quarta-feira

Por que a poesia é tão importante



Acredito na poesia como uma experiência que não para de se renovar, e ao longo do tempo pode tornar as pessoas melhores. O exercício da poesia induz o autoconhecimento, sem o qual ninguém sai do lugar. Dá a medida e o peso do que é preciso saber, porque ilumina a razão com a experiência mais íntima das coisas e dos acontecimentos. Aliás, poesia é acontecimento.

Poesia não serve para rimar palavras ou burilar frases de efeito. Ela relativiza as defesas que criamos para nos aprisionar; remove as máscaras com que tentamos nos esconder ou nos engrandecer. Desmistifica toda fantasia que não exista para celebrar, mas para enganar os outros e a nós mesmos. O exercício da poesia revela a inutilidade de nossos álibis. É o par de asas a nosso alcance.

Acredito profundamente na poesia, porque aproxima estranhos e diferentes, semeia um conhecimento para o qual não existem currículos bastantes, desperta o corpo e a alma das pessoas para uma liberdade que nada pode destruir, porque consegue dizer o que nenhuma outra linguagem comunica. Um bom poema é o simulacro de um momento na vida de alguém, com sua grandeza e fragilidade.

Acredito na força da poesia, capaz de revelar a beleza de uma fruta, um corpo ou uma guerra; uma paixão ou um canto de casa empoeirado, a lama da estrada, as nuvens de chumbo – melhor ainda se o arco-íris não aparecer.

E porque não se impõe nem obriga a nada, acredito que a poesia é a expressão mais verdadeira da difícil liberdade humana.


sexta-feira

De Jacques Rancière



Jacques Rancière. O mestre ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2ed. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 192p.

Partindo de uma experiência insólita em sua longa carreira de pedagogo, Joseph Jacotot, professor francês do início do século XIX, apercebeu-se de que o processo de aprendizagem pode não consistir naquilo em que o senso comum e a teoria então vigente (e vigente até hoje, temos que reconhecer) haviam consagrado. O que Rancière denomina de “aventura intelectual” aconteceu-lhe quando, exilado por motivos políticos nos Países-Baixos, Jacotot ocupava o posto de leitor de literatura francesa em meio período. Ignorando o holandês, o mestre não teria como responder às dúvidas de seus alunos sem que alguma coisa em comum o ligasse a eles como canal de comunicação eficiente o bastante. Esse canal se apresentou sob a forma de um livro – o Telêmaco em edição bilíngüe publicada em Bruxelas. Por meio de um intérprete, ele indicou o livro aos estudantes, recomendando que aprendessem, com o auxílio da tradução, o texto francês.

“Quando eles haviam atingido a metade do livro primeiro, mandou dizer-lhes que repetissem sem parar o que haviam aprendido e, quanto ao resto, que se contentassem em lê-lo para poder narrá-lo. Era uma solução de improviso, mas também, em pequena escala, uma experiência filosófica, no gosto daquelas tão apreciadas no Século das Luzes. E Joseph Jacotot, em 1818, permanecia um homem do século passado.”

Esperando um resultado desastroso, o mestre pediu então aos alunos que escrevessem em francês o que achavam do texto lido. Era uma avaliação necessária da experiência totalmente empírica imposta pelo acaso. A surpresa no entanto foi das melhores: “seus alunos, abandonados a si mesmos, se haviam saído tão bem dessa difícil situação quanto o fariam muitos franceses”. Constatou que haviam sido capazes de entender o texto e com isso aprender francês o bastante para escrever na nova língua sobre o que haviam lido.

A experiência, capaz de revolucionar seu espírito, levou o pedagogo a desenvolver uma reflexão crítica sobre qual seria de fato a grande tarefa dos mestres. A conclusão a que chegou constitui a heterodoxa teoria, inaceitável para a época, de que ensinar à maneira tradicional – um mestre que “sabe” liberando frações de seu saber para alunos ignorantes – é perpetuar a distância que faz da sociedade (e da escola, seu símbolo) um lugar estruturado em torno de fossos intransponíveis a separar mestre e aluno, quem sabe mais e quem sabe menos, quem manda e quem obedece, quem tem mais ou menos poder. Em resumo: os “melhores da turma” sempre deteriam o poder e a regência dos outros, os que ignoram, os que não conseguiram ser bem-sucedidos e nunca chegariam a sê-lo se não lhes ocorresse o “clique” que permite o acesso a sua verdade mais subjetiva, onde se encontra a fonte dos melhores recursos e o caminho aberto às aptidões intelectuais de cada um.

