quarta-feira

Baú perdido



 

O doutor Laudelino Ancelmo de Molina y Márquez era um médico venerando, descendente de nobres espanhóis. Tratara dela em Búzios, nas férias de fim de ano, que ele passava com um filho, a nora e um neto na casa de praia. Nina tivera uma noite atroz com dores no ouvido e de manhã estava febril e abatida. A amiga com quem dividia o quarto na pousada de Geribá se lembrou que na casa da esquina havia um médico.
O doutor Laudelino cuidou dela com um carinho especial e se empenhou em visitá-la duas vezes por dia até o fim da semana, trazendo toda a medicação necessária. Passada a crise, ele a acompanhava até a praia quase sempre, alegando que Nina era muito jovem para saber se cuidar sozinha e desejava preservá-la de outra otite naquelas férias. A princípio achou graça na elegância do velho médico. Sua companhia a incomodava um pouco às vezes; ele limitava seus mergulhos com autoridade, e alguns dias mais tarde foi à pousada levar um par de protetores de ouvido.
Era um cerco delicado, porém firme, que afinal a fez pensar em como seria agradável tornar-se uma viúva rica ainda jovem. A essa altura ele a presenteava com flores e, como de vez em quando ainda a acompanhava na hora da praia, comprava-lhe biquínis, cangas e vestidinhos pelos quais ela manifestasse um mínimo de interesse. Acabara por se afeiçoar ao doutor, que não demorou a lhe propor casamento, com as mãos dela entre as suas, macias e bem-tratadas, apesar de algumas efélides. Gostava de seu cheiro discreto de rosas e continuou a recebê-lo em seu apartamento no Rio, preparando para ele biscoitinhos e trufas que o deixavam com os olhos brilhantes.
Tudo parecia perfeito. Casariam dentro de três meses e iriam morar no Leblon, no vasto apartamento de cobertura em frente à praia onde ele vivia, servido por três empregados, cultivando orquídeas no terraço e colecionando santos barrocos, ao lado de um velho gato angorá mal-humorado.
Faltavam só quinze dias para a data marcada, quando o doutor Laudelino caiu fulminado por um ataque cardíaco no meio do banheiro de mármore negro de sua suíte. Preparava-se para ir visitar a noiva, levando uma aliança cravejada de diamantes que Nina não chegaria a ver, porque desapareceu do quarto do morto sem que ninguém, exceto o mordomo, ficasse sabendo.


segunda-feira

A porta


 Foto sem menção de autor.


O telefone parece um bicho cochilando em cima do sofá. Disco como quem não quer nada e espero o resultado. Pode ser que não responda, que não ligue, que esteja ocupado. Ou pode ser que outra pessoa atenda, mas quem? Será que Norinha já tem outro? Também pode ser que ela atenda, mas por enquanto melhor seria não pensar em nada, encostar aqui no fundo do vazio e esperar. Parece que perdi. Minha mão suando frio, que é isso? Só pode ser fome.
Esticou o pé o atingiu o telefone. Ergueu-se com uma praga e pôs o aparelho no chão. Três noites de insônia, teias nos olhos, a cabeça oca. Há dois dias e meio que cada gesto, cada ato é uma violência, um incômodo, uma impostura que o obriga a pôr seu primeiro plano em segundo e o deixa de mau humor. Acordou noite fechada, custou a lembrar o que estava acontecendo. O corpo todo em estado de dor. Do fundo da memória foi chegando uma confusão, coisas destacadas e logo misturadas, e no meio de tudo uma dúvida: a porta ficou aberta?
O telefone tocou. Taquicardia. A voz da secretária no meio de um torvelinho, a cabeça explodindo em um ofuscamento como se estourassem flashes a sua frente. Sobressalto, pressa, pulo da cama: tinha uma reunião daí a quinze minutos. O ensaio, onde estaria o ensaio? A voz da secretária fazia perguntas – sim, estou em casa, se não estivesse não estaria falando com você, porra.
Entrou no banheiro apressado e ouviu um ruído na entrada. Esticou-se de dentro do boxe para entreabrir a porta e a porta resistiu, havia alguém passando atrás. Saiu agarrado na toalha, o coração aos pulos.
— Norinha?
— Você dormiu de porta aberta, sabia? Escancarada. Levei até um susto, pensei em assalto. Mas era só lerdeza tua mesmo, você também dorme de boca aberta – ela riu e virou a cara, se esgueirando para chegar até o armário sem roçar nele.
Fez uma tentativa de falar com ela, mas não conseguiu. Estava hirto, inteiriçado, e começou a gaguejar.
— Não posso demorar, estão me esperando lá embaixo. Acho que meu xale branco ficou aqui.
— Viu, se você deixou alguma coisa é porque estava pensando em voltar – disse e se arrependeu na mesma hora.
Nem resposta. Nem um olhar. Voltou ao banheiro e deu com a própria cara no espelho. Escorou a porta com a mão e mordeu o braço cabeludo até doer.

sexta-feira

Escrever


De Fabi Magni Shabby, do Blogs Crazy Life.

