segunda-feira

Da sabedoria chinesa


 Foto Diogo Brasileiro.

Nem tudo nesta vida se resume a um corpo perfeito. Nada contra a busca da beleza e da harmonia física, que são coisas apreciáveis e maravilhosas para quem as ostenta. Mas não se pode ficar nisso, sem pensar em mais nada. Nem gatos nem cachorros precisam se preocupar com outros predicados, e costumam viver contentes com o físico que desfilam por aí. Mas nós, humanos, temos outros atributos, outras capacidades e merecemos mais que apenas encher os olhos dos outros e suscitar invejas virulentas por nossa aparência.
Já diziam os chineses, séculos antes de nosso tempo, que "nada assenta melhor ao corpo que o crescimento do espírito". Entendo espírito nesse caso como o que emana de nosso modo de ser, do que somos capazes de transmitir aos outros por nossos gestos e atitudes, da sensibilidade com que lidamos com semelhantes e dessemelhantes.

Edward Hopper no Youtube






Conselho de mãe carioca
O calor do verão tá matando no Rio. A praia anda maravilhosa, de águas mansinhas, cumprindo com louvor seu papel de refrescar e fazer esquecer a temperatura alta demais. Mas é bom ficar de olho: a dermatologia avisa que depois das OITO o sol fica encapetado e pode provocar queimaduras, insolações e câncer de pele. E como ninguém vai à praia antes das oito, é bom levar o protetor 50 e não vacilar.

quarta-feira

Do diário de meu tio



Passei em frente à casa de Marina. Gosto de ver aquela casa, tem um jeito que chama a gente. O jeito de Marina. Entrei lá duas ou três vezes, joguei botão com o irmão dela que mudou pra Recife e uma vez tomei lanche com eles. Depois de terminar o namoro com Marina às vezes passava lá, na esperança de vê-la na varanda como naquele dia, e contra toda lógica teimo em pensar que isso seria como um sinal de que tudo podia recomeçar.
O cheiro que vinha da casa era uma viagem. Pão doce, cheiro de pão doce fresquinho, novo, dourado. Imaginei a mesa posta, o aipim desmanchando na boca, a manteiga derretida por cima e aquela cobertura morena de canela e açúcar. Pãozinho francês estalando dentro da cesta de vime com o paninho de crochê de bico, branquinho e engomado de leve. A manteigueira, o açucareiro, o bule do café e a leiteira do jogo branco e azul. Os queijos, sempre três ou quatro, o presunto rosado e tenrinho, o requeijão cremoso, fresco, delicioso. O pote do mel de laranjeira, e na tigela branca os sequilhos, biscoitinhos de nata, ao lado do vidro bojudo das torradas e do outro, da geléia. Três ou quatro sucos naturais, um doce de goiaba, outro de leite; o bolo de milho no prato de pé.
Altíssimo astral junto à janela de vidro aberta para o pôr-do-sol e as montanhas azuladas. A mesa coberta pela toalha leve de xadrez miudinho e claro, recendendo a capim-cheiroso; os guardanapos bordados de florinhas e as xícaras azuis.
(Silêncio reverente, suspiro calado, profundo mergulho no âmago do ser.)
As margaridas no canteiro da cerca lá fora e gerânios na jardineira sobre o muro que esconde a área de serviço.
Daria muito por esse momento. Mas não fico muito tempo diante da casa. Tenho medo de que meu desejo se realize e ela apareça na varanda, caso em que eu seria bem capaz de perder a cabeça e voltar com ela, mesmo sabendo o que viria depois. Porque é verdade que seria capaz de dar quase tudo por esse momento. Menos a liberdade.

