quinta-feira

A poesia segundo Cabral e o caderninho

Lavo a alma lendo boa poesia. No antigo caderninho de onde tiro poemas, pequenas crônicas e textinhos inclassificáveis, achei esse texto, escrito não sei quando:


Acredito na poesia como uma experiência que não para de se renovar, e ao longo do tempo pode tornar as pessoas melhores. O exercício da poesia induz o autoconhecimento, sem o qual ninguém sai do lugar. Dá a medida e o peso do que é preciso saber, porque ilumina a razão com a experiência mais íntima das coisas e dos acontecimentos. Aliás, poesia é acontecimento.

Poesia não serve para rimar palavras ou burilar frases de efeito. Ela relativiza as defesas que criamos para nos aprisionar; remove as máscaras com que tentamos nos esconder ou nos engrandecer. Desmistifica toda fantasia que não exista para celebrar, mas para enganar os outros e a nós mesmos. O exercício da poesia revela a inutilidade de nossos álibis. É o par de asas a nosso alcance.

Acredito profundamente na poesia, porque aproxima estranhos e diferentes, semeia um conhecimento para o qual não existem currículos, desperta as pessoas para uma liberdade que nada pode destruir. Porque consegue dizer o que nenhuma outra linguagem comunica. Um bom poema é o simulacro de um momento na vida de alguém, com sua grandeza e fragilidade.

Acredito na força da poesia, capaz de revelar beleza em uma fruta, um corpo ou numa guerra; numa paixão ou num canto de casa empoeirado, na lama da estrada, nas nuvens de chumbo – melhor ainda se o arco-íris não aparecer.

E porque não se impõe nem obriga a nada, acredito que a poesia é a expressão mais verdadeira da difícil liberdade humana.


Imagem Iman Maleki. Menina lendo.



Foto David Pichiottino. Lampadaire nuit.


‘A palo seco’*, poema de João Cabral de Melo Neto, poeta brasileiro nascido em Recife, 1920, que morreu no Rio de Janeiro em 1999, fala de um conceito de poesia que me parece coisa de gênio (que ele era).


Aqui vão alguns trechos:

1.1 Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;

(...)

4.1 A palo seco canta
o pássaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre;

a palo seco canta
ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pássaro
dá o seu assovio.


* Do espanhol, a expressão Cantes a palo seco diz respeito a um tipo de música pertencente à categoria dos palos flamencos. São tradicionalmente cantados à capela ou, em alguns casos, acompanhados apenas por algum instrumento de percussão. O poema completo pode ser encontrado aqui.

16 comentários:

Jens disse...

Oi Adelaide.
Não sou um entusiasta da poesia, mas depois de ler o post estou revendo meus conceitos. Sempre é tempo de mudar.

Um beijo pra você.

Helenice Priedols disse...

Adelaide, não conhecia este texto, mas sempre considerei a poesia como Cabral a descreve: um caminho para o autoconhecimento, além de ser um caminho para o conhecimento das outras almas humanas. Obrigada por partilhar algo tão maravilhoso.

Abraço

PAZ e LUZ

Carol Timm disse...

Dade,

Que lindo deve ser todo esse seu caderninho. Esse pequeno texto é uma delicadeza e tudo soa leve hoje, como o fio sem o passarinho.

Beijos,
Carol

Anônimo disse...

Que belo texto, Dade! Você soube expressar com maestria o que é a poesia e o que representa;"O exercício da poesia revela a inutilidade de nossos álibis" Amei isso! Depois do texto, o fechamento com trechos do poema "A palo seco" foi perfeito!

Você sempre nos surpreende com belos presentes!

Beijos mil

Ariadna Garibaldi

Melissa disse...

Adelaide, poesia é isso mesmo, autoconhecimento!
:) E se faz de uma forma cheia de beleza! Um beijo e bom dia!

dade amorim disse...

Mas você vive a poesia que não gosta de ler, Jens. Um beijo.

dade amorim disse...

Também concordo inteiramente com ele, Helen. Por isso sou sua fã.
Beijo beijo.

dade amorim disse...

Esse fio sem passarinho é o fino. Parece até que delimita algum campo poético, fora do qual pode existir intenção, mas não poema.
Beijo, querida amiga.

dade amorim disse...

Obrigada Ariadna. Mas nesse texto já existe a influência de Cabral. Beijo e carinho.

dade amorim disse...

Mel, às vezes acho que poesia é um modo de viver. Obrigada, viu?
Beijo pra você.

Ana disse...

Oi, Adelaide!!! Tudo bem? Quanto tempo!!

Sincronicidade é fogo. Hoje mesmo estive numa longa discussão acerca da poesia, do "pra que serve" a poesia. Se bem que prosadora (só versejo em ano bissexto), eu também gosto de ler poesia, só que sou bem mais seletiva no gênero. Mas gosto de João Cabral também.

Você conhece Rosalía de Castro? Eu gosto...

Um beijo carinhoso, saudades!

Cris disse...

Oi, queridíssima,
"A poesia relativiza as defesas que criamos para nos aprisionar..."
Matou a pau.Concordo . Pena que é uma habilidade que me falta.

Beijo grande e saudades.

dade amorim disse...

Ana, que grande alegria ver você de novo!
Beijo enorme.

dade amorim disse...

Crisinha linda, vê se volta e fica!!!
Beijocas.

Anônimo disse...

Vc tem toda razão. O texto poética nos faz viajar em tão pouco tempo.. e nos aproxima do autor... pq tem sempre um autor que tem consegue descrever não só o sentimento dele.. mas o seu tb...

Eu adoro poesia!

bjs

dade amorim disse...

somos duas, querida.

Beijo grande e uma linda semana.