A denominação "escritor" é ampla e irrestrita. Há os institucionalizados, conhecidos, badalados – e há os anônimos (milhões? Bilhões?). Há os conscientes, que nós bem conhecemos; e há os desligados, que não estão nem aí, mas escrevem por causa daquela necessidade interna de que falava o Lúcio Cardoso ou por qualquer outro motivo. Clarice dizia que tentava explicar a si mesma aquelas coisas que sentimos e vivemos mas não conseguimos entender – provavelmente o que, em Água viva, ela chamava de "atrás do pensamento".
A razão não dá conta de tudo que se passa na gente. A vida transborda muito além da razão, daquilo que se percebe. A vida vai muito além do conhecimento. E então? Fazer o que dessa sobra? E que matéria é essa?
Talvez a gente deva comemorar a vida. E uma das melhores maneiras de fazer isso talvez seja escrever.

quarta-feira

Calendários





Um novo mês antigo
nos assola
e veta outras palavras
como quem pede dos homens
a sanidade.
Os dias cobram passagem
tocam o ombro
em exigência
para o mês que adentrou o calendário.

Lembro de um homem
sempre em desacordo
deslocado
dentro de um mês futuro
ou do passado.
Ele falava novembros em agosto
e nunca atentou para os dias
senão para os estágios de manhãs
tardes e noites.

Contemplava o sol
raso nascente ou maduro
sabia as poses da lua
e assim era feliz.
Falava como quem sonha
redimido
mesmo perdido
de toda abstração
todos os meses.

segunda-feira

De Steven Hayes














"As artimanhas que usamos para escapar da aflição nos desviam de nossos objetivos de vida. E é por eles que vale a pena viver."

sexta-feira

A gata do vizinho




Hoje de manhã gata do vizinho pulou o muro, entrou na cozinha e virou a tigela de creme de leite que eu tinha separado para o molho do fetuccini. Ontem emporcalhou a poltrona da sala com as patinhas sujas de terra infecta, trouxe uma barata viva para brincar no tapete e virou a jarra da mesinha para beber água.
Mostrei ao vizinho os cacos da tigela e aproveitei para falar de ontem. Fui firme, e educadamente mostrei a ele minha indignação. Além disso, nunca fui muito amiga desses animais.
Ele foi muito simpático, ouviu com toda atenção e aproveitou para me mostrar a ninhada dela, quatro bichinhos cinza-prateados de olhos azuis. Conversamos durante quase duas horas, durante as quais tive oportunidade de notar que seus olhos (os do vizinho) têm uma intrigante coloração verde-cinza e que sua voz ressoa docemente em algum lugar incerto da sensibilidade muito além do ouvido. Acabou me convencendo a ficar com dois filhotes, os mais bonitinhos. Para comemorar me convidou para jantar. Amanhã ele vem me explicar a melhor maneira de cuidar dos gatinhos e depois vamos ao cinema.

quarta-feira

A rede


Foto do Google sem menção de autor;