O esforço para seguir os passos do mestre e assim transpor a distância que separa o aluno dele é um enganoso método de progresso pessoal, segundo o ponto de vista de Jacotot. Porque esse esforço roubará dos discípulos a energia e a espontaneidade de que necessitam para descobrir por si mesmos o que convencionalmente aprendem a ver com os olhos de outros, acumulando saberes parcelados, muitas vezes impossíveis de reter. A experiência era de ordem cartesiana: teria que envolver mais que informações acumuladas. O exercício da curiosidade natural e a vontade genuína de conhecer suprem métodos sofisticados e elaborados que chegam de fora, pelo pensamento arbitrário dos que detêm o poder de ensinar.

A esse processo espontâneo de aprendizagem, Jacotot atribui como resultado um saber que é necessariamente também conhecimento, no sentido de que aquilo que assim se aprende é compreendido e incorporado a um acervo pessoal sob a forma de experiência vivida e indelével.

Por essa e outras razões conexas, Rancière percorre propositadamente um conjunto de atalhos e caminhos que examinam a teoria pedagógica convencional. Sem utilizar conceitos consagrados ou idéias que são pontos pacíficos para os defensores da escola que conhecemos, busca em cada capítulo e em cada item do livro revisitar o processo de aprendizagem com a liberdade de quem descobriu uma nova vertente. A novidade era abolir-se a noção segundo a qual “há seres inferiores e superiores; os inferiores não podem o que podem os superiores”. Essa “hierarquia das inteligências” perpetuaria as desigualdades que beneficiam os detentores do poder.

“Não há inteligência onde há uma agregação, ligadura de um espírito a outro espírito. Há inteligência ali onde cada um age, narra o que ele fez e fornece os meios de verificação da realidade de sua ação.”

A veracidade está no cerne dessa experiência. Assim, é a experiência de cada um – que ele chama “seu próprio negócio” – que o levará ao conhecimento. Um pai ignorante pode levar o filho a adquirir conhecimento, contanto que dê a ele a oportunidade de descobrir por si só esse conhecimento, não como “um pedagogo gentil”, mas como “um mestre intratável” que levará o filho a querer se emancipar. Para isso, todas as faculdades são chamadas: atenção, determinação, persistência, curiosidade. Quando alguém efetivamente aprende alguma coisa, aprende porque quer aprender; e para isso está acima de tudo sozinho, interessado e entregue a sua experiência. Ele quer “adivinhar”, está atento aos indícios e à tradução do que lê, do que vê e analisa.

O traço socrático dessa atitude é bem visível: na base de tudo está o “conhece-te a ti mesmo”. Assim como no caso de Sócrates, que a seu tempo deu origem a uma escola com reflexos políticos em seu meio, o Ensino Universal, como foi chamado mais tarde o pensamento gerado pela aventura intelectual de Jacotot, não conseguiria manter sua força original. Mas na verdade, jamais morreria.

