domingo

Uma história incompleta



Laio trabalhava ainda na companhia que provavelmente só iria deixar quando a morte ou a idade o tirassem de lá. Ali tinha crescido na profissão – era engenheiro de telecomunicações – e estava na antepenúltima posição da hierarquia. Empregara vinte e cinco anos de sua vida na carreira, desde o concurso de que saíra primeiro colocado até aquela sala com grandes painéis de vidro, uma mesa de reunião aparatosa e os abajures de aço escovado. Havia flores na mesa de centro, reproduções de pintores célebres pelas paredes e uma estatueta de marfim, presente de Líria, quando completaram cinco anos de casados. Antes de tudo que os tinha atropelado meses atrás.
— Você não sabe o que está dizendo – ela respondera, no início, negando sempre.
Quase convencido, Laio pensou em deixar a questão esfriar antes de tomar qualquer decisão. Afinal, tudo não passava mesmo de um telefonema anônimo. Mas dois dias depois do primeiro embate, aquela acusação quase grosseira do amigo, não tinha entendido direito o porquê da coisa toda, e Laio caiu numa tristeza muito próxima da depressão. – Ele manda em você – Líria repetia em prantos, e isso foi antes que ela começasse a acusá-lo de estar tendo um caso com o jornalista. – Você está completamente louca – lembrava de ter dito, no auge da fúria, e de ter deixado a marca dos dedos no rosto dela.
Quando caiu em si e avaliou a situação, teve muita vergonha do que fizera. Não se perdoaria nunca e Líria muito menos. Deu razão a ela, convenceu-se de que não havia saída senão deixar que tudo caminhasse para o fim, mesmo depois de terem conversado com a cabeça mais fria, do pedido de desculpas, das flores, da tristeza que ele não tentou esconder. Estava disposto a ser um ex-marido exemplar, atento, amigo, mas a decisão ainda não lhe parecia firme o suficiente e não entrariam com o pedido de divórcio senão depois que Líria se declarasse cansada daquilo tudo, pedindo que a deixasse livre para seguir sua vida. – Não quero mais ter que falar com você a toda hora, quero me sentir eu mesma de novo. – Não tem volta? Tem certeza? Não vai dar pra apagar tudo isso? – e ela apenas desviou os olhos e avisou que tinha um compromisso dali a meia hora. – Líria, ainda não estou certo... – Mas continua amigo daquele crápula.
Pronto. Pôncio era a pedreira no fim do caminho. Talvez fosse o medo de parecer covarde. A incerteza quanto ao que o outro tinha dito sobre ela. Ou então, quem sabe, a secreta corporação dos machos funcionando de um jeito assim, subliminar, que o deixava inseguro e incomodamente culpado de algo que não sabia o que era. Pôncio, até então isento de toda dúvida, poupado mesmo daquela desconfiança mais secreta que não respeita um irmão, o pai, seja quem for. Não se lembrava de alguém mais confiável. O que o atormentava ainda era o motivo daquilo. Ainda não conversara com ele depois, atordoado pelo tremor de terra que se desencadeara assim, de surpresa. Não sabia se ainda era seu amigo, mas Líria sabia. Líria sabia tudo, e era irritante, porque fazia sua culpa brilhar como um caco de vidro espetado na carne.

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