sexta-feira

As boas festas

Natal nos pega pelo pé, cria crostinhas de açúcar no coração e nos obriga a façanhas em que normalmente não nos jogaríamos de cabeça como nesses dias. Natal é um pouco covardia, mas é também alegria, que rima, e vontade de fazer coisas inusitadas. Alguns bebem demais, outros choram piscinas diante da família reunida; outros ainda comem demais, e talvez seja esse o resultado mais frequente. Mas quando chega o 24 de dezembro, a gente lembra de presentes que não comprou, corre ao shopping, que nos recebe de braços abertos para comprar mais e mais, e de punhos fechados para nos dar mil e um esbarrões no povo que vaievem sem olhar para onde anda, porque não dá pra ver onde anda. Na hora dos presentes, amigos ocultos ou exibidos, ocorrem alguns malentendidos que no entanto não conseguem empanar o brilho da estrela que pisca na árvore. No fim todo mundo se abraço, ri, espalha papel e sacolas pela casa, e como o dia que entra é feriado, não tem empregada pra arrumar e fica tudo assim mesmo, que ninguém é de ferro. Dorme-se até o meio-dia ou mais, e aí continua a comilança, o almoço cresce na mesa, a toalha mancha de vinho, cervejinhas, refrigerantes das crianças e molhos variados, mas tudo deve ficar na santa paz da sujeira abençoada. 
Os mais religiosos se revoltam levemente (cada vez mais levemente) com tamanho materialismo, mas ficam na deles (ou não, caso em que a família tenta ignorar qualquer voz dissonante, já que todos estão muito satisfeitos). Mas o tempo passa, as horas estão mais rápidas agora (dizem) e daí a uma semana será janeiro, entrando triunfante depois de mais uma noitada de comes e bebes, dança, passeios, farras homéricas ou moderadas. Praias cheias, ruas nem tanto, e a perspectiva de tudo recomeçar como era antes, porém enfeitado por sonhos novos.
Essas seriam as boas festas que costumamos desejar aos amigos e conhecidos.
Para alguns, nem tão poucos como se imagina, as festas acontecem numa solidão de tons menos ou mais sombrios, mas às vezes até bem-vinda.
Não faz mal. Que cada um tenha o Natal e ano novo que deseja, que lhe faz bem, e que o ano comece tranquilo. Melhor que isso, só no ano que vem.




Humor quase negro, sem direito a cotas





 

Diz Antônio Cícero que “só se sai da vida pela janela”, porque ninguém quer sair dela. Mesmo os suicidas, que se encarregam eles mesmos de abrir a tal janela, não resolvem isso assim de uma hora para outra. Desistir da vida é um processo sofrido e elaborado, e às vezes tão demorado que dá tempo até de subir ao topo da torre Eiffel


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 Brasilidade e suas variantes


Existe gente mais cínica do que político brasileiro?
Será que a vocação política implica cinismo?
Que tal mandar a raça toda pro Japão e submetê-los às leis de lá, onde a barra pesa de verdade?
Político japonês costuma praticar o haraquiri, quando é apanhado com a mão na massa ou a boca na botija. Não seria um destino justo pra essa gentalha? Parlamentares do Brasil estão se dando aumentos astronômicos – mais de 60%. Ministros e Dilminha vão ter mais de 100%, segundo as notícias que rolam na mídia. Já os professores...

Enquanto isso, o Ficha Limpa fez água. A Justiça brasileira, com pouquíssimas exceções, também merece ser banida para algum lugar de autoridades menos cúmplices dos bandidos que elegemos ou dos que são escolhidos por eles.

Doce ultimato


                    

