segunda-feira

Verdades a perigo

Desenho de Escher.



Quase toda mentira é uma verdade coberta de sujeira.
Às vezes basta um espanador pra achar a verdade que ela tenta encobrir.
Outras, só com soda-cáustica e caco de telha.
Em tais casos, às vezes a verdade morre junto.

sábado

Caso encerrado




O delegado de plantão não tinha o aspecto desagradável e distante dos que apareciam nos filmes, e era uma pessoa acessível a seu modo. Puxou uma cadeira de assento carcomido. Seus gestos eram desembaraçados e certeiros como se houvesse ensaiado a cena muitas vezes antes. Ou como se dosasse todas as manhãs uma mistura com duas partes de energia e uma de delicadeza para tomar durante o café.
Ela o olhava um tanto relutante e embaraçada. Tinha entrado na delegacia com o discurso pronto, mas ansiosa como uma ave na tela do viveiro. O coração acelerado lhe cortava um pouco o fôlego e sentia dificuldade de articular as frases. Mesmo assim acabaria conseguindo contar a ele o que havia acontecido, as cenas de ciúme doentio, as brigas e as surras – tinha marcas – os dois anos de seu casamento infeliz regado a cerveja.
À medida que as palavras saíam de sua boca, seus pedaços dispersos há algum tempo pareciam voltar a se reunir. No fim do depoimento estava quase tranquila, e ao mesmo tempo tinha ficado mais sozinha do que nunca.
Sozinha feito o monumento do meio da praça. Estava livre de tudo, sem envolvimentos com ninguém no mundo e com a vida a céu aberto. Já não sentia nem medo, mas tinha perdido mais que o necessário. Era como se dividir a história que vinha carregando há tanto tempo lhe deixasse enfim espaço para uma outra ela-mesma e esse espaço fosse excessivo.
Não quis a proteção que o delegado lhe ofereceu. Não acreditava que o marido tivesse qualquer intenção de atacá-la fora da cena já conhecida, e não deixara o novo endereço com ele. A essa altura o infeliz devia estar se encharcando, sem ela pra atrapalhar. Também agora, que se olhava como outra pessoa, julgava impossível ser covarde a ponto de ficar com medo de um homem que um dia tinha sido tanto pra ela. Além disso considerava essa proteção uma invasão inútil de estranhos, um complicador desnecessário. A última coisa que desejava era o convívio de estranhos. Queria conviver consigo mesma, curiosa de ver como seria agora. Lamber-se como uma gata menstruada, sentir o gosto do próprio sangue. Ser só e tratar de si mesma.
Enquanto ele ainda estava fora, apressou-se a retirar da antiga casa tudo que deixara para trás na fuga destemperada. Ele não devia demorar, a não ser que tivesse ido para o bar. As primeiras estrelas se acendiam, e aos poucos um vento áspero e inamistoso invadia a sala, vindo da rua. Como em instantâneos, ela via os móveis, a cama revolvida, a janela. Frases sem sentido vinham a sua memória. Não tinha registrado queixa a respeito do carro que tinha comprado com suas economias e ele afinal tinha roubado e escondido dela. Não eram os bens materiais que a preocupavam, mas qual seria sua verdadeira vida depois de tudo.
Nessa noite o sono foi escuro e inquieto, o primeiro sono da nova pessoa, em que ela se olhava de algum ponto secreto enquanto dormia. Não se lembrava de ter sonhado, mas despertou cansada, com um sentimento incômodo e recriminatório que não lhe deu sossego durante toda a manhã.
Não tinham passado ainda vinte e quatro horas, voltou à delegacia para retirar a queixa. Deu um pouco de trabalho, mas acima de tudo foi humilhante por causa da cara de ironia e enfado do delegado, antes tão cavalheiro, a lhe dar conselhos e orientações que não estava pedindo. Não escapou nem da piadinha sobre mulheres que gostam de apanhar.