A Armando doía como uma perda a conquista de tanto território, chão novo refletindo tudo, paredes espelhadas em excesso. Não gostava. Desde a véspera sentia calafrios, a cabeça estourava a cada movimento. Nem do balcão do quarto, que Angélica chamava de varanda, ele gostava, por causa da grade fria, escura e de arabescos exatos que aprisionavam a paisagem verde em outro lado do mundo. Não relaxava na cama e seu desejo gritava pela rede que tinham deixado no apartamento antigo.
O apartamento antigo ficava numa ruazinha pequena em Laranjeiras. As janelas dos fundos davam para umas árvores de folhas brilhantes onde ele tinha pendurado a rede, sempre imaginando que balançava debaixo dos galhos de quando era criança em sua terra natal. Estava aposentado por causa de uma doença de nome esquisito e tinha dado muita sorte com dinheiro: dias antes de sair a aposentadoria, caiu em suas mãos um prêmio de loteria, um prêmio grande o bastante para tudo aquilo que Angélica tinha inventado, dando pulos de alegria. Nunca mais dormiria sossegado, nunca mais teria uma rede debaixo das árvores do sonho. Naquela casa tão grande não havia espaço para sua rede. As árvores ficavam distantes, a paisagem não o incluía e tudo era novo, lustroso e cheirava a tinta.
Angélica não acreditava nele. Queria que ajudasse e pendurasse quadros, empurrasse móveis, atendesse ao telefone que ia estourar de tanto tocar. Angélica ria, multiplicada em braços, dava ordens aos homens da mudança e tomava providências que lhe pareciam confusas, repentinas, que não chegava a entender. Nem queria.
Fechou os olhos com força diante da janela e quando os reabriu houve um segundo de espanto: sentia a pequena pedra num ponto qualquer entre o estômago e o esterno. Um momento solto no fio do tempo. A paisagem se moveu e estacou como uma criança brincando de estátua. Sentiu náuseas, os calafrios voltaram. Um inimigo teria sido mais confortável, pensou, passando a mão na testa. Havia um inimigo dentro dele, e disso Angélica não tinha culpa.
Estirou-se na cama sem lençol e tornou a fechar os olhos que ardiam. Se ao menos dormisse, pensou, mas o pensamento ia além das palavras, percorria um terreno secreto para si mesmo. Estava imóvel, mas dentro dele havia uma aflição de procura que o fazia girar e se agitar sem descanso. Estava cansado demais para responder à voz que vinha de longe, amortecida por uma espécie de ruído insistente que era como uma cortina entre ele e o mundo exterior. Desistiu de ouvir o que ela dizia, desistiu de tudo e deixou-se mergulhar numa penumbra morna que rodeava sua boca como água.
Ainda notou quando ela apareceu à porta do quarto e perguntou alguma coisa. Viu seus olhos muito abertos e um silêncio escuro foi engolindo tudo – Angélica, a janela da prisão, o teto com uns desenhos intrigantes – até que não viu nem ouviu mais nada. Não ia morar naquela casa hostil. Estava de novo balançando de leve na rede do Norte, tão macia que era como não estar em lugar nenhum.

segunda-feira

Aconteceu comigo


  Foto sem menção de autor


Tive até duas carteiras de identidade, a primeira do IFP, que sumiu, e a segunda (provisória) do Detran. Várias vezes pedi outra, mas o processo caía “em exigência”; os preclaros funcionários daquela repartição me explicavam que minhas digitais apresentavam-se pouco claras, por conta de traços que as interrompiam, tornando-as inidentificáveis e portanto inaceitáveis para o datiloscopista. Nada contra a classe. Mas parece que são preparados somente para dizer sim ou não às nossas digitais e ponto final. Nunca lhes falaram sobre o mundo além das pontas dos dedos.
Tentei ir mais fundo na questão, argumentando que existem outros modos de identificar alguém, o DNA sendo o mais conhecido no mundo civilizado. Depois de três tentativas baldadas, convenci-me de que foi Kafka o fundador do Detran, porque toda vez que eu insistia em falar no assunto meus atendentes faziam cara de paisagem. Quem ainda se dava ao trabalho de responder alguma coisa, dizia vagamente que não, nunca tinha ouvido falar sobre esses métodos. E um deles chegou a argumentar, com um misto de espanto e complacência penalizada: “DNA só serve pra confirmar a paternidade, só.” Humildemente argumentei que até múmias da Antiguidade andavam sendo identificadas a partir de restos de antepassados, e que meus antepassados deviam estar em condições bem melhores. Mas o rapaz deve ter achado a proposta indecente; sacudiu a cabeça, escandalizado, e encerrou o assunto com um “aqui não fazemos esse tipo de coisa”.
Devem ter recebido instruções nesse sentido, concluí, recusando-me a acreditar na hipótese de incompetência ou pura e simples ignorância. Deve haver uma razão transcendental para que eles se apliquem com tal pertinácia a impedir que uma pessoa obviamente real, ali presente em carne, osso, roupa, voz e acessórios, fique privada da carteira plastificada que lhe garante um lugar no rol dos cidadãos deste país. Mesmo com aquela cara de idiota no retrato, não é justo que deva me conformar em ser para o resto da vida uma pária da sociedade.
Pensei em contratar um advogado, trocar meu voto por uma carteira de identidade vitalícia ou analisar o grau de corruptibilidade dos funcionários kafkodetraniano. Mas felizmente não foi preciso: encontrei um menos intransigente, que achou minhas digitais aceitáveis e me deu uma das maiores alegrias cívicas de que me recordo. 

Felicidade?


