sábado

Martírio




Era vizinho de nossa família nos tempos de minha infância. Estudou com meu irmão na escola municipal do bairro, e cursavam direito juntos quando resolveu ser padre. Ingressou no seminário, concluiu o curso, e ao fim de uns anos lá estava ele, um missionário radiante de felicidade. Meu irmão, ateu convicto, e eu, meio desligada de tudo que não fosse jornalismo e literatura, não deixamos no entanto de amá-lo, cada qual a seu jeito. Ele correspondia com a doçura que era só dele.
Um dia, os dois na varanda depois de um almoço lá em casa, eu disse a ele que o martírio era uma bobagem sem tamanho. Ele me olhou com um misto de surpresa e repreensão – a repreensão suave de que seria capaz:
— Mas como... O que é que você está dizendo? Já se deu conta? Nem falo só do martírio religioso, há outros...
Eu nem pestanejei. Achava aquilo mesmo. Sentia muito se o decepcionava, mas não via vantagem em morrer por uma causa. Mesmo a vantagem política me parecia questionável. O que seria mais importante: a força moral ou a força do braço que trabalha para mudar as coisas? Não é morrendo que...
Ele tocou meu braço e o apertou um pouco mais do que seria de esperar.
— Peraí, peraí. Você está delirando. Então você acha que vale mais quebrar pedra do que inaugurar um monumento?
— Se ninguém quebrar a pedra, o monumento não sai.
Ele refletiu por uns segundo, sem soltar meu braço. Acho que o olhei de um modo diferente, porque pareceu se dar conta do que estava fazendo.
— Ah, disse, largando meu braço, desculpe, eu... Mas você dizia – e se ajeitou na cadeira.
— Nada, respondi. Nada, não disse nada. Foi só um impulso.
Ele sorriu. O mundo estava em paz outra vez. Levantou a mão e fez um sinal de absolvição diante de mim. Naquele momento percebi: nunca seria meu.

Beleza em vídeo






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 Umbigo recomenda

Vale a pena ver e ouvir o que diz essa moça. Em sua palestra, ela nos passa não só uma lição de vida, mas o princípio mesmo que deve nortear toda ação e toda justiça.


A história de amor dos dois pintores


Egon Schiele

Por que não voltamos daqui – ela propôs – já é tão tarde e o dia está nascendo nos jardins de Monet.
Então é cedo – ele falou – as árvores de leve concordaram e tudo começou numa tela de Turner.
Arrumaram a casa com Peticov e Klee. Cézanne trouxe as frutas, Van Gogh as noites e Klimt erotizou a terra, que logo se dividiu em planos escherianos e pássaros voando em degradês sobre os casais de Schiele.
Picasso entrou em cena no início da guerra. Dali descobria coisas imprevisíveis, mas Munch já habitava suas entranhas. A casa de Jacek fazia água e os personagens de Magritte entraram em cena, meias-luas pairando sobre o chapéu. Passaram a ignorar perspectivas e Chagall subiu no telhado.
Desse ponto a Hopper foi pouco mais que um passo e a solidão campeava solta. O mundo se dissolveu, Miró eclodiu e respingou Pollock. Já não eram dois, mas muitos fragmentos, até que tudo ficou mais complicado por Bardinet e Yvette Jullien. Mabe pôs um fundo final na história deles, que nunca mais se viram.
 