— Não foi bala perdida – explicava o detetive de plantão a um repórter três dias depois. O delegado está certo de que foi proposital, já mandou prender o suspeito.
— Isso mesmo, confirmou o delegado, saindo da viatura que acabava de encostar na calçada onde o corpo tinha amanhecido com um tiro certeiro no pescoço. Eu avisei. Mas tem muita mulher que é assim, fica dando mole. Completa a perícia e pode recolher ao IML.

segunda-feira

Do Rio



O Rio tem um quê de inesperado. Aqui acontecem coisas difíceis de encontrar em outras cidades do mundo, até mesmo do Brasil. São traços de personalidade que os cariocas e seus amigos de fora vão absorvendo, à medida que se acostumam às ruas de bairros urbanos ou da periferia. São cenas típicas, sentimentos que se instalam na gente que vive aqui; paisagens que incorporamos ao dia-a-dia; costumes que se adotam sem saber bem por quê.
Nada mais característico do Rio do que essa sensação de gratuidade, esse contágio fácil que vai generalizando um jeito de viver e agir; que inventa hábitos, expressões, gírias que acabam incorporadas ao carioquês. O jeito de vestir irreverente, a informalidade. A vivacidade, uma espécie de astúcia malandra de procurar o que fica mais simples, mais à mão, o que soa mais despreocupado e casual. A alegria de viver que chega às raias da inconsequência. Um certo atrevimento.
E mesmo no inverno, o descaramento de sair sem casaco num frio de dez graus. Ou de casaco, short e sandália havaiana. Só um carioca pode fazer questão de ignorar o guarda-chuva, faça o tempo que fizer. E só as (poucas) cotias do Campo de Santana não fogem das pessoas. Passa-se pela lagoa e lá está uma ave desafiadora na proa de um barco, e a gente para só pra ver um voo se desenhar no meio do céu.

Imagem sem menção de autor.

Carta a um estranho




Bravo Sr.,

Antes do Google, quando queríamos responder a uma mensagem ambígua, ficava bem difícil descobrir a identidade do remetente. Agora, a busca ficou mais fácil, embora nem sempre seja bem-sucedida. Pena. 
Mas parece que, embora seja um músico, e pelo jeito dos bons, dada a paixão que manifesta pela atividade, o senhor tem um homônimo nesse ramo.
Conforta saber que tem uma ghost-writer na família, que leu Budapeste e gosta de música. Coisas em comum facilitam o entendimento. 
Espero que tenha entendido que essa imagem do esgoto irrita um pouco. Nunca vi o trabalho por esse lado, embora a metáfora possa até valer em alguns casos.
A Verdade, eu confesso que não conheço. Conheço sim algumas verdades, assim minúsculas, em geral o oposto de mentiras igualmente terrenas. E a Dignidade é coisa inacessível (parece conceito da metafísica platônica). A dignidade, a minúscula, para mim é trabalhar sem ser escravo, levar uma vida minimamente decente, ter um endereço, saber respeitar e ser respeitado.

Sem mais,
TC

sexta-feira

Os esqueletos no armário



A meu ver, o papel – e atrativo – principal da assombração é que ela manifesta aquilo que está desde sempre dentro de cada um de nós, mas vive preso, escondido no porão, trancado a sete chaves porque, uma vez liberado, faria de nós seres indesejáveis, incapazes de conviver em sociedade e politicamente incorretíssimos. A figura do estranho, da pessoa ou coisa que provoca horror ou medo, não seria tão ambígua e atraente se não correspondesse a alguma coisa com que todos estamos secretamente familiarizados – embora pensemos sempre nessa coisa como uma entidade com existência própria. Assombração não é feita para assustar (embora em geral assuste, por uma espécie de efeito colateral). O estranho existe para nos fazer viver a vida de modo mais completo, já que viver é muito mais do que pagar contas no banco, namorar ou ir ao cinema.
Expor os sentimentos humanos mais sombrios e escondidos sob a forma de seres ou fatos enigmáticos e sinistros pode ser um modo criativo e muito refinado de ampliar o conhecimento do mundo e das pessoas, visto de uma perspectiva nova e esteticamente rica. Uma percepção que não obedece ao habitual e rotineiro pode nos abrir os olhos para ideias como a do tempo em sua dimensão esmagadora e implacável. Pode nos dar a perceber, como num espelho, o vazio que cada um de nós carrega vida afora, por mais que conquiste sucesso, dinheiro e até amor e amizade.