“(...) compre um gato”, preconizou um dia João Pereira Coutinho, num artigo na Folha de São Paulo. “Ele não espera nada, ele não deseja nada. A felicidade, para ele, não existe por adição (...). Mas por repetição: ele repete as experiências que são significativas. E, em cada repetição, existe a certeza da mesma felicidade.” Mais adiante, Coutinho relata a experiência do professor inglês Mark Rowlands, que comprou um lobo, domesticou-o (depois de ver destruída metade de seus móveis e objetos) e conviveu com ele durante 11 anos, levando o animal até para as aulas na universidade. O relato está em “O filósofo e o lobo: lições do selvagem sobre amor, morte e felicidade”, livro ainda não traduzido por aqui e, segundo a crônica, “uma longa meditação sobre a natureza da felicidade humana. Ou, se preferirem, sobre a sua impossibilidade.”

quinta-feira

Do jeitinho



René Magritte. Sem nome.


O jeitinho brasileiro é isento de culpa. Não se envergonha de nada do que faz. No entanto pode muito bem ligar-se à corrupção, assim, numa boa.
Na rede dos significados, o jeitinho tem um valor diferente de favor ou corrupção. Traz embutida uma lei informal que vale para alguma emergência por exemplo. Ora, quem presta um favor gera uma obrigação moral. Mesmo que se pague esse favor com outro ou com uma recompensa lícita. Há uma hierarquia entre quem dá e quem recebe.
A reciprocidade do jeitinho é difusa: ele pode ser “devolvido” a qualquer outra pessoa – parente, amigo ou apadrinhado do prestador. O que vai definir o beneficiário de jeitinho é a situação, a circunstância que o torna necessário.
O jeitinho conta muito mais com o implícito do que com o explícito. Traz em si um gene de economia informal, de improvisação e criatividade. Na vida privada ele não funciona bem. Favor é coisa que se faz aos amigos, tem certo traço de afetividade, mas é uma afetividade diluída em nuances de interesse.
A lei no Brasil é basicamente transponível. A regra não representa um limite na sociedade brasileira. Na esfera pública, o jeitinho nunca é associado à culpa. Basta ver o nível de impunidade que beneficia pessoas que comprovadamente malversaram ou roubaram recursos públicos em proveito próprio ou de outro de seu interesse. No Brasil, público não é o que pertence a todos, mas o que não pertence a ninguém. Isso isenta o eixo da responsabilidade individual de quem lança mão do jeitinho. A culpa é sempre atribuída ao macro: a raça, o clima, a globalização, a colonização, o imperialismo. Excetuando os dois primeiros, certos fatores podem ser em parte responsáveis por alguns problemas. Mas as ações nunca são genéricas, são sempre de um indivíduo.
Na verdade, a brasilidade tem sua importância, ou não teríamos chegado a ser a oitava economia do mundo. Mas outro de nossos vícios é a mania de só ver defeitos no que é brasileiro. E essa frágil auto-estima talvez explique por que é tão fácil usar do jeitinho e depois atribuir a culpa a um fator aleatório qualquer. Temos muitos defeitos do ponto de vista antropológico, e talvez o maior e mais fértil deles seja o complexo de inferioridade ,que nos torna incapazes de perceber e assumir nossa dignidade de nação. Afinal, se somos pobres, sofremos de males sociais que nos tornam alvo do desprezo do mundo desenvolvido e para atrair turistas nos basta a natureza, o que se pode esperar de nós senão o talento do jeitinho? Não é simpático ser malandro?
O grande problema está em que, entre o jeitinho e o delito existe uma linha tão tênue que em alguns momentos desaparece. E que isso aconteça com uns poucos, dá pra entender. Mas que seja uma mentalidade e um traço cultural, é grave. E que chegue a ser uma lei informal até nas altas esferas de governo, é quase uma catástrofe moral.
Afinal, quando é que vamos entender o quanto esse jeitinho tem de enganador, o quanto ele nos deprecia como país? É quase um paradoxo achar que sem o jeitinho nada vai se conseguir. Por que, se nossos recursos naturais são poderosos, nosso país é um dos maiores do mundo em extensão e a economia brasileira não vai mal, precisamos tanto dessa artimanha que cheira a mesquinhez? Será porque, apesar de tudo, a renda continua tão mal distribuída, a educação e a saúde continuam críticas e por isso falta esperança e a auto-estima das pessoas continua rasteira? Pode ser. Mas como se explica que gente graúda como congressistas, ministros e juízes se dêem a esse desfrute de aplicar golpes à base de jeitinhos? Um bom tema de pesquisa.