quarta-feira

O mundo é um manicômio





Minha amiga Rima me pede para pegar uma bolsa esquecida em casa. Estou bem na hora de chegar ao trabalho, mas não tenho coragem de negar nada a ela, que está dando entrada numa clínica. Ligo para a secretária de meu chefe, mas o telefone dela não atende. Insisto, e uma vozinha fanhosa avisa que o telefone não recebe ligações a cobrar. Não estou ligando a cobrar, mas não há como discutir com uma gravação. Saio pisada e em pouco tempo chego ao edifício onde Rima reside, e que não conhecia ainda. Subo ao sexto andar, no elevador tento de novo o telefone, que dessa vez está ocupado.
Entro na sala e me ofusco de geometrias.
O centro de mesa está no centro da mesa. Não mais ou menos no centro, mas no centro exato, medido a compasso. Os enfeites do aparador foram dispostos em rígido paralelismo e a jarra de flores da mesinha colocada sobre um ponto medido a trena entre uma e outra extremidade do móvel. Quadros em simetria quase dolorosa, o relógio no preciso meio da parede entre uma e outra janela, e as cortinas – céus! As cortinas, que afinal são feitas de tecido, coisa flexível, de caimento gracioso e espontâneo – as cortinas foram milimetricamente pregueadas, dois pra lá, dois pra cá, e caem iguaizinhas feito clones escrupulosos. "Parece a casa do Monk", penso.
No parquê de losangos dois tapetes idênticos se repetem, eqüidistantes, medidos, cópias xerox um do outro, a iguais distâncias das paredes e do centro da sala. Para culminar, foi traçada uma cruz imaginária sobre a porta da entrada e, bem na interseção das duas retas, instalado um trinco meramente decorativo – porque nenhuma lingüeta atingiria tais proporções lineares. Custo a encontrar a fechadura, dissimulada sob uma lâmina de madeira para ficar invisível (com certeza um expediente para não dar o gostinho de fazer uma concessão gritante).
Vou até o quarto um tanto hesitante. O apartamento me faz sentir rejeitada. Há uma hostilidade latente no clima, nas coisas. Como se alguém quisesse me pegar pelo pé. Vou assim mesmo, mas antes não tivesse ido. Se a sala me parecera agressiva, no quarto nem cortinas havia, o espaço em preto e branco era severamente cortado ao meio por uma cama despojada e o único quadro, adivinha, bem no centro da parede diante da cama. Sobre cada uma das mesinhas laterais, uma pequena luminária de aço repetia a outra, ambas retas e centralizadas. Comecei a perder o fôlego. Fui até a pequena cômoda quadrada, laqueada de preto, bem debaixo da janela, e abri a terceira gaveta: lá estava, na mais completa exatidão central, a bolsa que eu tinha ido buscar. Fugi com o coração aos pulos, sufocada, as mãos suando frio. Aquilo não era um apartamento, era uma armadilha, uma prisão, um pesadelo.
Saí rapidamente do prédio, entrei no carro. Em vinte minutos entrava na clínica para doenças mentais onde Rima me esperava aflita. Quando me viu, sorriu aliviada e me estendeu os braços.
— Ah, que bom!
Abriu a bolsa avidamente e suspirou com um sorriso. Arrisquei uma olhada para dentro e não vi nada além do forro bege e dois ou três fechos ecler. Ela tornou a fechar com um estalido a bolsa vazia, que me estendeu de novo.
— Pode levar, por favor, e deixar na mesma gaveta e no mesmo lugar. Muito obrigada.
— Mas você não precisa da bolsa?
— Precisava, sim, precisava muito. Mas agora está tudo bem.
Chegou mais perto de mim e segredou:
— Tinha medo de ter esquecido alguma coisa dentro dela. Você sabe, não ia conseguir dormir se tivesse guardado uma bolsa com algum objeto dentro. Acho extremamente impróprio...
Não ouço mais o que ela ia dizer. Deixo-lhe um beijo nas bochechas, corro para o carro e jogo a bolsa no banco do carona. Tento outra ligação e nada, a vozinha dá seu aviso sem nexo. Começo a me preocupar seriamente, porque estamos em tempo de vacas magras e sou nova no emprego.
No segundo sinal, uma cara larga me assusta a meu lado. O pivete bate no vidro com o que me parece o cano de uma arma e está apressado, de cara feia. Não tenho como fugir, sinal fechado. Com gestos lentos, mãos à vista, desço o vidro.
— Passa a bolsa ou eu atiro!
Com gestos um pouco mais prestos, pego a bolsa bege de couro e entrego a ele. O sinal abre. Arranco, aproveitando um vazio deixado pelo carro da frente. Ainda vejo pelo retrovisor o gesto obsceno que ele me dirige, lá do meio da rua. 

14 comentários:

Halem Souza disse...

"Parece a casa do Monk", hehehe... Como os metódicos devem sofrer nesse mundo-manicômio!

Um abraço.

Amélia disse...

Divertiu-me a sua história...beijo

Jorge Pimenta disse...

quase tudo na vida tem uma justificação, verdade, querida dade?
magnífica a história, onde combinas descrições visualistas com momentos de acção enleante.
beijinho e um agradecimento enorme pelo carinho que sempre me dispensas!

Vais disse...

Ei, Dade,
gostei demais, doido, doido :)
um mundo de muitas e de todo tipo de doideiras

beijo grande

Camilla disse...

Historinha divertida, essa. Do tipo que eu curto ler :)
Bj

Anônimo disse...
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Anônimo disse...
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dade amorim disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
dade amorim disse...

E sofrem mesmo, Halem.
Bj

dade amorim disse...

Era essa a ideia, querida Amélia.
Que bom que gostou.
Beijos.

dade amorim disse...

Não há o que agradecer, Jorge, você merece.
Abração.

dade amorim disse...

Vais, o mundo é mesmo um manicômio, quantas vezes percebemos isso.
Beijo beijo.

dade amorim disse...

Ok, Eduardo . Abraço

Lua Nova disse...

Li seu texto ouvindo "O Eclipse" e ficou perfeito. Que texto formidável, Dade, que claustrobia, que aflição, vc conseguiu passar. Li de um fôlego sem conseguir imaginar o final, que alías, foi inesperado e brilhante.
Cá entre nós, acho que o que faz as pessoas ficarem loucas é o medo que cada um carrega, um medo sem cara e sem rótulo, mas que talvez seja só o medo de viver.
Escrever (e ler) acalma o medo e liberta a alma.
E vc escreve como ninguém.
Beijokas.