sexta-feira

Homens sábios



Texto de
Alexandre Amorim

   Adolfo gosta de futebol. Torce para o Bayern de Munique e, do alto de seus dez anos, não se    lembra da seleção alemã ter perdido a final da Copa do Mundo para o Brasil, em 2002. Seu pai o leva para ver alguns jogos, comprou a camisa vintage branca e preta, de 1974, e diz que Adolfo pode ser um grande jogador, se treinar bastante. Adolfo nasceu na Costa do Marfim, mas foi viver na Alemanha com os pais ainda muito pequenino. O pai é alemão, trabalha como contador e casou-se em 1996 com a mãe de Adolfo quando foi trabalhar em uma firma de exportação alemã que tinha filiais na África. A mãe de Adolfo se formou em Administração no Congo e foi trabalhar na Costa do Marfim, onde conheceu aquele alemão branquíssimo, de olhos muito pretos. Adolfo é mulato, de olhos castanhos.
   Ontem de manhã, Adolfo não foi à escola porque estava com dor de barriga, e aproveitou para procurar na internet qual a chave da Alemanha na Copa. Acabou descobrindo que seu país de origem também está no campeonato. Adolfo vai torcer para a Alemanha, mas, se ela for eliminada, vai torcer para a Costa do Marfim. Seus amigos da escola acham engraçado que ele torça por aquela seleção tão chinfrim, mas ele se irrita e chama a todos de idiotas. Mal sabem eles que seu país é enorme e que muitos alemães trabalham por lá, até seu pai já trabalhou.
   Adolfo acaba se distraindo na internet e descobre que a África é chamada de “berço da humanidade”, porque dizem que a raça humana se desenvolveu lá. Ele se pergunta se foi na Costa do Marfim, onde nasceu, mas não consegue descobrir, porque as informações na internet são muito confusas, e algumas até duvidam de que tenha sido na África mesmo que o homem nasceu. Ele lê sobre Lucy, o fóssil do primeiro ser humano, ancestrais na Sibéria, instrumentos e desenhos encontrados nas cavernas da América Latina. Lê também sobre chimpanzés, linha evolutiva, Darwin, design inteligente, Adão e Eva... Até que se cansa e levanta da cadeira para ir até o sofá da sala e assistir à TV. Ele troca de canal com pressa, porque nenhum desenho ou filme lhe interessa muito, mas passa por um canal em que duas palavras que ele acaba de ler na internet aparecem na tela: Sapiens e Neandertal.
   Uma moça loura vestida de azul-marinho conta, em um jornal vespertino, que cientistas alemães descobriram que o Homo Sapiens se acasalou com o homem de Neandertal. A palavra “acasalar” não fica bem clara para Adolfo, mas ele entende que os dois se casaram e tiveram filhos. Entende também que eram de espécies diferentes e que ninguém acreditava nisso até que esses cientistas alemães provaram que realmente aconteceu. E que muita gente está chateada com isso, porque muita gente acreditava que o Homo Sapiens (que somos nós, pensa Adolfo) era uma espécie pura, de linhagem direta e sem cruzamentos. A moça da TV ainda comenta que esses cruzamentos aconteceram na Europa, mas não na África, onde o homo sapiens não apresentava sinais de cruzamento com outras espécies.
   Adolfo não sabe bem o porquê, mas sente certo orgulho de ser africano. Se sente especial, pensa que seus antepassados não se misturaram com aqueles homúnculos atrasados, os neandertais. Seu pai liga para casa e pergunta a hora de sua mãe chegar, e então Adolfo se lembra que o pai pode ser descendente de neandertais, porque é europeu e não é puro como os sapiens africanos. Ele volta para a internet, pesquisa e descobre que o primeiro neandertal foi encontrado justamente na Alemanha. Povo idiota, ele pensa. Adolfo também pensa que nasceu na África mas vive na Europa graças a seu pai, e sente raiva dele. Sente raiva de seus colegas de escola, que mexem com ele, falam mal do futebol da Costa do Marfim, mas também falam mal de sua cor. Os colegas de Adolfo mencionam um homem com um nome parecido com o seu, de sobrenome cheio de erres, que queria criar um povo puro, sem sujeiras, branco e perfeito. Adolfo sentia raiva de achar que não era perfeito porque não era branco, mas agora sabe que a perfeição e a pureza estão justamente onde nasceu, na África dos homens puros, sem cruzamentos e acasalamentos com outras espécies.
   À noite, sem conseguir dormir, Adolfo pede água a seu pai. Ele se levanta e vai até o quarto com um copo pela metade. Entrega ao filho, que bebe dois goles e devolve o copo. Pergunta ao pai por que a água tem que ser pura. O pai explica que nada é puro, porque sempre existe alguma mistura. O que não pode haver na água são elementos que causem doenças ou prejudiquem a gente. Como os neandertais?, Adolfo pergunta. O pai olha com estranheza, mas se lembra de uma conversa com colegas de trabalho sobre homo sapiens e neandertais. Quer saber o que eles têm a ver com elementos que causem doenças. Adolfo explica que eles prejudicaram os europeus, que não ficaram puros. O pai ri, diz que ninguém é puro, que nada é puro, que a última pessoa que pensou em pureza morreu triste e sofreu muito, porque isso não existe, que pensar assim é burrice. E prometeu levar Adolfo ao museu de História Natural para ele ver como os homens podem ser sábios.
   Adolfo, naquela noite, sonhou com futebol, com homens brancos, pretos e amarelos, grandes e pequenos, com homens felizes jogando bola e fazendo gols.

Da Revista de Educação Pública.
Publicado em 08/06/2010.

Alexandre Amorim é meu filho. Podem dizer que é corujice, porque é mesmo : D