quinta-feira

A história na gaveta




Estava no fundo do baú (metafórico – na verdade era uma prateleira de armário dessas em que a gente só mexe na faxina do Natal). Não sei em que ano foi escrito, mas deve ter sido há muitos, porque estava datilografado por Berta, uma amiga que passou por minha vida antes de 1990 – quando o primeiro XP entrou em cena lá em casa – como um cometa desses que aparecem de quando em quando e somem sem deixar vestígios. Berta era um barato de pessoa.

O original datilografado já era uma segunda via, porque a primeira foi manuscrita. Foi num dia de mudança que o encontrei, quase por acaso, e não me lembrava bem dele. Na confusão das caixas empilhadas e da arrumação na casa nova, só o reencontrei três dias depois, mas ler mesmo só em uma semana ou pouco mais. As primeiras emendas, a lápis, devem ter sido feitas logo que Berta me entregou as folhas, agora um pouco amareladas.

À medida que ia lendo, percebi por que me esquecera dele. Contava uma história perigosamente parecida com a de um parente distante, o que deve ter sido uma peça do inconsciente, e fiquei com medo que alguém lesse e o identificasse. Por isso ele dormiu tanto tempo fora de casa, quer dizer, fora das gavetas a que teria direito. Mas ali estava, um texto de 125 laudas batidas à máquina por uma profissional competente e caprichosa. Olhei-o durante algum tempo sem a menor idéia do que faria com ele. Publicar, nem pensar. O parente ainda existe, ainda poderia ser identificado como o anti-herói da história. O mais recomendável seria modificar alguns dados, lugares, tempo decorrido e acima de tudo características pessoais que, mesmo já alteradas para a história original, ainda tinham muita afinidade com as características reais do muso.

“Que maluca”, pensei com meus botões. “Como é que eu faço uma coisa dessas?” Deixei as folhas na primeira gaveta para voltar ao texto assim que tivesse tempo e fui tratar da vida.

Dois dias depois recebo um telefonema e não havia jeito de identificar a voz. Mas duas ou três frases foram suficientes: era ele, meu anti-herói. Uma pessoa que nem me passava mais pela cabeça voltar a ver. Primeiro porque estava morando longe do Rio – sabem onde fica Goiás Velho? Pois é. Segundo porque é um parente também longe – terceiro grau é quase não-parente. Sem saber o que dizer, soltei um que surpresa inexpressivo e esperei que me informasse o motivo do telefonema. Pois disse que estava de mudança para o Rio, tinha comprado um apartamento no Flamengo, ora em reforma, e queria saber se podia se instalar aqui em casa durante uma semana ou dez dias com a mulher e o cachorro. “Ouvi dizer que você tem um quarto vago.” Mesmo pensando depressa, não achei uma boa desculpa para evitar a fatalidade.

Moral da história: vieram, viram e gostaram tanto que ficaram hospedados no quarto que me serve de ateliê de pintura durante três meses. Além da mulher e do cachorro, que latia metade da noite em horários variados, vieram também uma cama desarmada e um horrendo jogo de sofá e poltronas que me atravancaram o corredor de entrada. Depois de um mês infernal, fui horrivelmente tentada pelo demônio da escrita a publicar o livro com a história dele sem trocar uma vírgula e fazer um lançamento em que fossem homenageados como queridos primos vindos de fora. Resisti bravamente e pensei que mais eficiente seria ajudar a concluir a reforma do apartamento do Flamengo. Que aliás ficou uma graça, com o jogo de sofá e poltronas logo na entrada e um pé de antúrios de plástico na mesinha de centro.

Os primos ficaram tão gratos que agora todo fim de semana vão almoçar lá em casa. O texto que Berta datilografou continua na gaveta, sabe Deus até quando. E o pior é que a história é boa pra caramba.


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A quem interessa possa - História Incompleta já tem novos lances!

21 comentários:

Nanda disse...

Nossa, é como já cantava o Ritchie:'A vida tem dessas coisas'. Mais parece uma pegadinha celestial - é uma 'senhora' encruzilhada!

