quarta-feira

Rio, cidade ambígua



                               

O Rio tem um quê de inesperado. Aqui acontecem coisas difíceis de encontrar em outras cidades do mundo. Até mesmo coisas desabonadoras acontecem por aqui com certa naturalidade. São traços de personalidade que os cariocas e seus amigos de fora vão absorvendo, à medida que se acostumam às ruas, bairros urbanos ou da periferia. São cenas típicas, sentimentos que se instalam na gente que vive aqui; paisagens que incorporamos ao dia-a-dia; costumes que se adotam sem saber bem por quê. Nada mais característico do Rio do que essa sensação de gratuidade, esse contágio fácil que vai generalizando um jeito de viver e agir; que inventa hábitos, expressões, gírias que acabam incorporadas ao carioquês. O jeito de vestir irreverente, a informalidade. A vivacidade, uma espécie de astúcia malandra de procurar o que fica mais simples, mais à mão, o que soa mais despreocupado e casual. A alegria de viver que chega às raias da inconsequência. Um certo atrevimento. E mesmo no inverno, o descaramento de sair sem casaco num frio de dez graus. Ou de casaco e sandália havaiana. Só um carioca pode fazer questão de ignorar o guarda-chuva, faça o tempo que fizer. E as (poucas) cotias do Campo de Santana, ao que parece, são as únicas no mundo que não fogem das pessoas. Passa-se pela lagoa e lá está uma ave desafiadora na proa de um barco, e a gente para só para ver seu voo se desenhar no meio do céu. O carioca, do mais sofisticado ao mais simples, é um contemplativo.
De repente, um poodle miniatura chama para a briga os pés de quem passa e todos se encantam por ele, enquanto sua dona segue adiante e deixa na calçada os dejetos do bichinho como se não tivesse notado. Ninguém como um carioca sabe se fazer de desentendido, quando lhe interessa. Ninguém desconversa melhor. E ninguém liga pra isso; há uma ética do desinteresse que sustenta a infinita tolerância carioca para com a contravenção, o crime, a bandalha, o relaxamento. O carioca é um leniente que perdeu o freio. 
São cariocas os motoristas machões e marrentos e o poder desassombrado dos pivetes de qualquer idade. Carioca é cheio de saídas criativas. Improvisa, programa só pra não cumprir e não cumpre horários, a não ser que o emprego seja dos bons (aqui é preciso abrir uma exceção para os políticos de assembleias legislativas, que também não cumprem horários nem calendários, embora o emprego seja dos melhores de que sem tem notícia). Carioca pode conviver com o caos e a promiscuidade das ruas, dos bares, das boates sem perder uma ponta de compaixão e uma leveza que recria pessoas e ambientes, mas de repente se invoca (se irrita) por qualquer bobagem e parte para a briga.
É bem a nossa cara virar padrinho de um garoto de rua, ficar inteiramente eufórico por isso e depois perder o afilhado de vista. Acreditar cegamente em alguém só porque tem uma boa conversa. Apaixonar-se de repente por alguém que nunca viu. Fazer amizades instantâneas como se morasse no paraíso.
E no entanto o paraíso carioca é cada vez mais apenas uma linda paisagem. Parece que as virtudes desse povo criaram raízes tão enormes que, com o passar do tempo, viraram um cipoal em que se tropeça a toda hora. Porque uma virtude é o extremo oposto de um defeito, e acontece que os extremos sempre se tocam.

domingo

Poemas de Mario Benedetti



PARÉNTESIS, por Mario Benedetti, Montevideo 2008

Acompáñenme a entrar en el paréntesis
que alguien abrió cuando parió mi madre
y permanece aún en los otroras
y en los ahoras y en los puede ser
lo llaman vida si no tiene herrumbre
yo manejo el deseo con mis riendas
mientras trato de construir un río
en sus nubes los pájaros se esconden
no es posible viajar bajo sus alas
lo mejor es abrir el corazón
y llenar el paréntesis con sueños
los pájaros escapan como amores
y como amores vuelven a encontrarnos
son sencillos como las soledades
y repetidos como los insomnios
busco mis cómplices en la frontera
que media entre tu piel y mi pellejo
me oriento hacia el amor sin heroísmo
sin esperanzas pero con memoria
por ahora el paréntesis prosigue
abierto y taciturno como un túnel

CERRAR LOS OJOS, por Mario Benedetti, Montevideo 2008

Cerremos estos ojos para entrar al misterio
el que acude con gozos y desdichas
así / en esta noche provocada
crearemos por fin nuestras propias estrellas
y nuestra hermosa colección de sueños
el pobre mundo seguirá rodando
lejos de nuestros párpados caídos
habrá hurtos abusos fechorías
o sea el espantoso ritmo de las cosas
allá en la calle seguirán los mismos
escaparates de las tentaciones
ah pero nuestros ojos tapados piensan sienten
lo que no pensaron ni sintieron antes
si pasado mañana los abrimos
el corazón acaso de encabrite
así hasta que los párpados
se nos caigan de nuevo
y volvamos al pacto de lo oscuro