— E então? – perguntou Luana, assim que ele chegou.
Lopes olhou para ela como quem tem muita coisa a dizer, mas não disse nada. Chamou-a para irem à cafeteria de costume, na torre do shopping, ela ansiosa, ele um pouco misterioso. Mas logo que sentaram para conversar ele sorriu.
— Está tudo bem, garantiu. Ele entendeu.
— Entendeu? Como assim? O que foi que ele disse?
— Que sim, que entendia, que essas coisas podem acontecer...
— Logo que você falou? O que foi que você disse a ele?
Lopes franziu a testa e acendeu um cigarro.
— Eu só expus a situação, o que estava acontecendo entre nós. A princípio ele ficou calado, sério, e eu pensei que fosse reagir mal. Mas uns minutos depois começou a fazer perguntas.
— Perguntas? Que perguntas?
— Ah, bobagens, banalidades... Eu até estranhei a reação dele, mas depois percebi que estava ganhando tempo para se controlar.
Luana desviou os olhos para um ponto indeterminado. Parecia meio decepcionada e ele notou.
— Pensei, disse ela lentamente, que fosse ficar bravo, enlouquecido, furioso. Ele é mesmo imprevisível. Estamos casados há onze anos. Sempre pensei que fosse louco por mim...
— Estão casados?
— É, quer dizer, ainda não nos divorciamos, você sabe.
Lopes apagou o cigarro com uma ruga na testa.
— Se você quer muito saber, acho que ele ainda é mesmo louco por você. Ficou falando abobrinhas enquanto eu esperava uma resposta mais clara, uma solução para o impasse...
— Impasse? Você chama nosso caso de impasse?
Ele sorriu de leve e teve vontade de beijá-la ali mesmo, mas se conteve.
— Não, bobinha, não estou falando do nosso caso, estou falando da situação. Ele demorou a se definir, acho que não queria bancar o troglodita. Ou então segurou a onda pra não parecer um fraco, manter uma atitude digna. Houve um momento em que pensei que ia desmontar, ficou de cabeça baixa...
— O Luan? – Ela perguntou com um leve sorriso.
— O Luan. Ficou parado olhando para o chão como quem procura uma saída. Mas depois voltou a me encarar e começou a falar da vida de vocês, de como andavam distantes ultimamente.
— Culpa dele, que está sempre viajando para o pai, tratando de negócios em outros países. Deus sabe quantas vezes desejei um homem perto de mim...
— Agora você tem um em tempo integral.
Ela ignorou a dica.
— Mas foi só isso que ele disse?
— Quase só isso.
Outro silêncio embaraçoso.
— Eu devia ir ao encontro dele, você não acha?
— Se você acha que deve, vá – Lopes respondeu de cara fechada.
— Tenho que voltar lá para pegar minhas coisas, tomar minhas providências.
— Claro. Quer ajuda?
— Pode parecer afrontoso voltar lá com você para fazer a mudança. Não quero que ele fique ofendido, magoado. Chega a separação, que ele nunca esperou. É, tenho que conversar com ele, afinal ainda é meu marido.
— Ainda? Me diga uma coisa, você está arrependida?
Durante uns segundos, houve um silêncio cheio de ambiguidade. Depois ela olhou nos olhos dele e fez um afago em sua mão.
— Você é o homem mais inteligente e mais sensível que já encontrei em minha vida. – E acrescentou — Te ligo mais tarde – antes de sair.
Lopes pagou a conta e foi ao cinema. Precisava muito de um happy end.

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‘A Terra é um planeta que deu bicho’

 
                                                          Foto Brassai.

Se todo mundo pensasse a sério nessa verdade comprovada cientificamente, a humildade e a simplicidade teriam mais chance de ser apreciadas pelas pessoas. Não falo em termos de virtudes místicas veneráveis, capazes de formatar santos para altares futuros. Não proponho humildade como subserviência ou submissão, nem simplicidade como simplismo ou ingenuidade.
De certa forma, penso o contrário. Humildade aqui tem o sentido de consciência dos próprios limites, e por isso valoriza a solidariedade, é capaz de empatia e dispensa a arrogância. Nesse sentido, humildade é saber que se é tão bom como qualquer outra pessoa, ainda que se conheça profundamente algum assunto, tenha conquistado uma posição de destaque na carreira ou ganhado prêmios por alguma realização.
Sucesso pessoal, prêmios e reconhecimento não têm nada a ver com isso. Admiração e aplauso são incentivos necessários e fazem bem ao coração, contanto que os aplausos não venham de claques pagas para aplaudir quem não fez nada para merecê-los. Nesse caso, tudo não passa de uma mentira pregada a si mesmo – um tipo de mentira que costuma deixar um gosto muito ruim na boca de quem a pratica e o ego secretamente esfolado.

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Maiakovski por Gal Costa