quarta-feira

Ponto de fuga


Dona Elisa ouvia vagos rumores que, de mistura com as lembranças anacrônicas e os fragmentos de sonhos que povoavam seu sono entrecortado, faziam as vezes de um tropel de cavalos, gritos guerreiros e sussurros de alguém muito chegado a ela, o falecido talvez, ou o neto que um dia fora seu preferido e que ela, ninguém sabia por quê, imaginava em viagem pelo Oriente. Súbito o ruído cessou em seus ouvidos e um silêncio pleno se estabeleceu em sua mente. Ao mesmo tempo, as lembranças clareavam nítidas, e ela percebeu que aquele era o dia do aniversário de Vivinha, uma mulata que setenta anos antes fora uma espécie de pau-pra-toda-obra em sua casa, no bairro dos Jardins. Reviu as figuras de um livro de histórias chamado “A galinha ruiva” e parou para analisar uma delas, que sempre a impressionava muito naquele tempo: um terreiro onde as galinhas ciscavam e um homem de grandes mãos quadradas atirava grãos de milho; era uma figura como as outras, mas a menina que ela fora costumava ficar minutos infindáveis a contemplar o gesto que lhe parecia reconfortante, a nitidez dos grãos de milho ao sol, o contraste de claros-escuros nas superfícies, a sugestão de movimento que lhe dava asas à imaginação, os tons nuançados de azul no céu claro. Do formato grande do livro, de apenas trinta folhas, seu pensamento voou para uma sala com um grande sofá e poltronas de almofadas claras junto a uma janela estreita e alta, um tapete espesso cor de musgo e uma porta se abrindo para deixar entrar uma adolescente de longos cachos louros, levemente vestida por um tecido de florezinhas azuis, babados nas mangas e na saia. A visão a fez sorrir, enquanto a luz que vinha da janela desenhava a silhueta esguia e fazia brilhar os cristais por trás das vidraças de um móvel de ébano. Uma paz indescritível se apossara de seu plexo. Naquele dia tinha conhecido o homem que viria a ser seu marido alguns anos mais tarde, e logo a imagem volumosa mas ágil de Bernardo lhe aparecia sorrindo. Estava leve, inteiramente tomada pela felicidade de ser quem era, plena e obscura, vendo-se de mãos dadas com ele, ah, tão felizes, debruçados no cais sobre o Sena, ma reine, mon roi, e nem mesmo a dor de perder Bernardo turbou a serenidade com que suspirava de olhos fechados, enquanto as imagens se afastavam sem sofrimento, cobertas por uma névoa esbranquiçada. “Tudo está resolvido”, pensou, e um sorriso se fixou para sempre em sua boca murcha.
A nesga de luz se insinuou por uma fresta da grossa coluna de nuvens acumuladas sobre o condomínio e atravessou a vidraça do quarto, incidindo diretamente sobre sua cama e seu peito coberto pelo edredom. Foi muito rápido. Logo o raio luminoso desapareceria. Junto com ele, o fio frágil de sua vida deixava aquele aposento há tanto tempo dominado pelo cheiro forte dos medicamentos e das fraldas geriátricas, mudadas a horas certas pela enfermeira mal-humorada.


 Foto M.H.G. Pais. Geada.

8 comentários:

Nanda disse...

Dade, hoje passei pra deixar um beijo, desejar Feliz Dia do Amigo. Beijos!!!!!

dade amorim disse...

Já embarquei para o IP!
Beijo beijo e sempre nossa amizade.

Anônimo disse...

Belíssimo texto, Dade, desses que batem fundo na alma da gente.

Beijos do JL

Camilla disse...

Amiga tão boa de texto merece uma homenagem especial. Embora o dia mesmo tenha sido ontem, ainda está valendo um beijo pelo Dia do Amigo.

Lua Nova disse...

Encontro-me sempre na leitura dos teus textos.
Que lindo momento de sua história ela escolheu reviver para enfim deixar-se levar.
Como será essa passagem...?
Penso nisso de vez em quando.
Dade, um beijo.

dade amorim disse...

Obrigada, JL, seus comentários também são muito importantes para mim. Beijo.

dade amorim disse...

Sempre vale um beijo amigo, Camilla.
Obrigada mesmo e beijo pra você.

dade amorim disse...

Lua, também penso nesse momento quase todos os dias. Mas como não pensar?
Beijos e obrigada por seus comentários sempre tão significativos.