Anônimo disse...

Você dá show na estruturação do texto, ele não perde o ritmo jamais. Muito bom mesmo. Se eu fosse a narradora publicava, sem pestanejar, nem que fosse em homenagem à Berta (125 laudas mortas numa gaveta?). Bj

Jens disse...

Oi Adelaide.
Há alguns que perdem a amigo mas não perdem a piada. Como você elogiou o texto com entusiasmo - o que para mim basta como atestado de qualidade - , ouso sugerir perca o amigo (um tanto inconviente, né?) mas não a oportunidade de divulgar a boa literatura.

Um beijo.

(Estou esfregando as mãos de ansiedade. Amanhã vou me atualizar na HI).

Cris disse...

Oi, Adelaide, minha linda,

Parente é serpente, não?rsrsr...Quanto a perder ou não um amigo: a análise é de custo x benefício.

Beijão, garota.

dade amorim disse...

Nanda, a pegadinha é mesmo das boas.
Beijins e bom domingo.

dade amorim disse...

Bondade sua, querido Chorik. Volte sempre, você é ótimo. Beijos.

dade amorim disse...

Tá bom, Jens. Deixa acabar a HI que entra o caso dos primos, hehehe (sorriso maligno). Beijos, viu?

dade amorim disse...

Pois é, Crisinha, tou pensando no caso com força.
Beijos pra você.

Aninha Pontes disse...

Adelaide< não se prive do que te dá prazer por causa de ninguém.
Minha mãe dizia que: parentes são como dentes. Nos mordem a lígua, traiçoeiramente.
Beijos meu bem.
Boa semana.

Marco disse...

Puxa, Adelaide...
A história de sua história virou uma grande história. Se você permite uma sugestão, acho que voc~e devia publicar o livro... com psudônimo. Não faz sentido perder uma história dessas...
Uma outra opção é trocar de g~enero: de literatura para peça de teatro ou roteiro de TV. E colocar na conta do "qualquer semelhança com fatos verídicos e mera coincidência".
Execelente postagem.
Carpe Diem. Aproveite o dia e a vida.

dade amorim disse...

Bons conselhos maternais, Aninha, obrigada, viu?
Beijos e boa semana.

dade amorim disse...

Marco, você tem toda razão, dá pra aproveitar boas histórias, nem que seja sob pseudônimo ou assim, disfarçando a coisa. Se eu puder, faço isso. Obrigda, querido. Beijos.

Beti Timm disse...

Tem coisas que nos acontecem na vida, que é difícil fugir, mas as vezes rendem uma história legal como deve ser essa que vc menciona.

Mas entendo sua indecisão. Talvez isso seja um teste na sua vida...

Beijinhos

Anônimo disse...

Olá! Eu não entendi porque você não consegue entrar no blog da Eliana Mara. É um blog aberto, entro sem qualquer necessidade de senha ou coisa assim! Diga-me exatamente o que acontece e eu talvez possa verificar melhor, ok?
Bj e obrigado pela visita.

dade amorim disse...

Obrigada pelo incentivo, Beti.

Beijos e uma linda semana pra você.

dade amorim disse...

Seguiu uma mensagem pra você, Chorik.
Beijo e obrigada.

Anônimo disse...

Muito boa crônica (ou conto, não sei se é mesmo real, risos) Por um momento achei que o danado do primo iria encontrar os escritos e ler-se neles. Muito bom mesmo o texto e não pude evitar o riso, afinal, quem melhor que os parentes para nos deixar entre a cruz e a caldeirinha? Adorei!

Beijos mil

Ariadna Garibaldi

r a c h e l disse...

E não é do inconsciente que brotam boas histórias? Você nos deixou todos curiosíssimos!

Beijo,

dade amorim disse...

Tem razão, Ariadna. Mas a história existe, embora o texto a tenha enfeitado com um pouco de ficção.
Beijo.

dade amorim disse...

Obrigada, Rachel. Chegamos lá.
Beijo.

Anônimo disse...

This is great! Where do you find this stuff?