Escher no CCBB do Rio

M. Escher. Oito cabeças.

A exposição de Maurits Cornelis Escher, artista gráfico holandês nascido em Leeuwarden a 17 de junho de 1898 e falecido em Hilversum, em 27 de março de 1972, fica no Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio até o dia 27 de março próximo. Escher é admirado pelas xilogravuras, pelos meios-tons e litografias que nos deixou. Ele propôs o impossível em suas imagens e criou geometrias e perspectivas irregulares. É um trabalho instigante, que explora as ideias de infinito, as metamorfoses, ilusões de óptica e imagens que se cruzam e se transformam, dando origem a outras, diferentes das iniciais. Outras obras exploram o espaço  tridimensional no papel, de duas dimensões, e assim criam figuras impossíveis e paradoxais.
Na Espanha, no palácio árabe de Alhambra, Maurits descobriu as potencialidades dos mosaicos, quanto às formas e padrões geométricos que o fascinavam. A partir daí criou planos repletos de imagens não figurativas. A religião muçulmana proíbe representações de figuras reais, de modo que com esses mosaicos Escher preenche o plano bidimensional  de polígonos sem alterar a forma do polígono original, fazendo surgir figuras humanas e animais, sobretudo aves, peixes e lagartos, em formas imobilizadas por encaixes.
Se você já conhece o holandês e gosta de seu trabalho, mais uma boa razão para não perder a exposição, que mostra imagens belíssimas não divulgadas entre nós. Além disso, há vídeos sobre sua vida e a terceira dimensão possível de suas perspectivas estonteantes.

M. Escher. Sem título.

Você encontra outros dados sobre Escher em diversos endereços da web, como aqui, no site oficial ou aqui.


            
            Mudar é preciso

Ser livre para mudar de ideia. Precisamos suspeitar das certezas que nos atormentam e nos afastam das pessoas. Não são certezas, são restos. Melhor jogar fora.
 Nunca ou quase nunca analisamos as convicções pré-fabricadas. Elas são como um remédio, que é preciso agitar antes de usar, ver se está no prazo de validade e ter certeza de que é o mais indicado. E como cada caso é um caso, quase nunca o remédio serve.

Cisne sem lago

Ontem fomos ver Cisne Negro, um filme de qualidades inegáveis (a atuação de Natalie Portman por exemplo está imbatível, assim como os bastidores dos profissionais da dança e a apresentação mais que técnica dos ditos profissionais, seus ensaios etc.). Além de tudo, o filme desenvolve uma espécie de aula sobre o balé clássico visto com olhos contemporâneos, que tornam o conhecido e apreciado Lago dos Cisnes de Tchaikovski menos distante do espectador e ressaltam seu simbolismo de modo bem esperto.

Há controvérsias de profissionais quanto ao ambiente tenso demais que o filme apresenta entre o corpo de bailarinos. De fato, é preciso dar um desconto quanto ao peso desse clima carregado. Muito disso fica por conta da demonstração cabal e minuciosa da insanidade para lá de grave da protagonista, um sofrimento sem refresco. O roteiro com certeza foi inspirado nos primeiros casos relatados por Freud e quase consegue exceder esses casos em gravidade. Se você se interessa por psicanálise, não perca a oportunidade de ver (quase experimentar) o que o mestre chamou histeria, hoje desdobrável em graus e tipos diferenciados de psicose. A angústia e os tormentos alucinatórios de Nina, a ambiciosa prima-ballerina, envolvem o espectador e o mergulham durante algum tempo em seus labirintos vertiginosos de autorrepressão, compulsão e paranoia.

Enquanto a vida avança e a idade aumenta, esbarramos em inúmeras razões de alegria e até de felicidade genuína que não estão ligadas ao fato de ser ou não um vencedor, nesse sentido estrito adotado pela civilização ocidental, em especial no Novo Mundo (que, convenhamos, parece precocemente envelhecido e meio esclerosado). Se até os vinte e poucos anos todos experimentamos a deliciosa sensação de onipotência que a juventude garante, mesmo que não corresponda à verdade objetiva, depois dos trinta quase sempre começamos a ver a vida com olhos menos delirantes. Se não estivermos obcecados por esse ideal ególatra e afetivamente esterilizante de vencer a qualquer preço e destruir todo mundo que possa atrapalhar essa meta, seremos capazes de avaliar a vida com olhos menos ansiosos. Vale a pena.

A flor e a empregada



Minha patroa insiste
: da flor a água se muda todo dia.
O dia todo ela fala
(sua voz me cansa o ouvido)
a flor não muda e repete
que mude a água da flor
esquecida em sua jarra.

A flor tem que ter sua muda
toda semana
(ela nem ouve
as coisas que eu resmungo).
Se a flor da jarra não muda
a flor perde todo viço
eu sempre aviso
(prefiro o lado da flor
que ao menos sofre calada)
e a flor cada vez mais triste.

Ela diz que é minha a culpa
ainda que eu mude a água
e ela se esqueça da flor.

A flor já não resiste
e morre.

Dia desses não aguento
me livro de flor e jarra
e procuro uma patroa
que entenda tanto de flores
quanto eu.