domingo

Carpe internetem





Ao contrário do que se repete por aí, a leitura na Internet não é atividade superficial, fugaz. Ou melhor, é tão fugaz quanto qualquer leitura de texto pode ser, dependendo do leitor. Ler um livro é um deslocamento no tempo e no espaço, uma caminhada ao lado de alguém que te conta uma história, fala de seus estudos, declama poemas. É desejável também que seja uma troca de ideias, um exercício de crítica. Às vezes a origem de um sentimento de empatia para com o autor, seus personagens ou suas ideias. Tudo isso se aplica também à leitura virtual.
A Internet é voraz. Rima, mas não tem nada a ver com fugaz. O lobo mau da rede se chama mercado e se apresenta em piscantes popups, vertiginosas imagens de mau gosto que invadem o monitor sem serem chamadas e solertes transbordam das caixas de correio se a gente se distrair.
Quanto ao mais, a Internet é a invenção mais espantosa, arrebatadora e brilhante de que já se ouviu falar em matéria de comunicação democrática – aqui no Brasil mais ou menos democrática, porque a maioria ainda não consegue acesso regular, que aos poucos vai ampliando seu alcance.
Noves fora a certeza de que todo mundo quer aparecer bem na foto, que às vezes aquela beldade arrebatadora é agora uma simpática anciã, mas ninguém sabe; que aquele galã de olhar definitivo sofre de um mau hálito insuportável e não gosta de tomar banho ou que o pai amoroso não paga a pensão dos meninos, resta a certeza de que na outra ponta da telinha existe um ser humano em busca de trocas, amizade, consolo ou oportunidade de mostrar seu trabalho, que pode ser muito bom e de outro modo ninguém além da família e amigos mais chegados ia conhecer. Não é pouca coisa.
Tudo que se pede a um internauta é mais ou menos o mesmo que se pede aos viventes deste mundo de tantos deuses: que não seja incauto, não se deixe levar por informações ainda não comprovadas devidamente. Em suma, que não seja otário.
Munido desse comprovante de vacina, deite e role, carpe a rede. Se você tiver objetivos bem definidos, melhor. Há muito que aproveitar – leitura das edições mais atualizadas dos jornais sem sujar os dedos e mais: literatura, artes, ciência e tecnologia, informações úteis sobre praticamente todos os setores e assuntos, viagens, cultura em geral. São dados reais ao alcance dos olhos, da inteligência e da sensibilidade de quem souber aproveitá-los.
No caso de contatos pessoais, observadas as normas do bom senso, só se tem a ganhar. Todo mundo quer mostrar o que tem de melhor. As trocas podem ser muito agradáveis; está comprovada a possibilidade de fazer amigos e existem casos de amores que deram certo e começaram por contatos virtuais.
Claro que há o risco do excesso que, além da LER – lesão por esforço repetitivo – e vista cansada, pode reduzir a vida ao que se vê no monitor, e em vez de aproximar as pessoas separá-las por uma banda larga. Mas essa tendência a virtualizar a vida não é defeito da Internet. O defeito é de quem a põe a serviço de suas limitações, de sua preguiça ou neurose, quando ela deve ser justamente o contrário – um instrumento para ampliar a visão do mundo e alternativamente enriquecer a vida real de contatos humanos. Primeiro mandamento para quem quer se dar bem usando a Internet: a dita vida real tem prioridade absoluta.

terça-feira

De um certo caderninho




 

Lavo a alma lendo boa poesia, é verdade. O antigo caderninho de onde tiro poemas, pequenas crônicas e textinhos inclassificáveis às vezes me parece meio pedante, meio besta mesmo. Esse manifesto que encontrei no tal caderninho foi escrito numa fase um pouco exaltada, assim meio condoreira (menos, Dade, menos!), mas tem lá seus encantos. Gosto dele, apesar de tudo.

Acredito na poesia como uma experiência que não para de se renovar, e ao longo do tempo pode tornar as pessoas melhores. O exercício da poesia induz o autoconhecimento, sem o qual ninguém sai do lugar. Dá a medida e o peso do que é preciso saber, porque ilumina a razão com a experiência mais íntima das coisas e dos acontecimentos. Aliás, poesia é acontecimento.

Poesia não serve para rimar palavras ou burilar frases de efeito. Ela relativiza as defesas que criamos para nos aprisionar; remove as máscaras com que tentamos nos esconder ou nos engrandecer. Desmistifica toda fantasia que não exista para celebrar, mas para enganar os outros e a nós mesmos. O exercício da poesia revela a inutilidade de nossos álibis. É o par de asas a nosso alcance.

Acredito profundamente na poesia, porque aproxima estranhos e diferentes, semeia um conhecimento para o qual não existem currículos bastantes, desperta o corpo e a alma das pessoas para uma liberdade que nada pode destruir, porque consegue dizer o que nenhuma outra linguagem comunica. Um bom poema é o simulacro de um momento na vida de alguém, com sua grandeza e fragilidade.

Acredito na força da poesia, capaz de revelar a beleza de uma fruta, um corpo ou uma guerra; uma paixão ou um canto de casa empoeirado, a lama da estrada, as nuvens de chumbo – melhor ainda se o arco-íris não aparecer.

E porque não se impõe nem obriga a nada, acredito que a poesia é a expressão mais verdadeira da difícil liberdade humana.


‘A palo seco’*, poema de João Cabral de Melo Neto, poeta brasileiro nascido em Recife, 1920, que morreu no Rio de Janeiro em 1999, fala de um conceito de poesia que me parece coisa de gênio (que ele era).

Aqui vão alguns trechos:

1.1 Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;

(...)

4.1 A palo seco canta
o pássaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre;

a palo seco canta
ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pássaro
dá o seu assovio.

* Do espanhol, Cantes a palo seco diz respeito a um tipo de música pertencente à categoria dos palos flamencos. São tradicionalmente cantados à capela ou, em alguns casos, acompanhados apenas por algum instrumento de percução.