PRESAGIOS, por Mario Benedetti, Montevideo 2008

Los presagios nos cercan / nos oprimen
pueden llegar con vivas o con lágrimas
son quizá las propuestas del futuro
que acuden con su estilo mesurado

terça-feira

Da criação literária




A criação literária é o momento privilegiado da palavra, quando se convocam imagens e estados subjetivos em função de uma criação única e intransferível. A obra de criação é autobiográfica como o sonho, ainda que não seja confessional. O que se manifesta na obra de criação tem suas raízes firmemente cravadas na subjetividade. Há sempre um pouco de sonho na obra de criação.
Palavra e imagem se fundem num texto que irá afetar de modos diferentes seus leitores. As pesquisas sobre o tema demonstram que a recepção individual do texto literário se dá em uma zona de condensação organizada por um inconsciente e sua subjetividade. Os elementos que contam para o indivíduo que lê vão além dos conceitos vigentes da cultura e dos preceitos de sua sociedade – embora esses fatores sejam de grande importância.
A explicação disso se deve em parte à disjunção palavra-coisa. Descobrimos que fomos vitimados por uma série de separações, quando acontecimentos como perdas, mortes ou omissões se reduziam a palavras que deixavam escapar seu verdadeiro sentido. O passado não cabe nas palavras com que o evocamos porque não foi e não será como o recordamos ou falamos dele.
Por sua vez, a imagem pode exibir acontecimentos em outra dimensão, mas a ilusão de seu poder também é um risco. Não vale mais nem menos que a palavra: é diferente. Os limites, os vazios, as imprecisões e a multiplicidade das palavras e da linguagem têm uma espécie de contrapartida na imagem. As palavras reduzem e atenuam o real que a imagem resgata. Mas é bom estar atento a um engano também nesse domínio. A imagem reproduzida e divulgada ao ponto que a vemos na propaganda e na mídia se destina a criar novas ilusões, porque a experiência que ela oferece não é a experiência do real. Enquanto representação do real, a imagem merece respeito. Rebaixada a vendedora de ilusões e propagadora da mentira, é uma fraude lamentável, que faz da ilusão uma razão de viver.
Como em tudo nesta vida, o real tem que ser a medida de todas as coisas.

quinta-feira

Umbigo





Andei pensando em cortar o Umbigo do rol dos blogs vivos.
Mas tenho certo amor por ele. Além do mais, alguns amigos se mostraram meio escandalizados ou discordaram da idéia por vários motivos. Isso me comoveu mais do que eu me achava capaz, e tomei uma decisão, apoiada em parte no incentivo dessas pessoas queridas, em parte em minha legendária teimosia (sou uma mula de teimosa, para quem ainda não sabia): o Umbigo renasce das cinzas antes mesmo de ser queimado.
A cena foi bonita: o azul explodiu em girândolas de dentro do elemento líquido. Na beira da piscina, grupos brindavam em flütes de cristal. Do lado onde fica a praia, o peixão comia sua ração dos dias especiais e parecia um saco sem fundo engolindo peixes, peixinhos e crustáceos infindáveis. Estava felicíssimo por ter arrancado de mim a promessa de que não o deixaria empalhado num museu de histórias desnaturadas nem preso para sempre no quadro do maluco de seu pai, Hyeronimus Bosch.
O final feliz merecia um nome à altura, e aí pensei em transformar o Umbigo do Sonho em Fênix. O blog sairia então da teoria freudiana diretamente para a irrealidade mítica. A idéia não vingou, porque ouvi nitidamente a voz meio rouca do barbudo me chamando de ingrrrraaattttaaaa.
Assim, graças a Papai Freud, com vocês, o Umbigo do Sonho velho de guerra.

