e a construção foi finalizada um ano antes do previsto. Atravessou as  altas montanhas do Himalaia que se situam a 5.000 metros de altitude. Os trabalhadores na construção tiveram que usar máscaras de oxigênio e câmaras pressurizadas para poderem trabalhar. Sempre que possível a ferrovia passa em pistas elevadas, para permitir a passagem dos animais em migração natural, dado que foi concebida sempre minimizando o impacto ambiental. Dos 1.956 km, 500 km atravessam solos que ficam congelados no inverno e viram lama no verão. Imagine-se o processo de  contração e expansão que ocorre em tal tipo de terreno e a tecnologia empregada e que era desconhecida, até então. E sobre esse tipo especial de solo foi construída uma ponte de 11.7 km. Pela altitude os carros de passageiros têm que ser pressurizados como são os aviões.

Agora, façamos a comparação com o projeto do trem-bala Rio-SP, de 400km de extensão, o que significa 1/5 da distância pecorrida pelo trem chinês. E observe bem que o trem chinês atravessa montanhas de até 5.000m de altura. O trem-bala brasileiro atravessará a Serra das Araras, provavelmente 1/5 da altitude do Himalaia. E não atravessará 500 km de terreno congelado.

Digamos que os US$ 4,1 bilhões tenham sido gastos somente para a estrutura da ferrovia e que não estariam aí incluídos o custo dos trens em si. Considerando o preço de uma locomotiva a US$ 5 milhões, 20 carros de passageiros a US$ 2 milhões cada, teríamos uma composição com o custo de US$ 45 milhões. Estimando 10 composições para trafegar nesses 1.956km, seriam mais US$ 450 milhões. Vamos exagerar, digamos que os trens custassem US$ 1 bilhão. Aí o custo dessa ferrovia chinesa teria ficado em US$ 5 bilhões!
Em 22 de abril de 2011, recalcularam o custo do trem-bala brasileiro, trecho Rio/SP, para algo em torno de, pasmem! R$ 55 bilhões. Com a taxa de câmbio a R$1,70, teríamos o custo em US$ 32 bilhões! Isso é possível? Isso é aceitável? Para aonde irão todas essas dezenas de bilhões de dólares ? Alguém pode dizer algo a respeito do custo de um trem de alta velocidade? Quantas composições teria o trecho Rio-SP? Um Boeing Jumbo custa mais ou menos US$ 350 milhões.

quarta-feira

Nem tudo que reluz é arte

 Vincent Van Gogh. Meio-dia.


Arte que não mobiliza as faculdades físicas e mentais deve ser questionada. Pode ser várias coisas, mas não deve ser arte.
Arte, seja visual, literária ou musical, deve ser como uma dose de vida. Dela sempre nasce uma curiosidade, um espanto, um desejo.
Arte deve ser como uma onda que entra pelos sentidos, acelera o sangue, aguça a sensibilidade e de algum modo ilumina a inteligência.

segunda-feira

Aniversários e outros eventos

Ana Cristina César


Junho é o mês de aniversário de muitos poetas.
Outro que nasceu neste mês, no dia 17, foi W. Butler Yeats.

Federico García-Lorca
Mas quantos poetas desconhecidos terão nascido em junho?
E quantos aniversariam em outros meses, dos quais nunca ouvimos falar?
Mas será necessário ser conhecido e reconhecido para ser poeta?

João Cabral de Melo Neto


Saudação

Oh geração dos afetados consumados
e consumadamente deslocados.
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas.
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
e eles eram mais felizes do que eu;
e os peixes nadam no lago
e não possuem nem o que vestir.


Ezra Pound
1885/1972

(tradução de Mário Faustino)




quarta-feira

Stevens


Bem conhecido, Wallace Stevens (EUA1879-1955) compôs uns poemas que me atraem particularmente. É como se ele falasse de realidades muito familiares, desse "Sentido simples das coisas", que mexe com minha cabeça. Nada muito diferente nem exótico, mas o possível, provável, ao alcance da experiência.  Nem sei explicar bem por quê, mas aquilo que se conhece intimamente, como esse tipo de decadência das coisas, "o fim da imaginação" "depois das folhas terem caído" – como está acontecendo agora, em nosso outono de céus iluminados – me mobiliza de um jeito irresistível, como se a recuperação dessas coisas dependesse de alguma ação a meu alcance. Deve ser vício de dona de casa, coisa assim bem terra-a-terra, uma certa mediocridade militante, não sei bem. Só sei que certos poemas de Stevens derretem alguma coisa dentro de mim, e esse aí abaixo é exemplar


O sentido simples das coisas

Depois das folhas terem caído, regressamos
A um sentido simples das coisas. É como se
Tivéssemos chegado ao fim da imaginação,
Inanimados num inerte savoir.

É difícil até escolher o adjetivo
Para este frio vazio, esta tristeza sem causa.
A grandiosa estrutura tornou-se numa casa menor.
Nenhum turbante caminha através dos soalhos degradados.

A estufa nunca precisou tanto de tinta.
A chaminé tem cinquenta anos e está inclinada para um lado.
Falhou um esforço fantástico, uma repetição
Numa repetitividade de homens e moscas.

