domingo

Pelos cotovelos



Mais ou menos às quatro e meia da tarde passa um padeiro em minha rua. A gente sabe que ele está chegando pela buzina poderosa, que se escuta por todo o quarteirão. Se estou em casa nessa hora, gosto de comprar uns franceses quentinhos para o lanche.
Mas há alguns dias passei a só descer se dona Carmita não estiver lá escolhendo seus pães doces e bolinhos, feitos pela mulher do padeiro, que são mesmo uma delícia. Mas se ela já tiver descido, fico bem quieta e espero que entre em seu apartamento. Porque dona Carmita fala tanto e tão alto, que já provocou incidentes desagradáveis no corredor, segurando a porta do elevador enquanto comenta suas vicissitudes familiares, de saúde, e fala dos preços, dos netos rebeldes, do motorista de táxi que cobrou além do preço, do médico, da violência. Dona Carmita é dessas pessoas que começa a falar e esquece de acabar.

Tive um amigo assim. Era professor universitário, homem cultíssimo e de conversa bem mais agradável que a de dona Carmita. Mas não sabia como se para de falar. Numa das inúmeras formaturas em que foi homenageado pelos alunos, meu amigo preparou um discurso escrito – ele, que sempre fazia lindos discursos quilométricos de improviso – e jurou a si mesmo que não passaria dos quinze minutos. Ensaiou na frente do espelho, pediu que o ajudasse a cronometrar o tempo da fala, e por fim chegou à tribuna todo seguro de si, as folhinhas arrumadas e numeradas, e começou a ler com sua bonita voz de barítono. Não resistiu, porém. Era mais forte que ele. Aos poucos as folhinhas começaram a ser esquecidas e, lá pela quinta, ele passou a ignorá-las solenemente. O discurso durou duas horas e quinze minutos. Mas foi um dos mais bonitos e comunicativos de sua carreira. Quando enfim acabou e desceu da tribuna, veio todo satisfeito. “Que boa idéia!” – disse. “Daqui em diante nunca mais deixo de escrever meus discursos.”

9 comentários:

Jens disse...

Hehehe, Adelaide, acho que teu amigo era encantado pela própria voz. Aqui nos pampas tivemos um orador assim, apaixonado pela própria oratória, o engenheiro Leonel de Moura Brizola.
Quanto à D. Carmita e suas indiscrições verbais, me lembrou uma parente próxima. Haja saia para aguentar tanta justa (hi, esta foi fraquinha, né?).
Um beijo e uma boa semana.

Estela disse...

Oi Adelaide,
Também já encontrei muitas "D. Carmitas" na minha vida e, hoje confesso que até tenho saudades de algumas delas.
Bjs.

dade amorim disse...

É mesmo, Jens, o Brizola era do tipo :D Beijo!

dade amorim disse...

Estela, dona Carmita é uma ótima pessoa! Beijo pra você.

Anônimo disse...

Falar demais é defeito comum, nem sei se é mesmo defeito. E tem gente que fica uma gracinha, falando demais. Beijinho, AnaG.

dade amorim disse...

Ok, Ana, você tem razão. Também conheço esse tipo ;) Beijão.

Beatriz disse...

Ah, Adelaide . Delícia de conto sábio.
Falar baixo é o desejo de todos angustiados.
dopna Carmita, o professor e tantos outos, como eu que às vezes grito até nos textos. Falo demais , deixo a concisão por carência, sabe?
Saudade de vir mais aqui.
Este umbigo é de sonho;)))

dade amorim disse...

Dona Carmita e o professor agradecem a compreensão, Bea :D
Beijo e saudade de você.

Anônimo disse...

molto intiresno, grazie