sexta-feira

Manu se perde no parque



Adelaide Amorim

É preciso começar as coisas do princípio.
Hoje é dia do aniversário da Bella. Bella é Isabella, filha de uma amiga e agora também coleguinha de minha filha na sala dos mais crescidinhos da creche. São lindas, as duas. Sempre digo que se tivesse outra filha queria que fosse igual à Bella. Minha filha, Nina, é morena, tem olhos rasgados, cabelo comprido e promete virar uma linda gatinha daqui a uns anos. Bella é loura, cheia de cachos dourados, parece uma gravura de anjo.
Acordei mais cedo por causa do aniversário de Bella. A mãe dela marcou um piquenique no Jardim Botânico, bem lá dentro, onde é permitido comer e beber e há uma cantina em meio-círculo cercada de mesas redondas. O piquenique vai rolar lá pelas onze, quando começa o horário de almoço da garotada. O tempo está ajudando: ainda faz calor, mas o sol está meio escondido e corre um ventinho fresco de vez em quando. O trânsito não está dos piores, porque muita gente aproveita o sábado pra dormir até mais tarde ou vai à praia, e o Jardim é passeio para quem curte a natureza. Nós adoramos, eu e Nina. Ela está aqui, no banco de trás, e me pede pra pôr o CD do High School Musical número 2, que toda a turminha adora. Já estou saturada de ouvir e ver o DVD, mas filho é filho, a gente sempre acha força e paciência pra essas coisas. A musiquinha começa, e aí percebo que perdi o caminho. Puxa, como é que fui perder a entrada?
Isso me incomoda muito, porque acontece com frequência, sou uma negação em matéria de orientação espacial. Sou assim desde pequena. Toda semana me perdia nos corredores da escola, no caminho de casa, que ficava bem perto, e até uma vez...
Mãe, diz Nina, não é por aqui – eu sei, eu sei, filha. Agora tenho que dar uma volta enorme lá pela Gávea, é isso? Nem sei direito, mas chego lá. Pronto, achei – ela já se distraiu e agora canta junto com a Sharpey.
Enquanto caminhamos até o parque, imagino que se tivesse muita grana contratava um motorista só pra evitar essa perda de tempo, sem falar no estresse. Mas um motorista pode se tornar um problema pra uma mulher sem marido, como eu. Tem que ser alguém muito conhecido, recomendado. Chego a sonhar que estou perdida, numa rua estranha, num caminho desconhecido, e às vezes tenho pesadelos de acordar com o coração aos pulos, apavorada. Uma amiga me recomendou o analista dela, tomei nota do telefone e tudo, mas ainda não me animei a marcar uma sessão. O que é que eu vou dizer a ele? Estou satisfeita com minha vida, minha filha, não nos falta nada, graças a Deus tenho um bom emprego. O pai de Nina é empresário, faz questão de dar a ela a melhor escola, presentes, roupas, tudo do bom e do melhor. Somos amigos, nos entendemos muito bem quanto à educação de Nina. Ele tem outra família, outros filhos, dois, e nos damos todos muito bem. Francamente, será que preciso de terapia por causa dessa bobeira de errar todos os caminhos?
Olha, mãe, que lagarta enorme – Nina estica o dedo pra tocar aquele ser gorducho e listrado, mas consigo avisar a ela que o bicho pode queimar se encostar na pele. – Quem queima é taturana, mãe, essa daí só vira borboleta. Sabe tudo, Nina. – Mas é um bichinho gosmento, é nojentinha, filha. Nina já vai aos pulos na minha frente. O sol apareceu com força, está linda a manhã, mas o calor aumenta. Não corre, filha – peço a ela, que não me ouve. Dou uma corridinha para alcançá-la, e Nina ri, brincando de pegar comigo.
De repente percebo que não sei onde estou nem muito menos para que lado fica o parque. Consigo fazer Nina parar e procuro alguém que me oriente. Andamos a esmo, eu e ela, o suor escorrendo pela testa. – Mãe, quero parar, ela diz, correndo para um banco. – Filha, vamos perguntar a alguém...
Nesses momentos, o mundo me parece uma sucursal do inferno. Foram quase quinze minutos, estou em pânico, mas afinal passa um daqueles trenzinhos do Jardim e consigo me informar. Engulo em seco, porque a mim mesma parece idiota uma carioca se perder dentro do Jardim Botânico. Uma senhora me lança um olhar bondoso que me arrasa, e pergunta suavemente se sou de fora. Não sou, não, desde criança venho aqui, vinha sempre com meu marido, penso, mas não digo. Sorrio de volta e continuo andando como se não tivesse ouvido a pergunta.
O aniversário estava ótimo. Sanduíches, frutas, sucos e guaraná natural. As crianças se acabam de correr, comem e bebem trazidas pelos pais, não querem deixar os brinquedos – balanços, casinhas de árvore com escorregas, quadrado de areia para os menores. Há muitas crianças, nem todo mundo é da creche, mas os pequenos acabam se misturando e arranjando novos amigos, uma graça. Depois vem a torta maravilhosa e chocolates para todos, que amanhã é domingo de Páscoa, tempo de chocolate. A conversa corre solta, as pessoas se sentem livres ali dentro. Horas mais tarde vai começar a romaria de crianças e mães à bica lá nos fundos, todo mundo lavando os pés, as mãos, o rosto suado. Alguns trouxeram roupas para trocar. Dali seguem para outros passeios, um cinema, outro aniversário, a casa dos avós, quem sabe.
Olho para eles com o peito pesado, pensando na volta. – Será que posso seguir vocês até o túnel? – pergunto à mãe de Bella, que junta as cestas e caixas para levar de volta ao carro. – Claro, Manu – ela responde com naturalidade. A meu lado, a mão na minha mão, Nina me lança um olhar muito estranho.