Contudo a ausência da imaginação tinha
Ela própria de ser imaginada. O lago grandioso,
O seu sentido simples, sem reflexos, folhas,
Lama, água como vidro sujo, expressando silêncio

De certo tipo, silêncio de um rato saindo para ver,
O lago grandioso e a sua imensidade de nenúfares, tudo isto
Tinha de ser imaginado como um conhecimento inevitável,
Exigido, como uma necessidade exige.

(de Ficção Suprema, tradução e prefácio de Luísa Maria Lucas Queiroz de Campos, Assírio & Alvim, 1991.)

segunda-feira

Homenagem ao multipoeta aniversariante de hoje

Fernando Pessoa/Bernardo Soares



Leve, como uma coisa que começasse, a maresia da brisa pairou de sobre o Tejo e espalhou-se sujamente pelos princípios da Baixa. Nauseava frescamente, num torpor frio de mar morno. Senti a vida no estômago, e o olfacto tornou-se-me uma coisa por detrás dos olhos. Altas, pousavam em nada nuvens ralas, rolos; num cinzento a desmoronar-se para branco falso. A atmosfera era de uma ameaça de céu cobarde, como a de uma trovoada inaudível, feita de ar somente.

Havia estagnação no próprio voo das gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar, deixadas nele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar refrescava intermitentemente.

Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro.

Tanta inconsequência em querer bastar-me! Tanta consciência sarcástica das sensações supostas! Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com o ar e o rio, para dizer que me dói a vida no olfacto e na consciência, para não saber dizer, como na frase simples e ampla do Livro de Job, «Minha alma está cansada de minha vida!»

Livro do Desassosssego

segunda-feira

Liberdade para pensar

Foto sem menção de autor.



Às vezes fico assombrada com a uniformidade de determinados discursos. Vivemos à sombra de um emaranhado de ideias e pontos de vista ditados por interesses que não conhecemos e não são os nossos. Não dá para confundir gestos e atitudes impulsivas com opiniões próprias.

Há uma diferença sensível entre o que de fato acontece na vida real e o que chega a nosso conhecimento via mídia. Aderimos um pouco sem sentir à opinião de um ou outro colunista que admiramos, pelo que sabemos dele e por suas ideias. Até aí, tudo bem. Mas é preciso cuidado com o efeito cumulativo desse processo. Acabamos nos condicionando a pensar pela cabeça dos outros, o que não se recomenda, por melhores que os outros sejam.

O risco da pressão que a mídia e as opiniões recorrentes exercem sobre nós é maior do que normalmente se imagina. Fica muito fácil pensar como todo mundo – afinal, por que ser diferente? Conheço pessoas que se escandalizam com posições discordantes daquelas da maioria que as cerca. Isso corresponde mais ou menos ao que se costuma chamar de senso comum. No entanto, o senso comum é um dos piores inimigos da liberdade de pensamento e do bom senso, justamente por ser um dos maiores responsáveis por essa cultura deficitária e desfalcada que predomina em nosso país.

Sem informação, com a pouca instrução que a escola nos garante e viajando nos universos da tevê e das revistas comerciais e alienadas que nos cercam, como juntar as peças para um raciocínio mais alerta? Como entender realmente os fatos, assumir uma atitude diante deles, ter uma opinião clara e definida?

Afinal, penso o pensamento de quem? Se é o meu, preciso ficar alerta para avaliar até que ponto a influência dos outros está me impedindo de pensar e agir de modo coerente com o que realmente desejo e espero da vida.

quarta-feira

De um quizz



Como os repórteres de várias publicações anunciariam hoje o nascimento de Jesus Cristo?

Se viesse já com a fama de Messias, ia ser um sucesso. A gente anda precisando urgente de um herói confiável, e ninguém ia querer perder a deixa.

O Globo produziria um vídeo pra vender no sábado, cadernos e especiais de tevê; haveria pesquisas e entrevistas mil nos canais da Globosat, analisando a repercussão política e econômica do fato, além de livros escritos em tempo recorde para virar bestsellers instantâneos.

A revista Veja provaria por a+b a impostura, com toda a história dos ancestrais de JC – ou se apropriaria do acontecimento em favor da extrema direita, antecipando a história da Igreja Católica na Idade Média. A Caros Amigos ia procurar o histórico da família e demonstraria por ensaios e entrevistas a linha ideológica digna de um messias de nosso tempo. A Piauí publicaria um ensaio de dez páginas contando minúcias da personalidade dele e particularidades de membros da família.

Filmes, documentários, vídeos no YouTube e DVDs piratas reproduziriam o itinerário da estrela de Belém e trariam depoimentos dos reis magos, que não seriam reis nem magos, mas nômades do deserto com seus camelos e tralhas. Islamitas e judeus se digladiariam em nome da fé e novas bombas destruiriam o que ainda estivesse em pé no Oriente Médio.

Dan Brown lançaria um tijolaço comprovando com falsas estatísticas e documentos fajutos que JC foi na verdade adotado pelo casal de Nazaré pra conseguir uma graninha de ONGs favoráveis à adoção de menores desvalidos. Os EUA imediatamente concitariam o povo americano contra a ameaça terrorista que representa para o mundo o nascimento, no Oriente, de um sujeito assim misterioso e de grande apelo para o imaginário universal, num comportamento em tudo semelhante ao de Pôncio Pilatos, que deve ter sido o primeiro norte-americano da História.