segunda-feira

O mesmo e o outro que vivem em nós



Um pequeno poema de Fernando Pessoa parece fornecer uma pista para a grandeza e a multiplicidade de sua(s) obra(s) e o motivo pelo qual foi capaz de produzir tanta coisa através dos heterônimos – que afinal seriam desdobramentos dele mesmo:

O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...


Esse trecho fala de uma realidade ainda não concreta, muito afim ao que nós chamamos de “o que poderia ter sido”, mas um pouco diferente, um pouco menos definida. Fingidor confesso, o poeta imagina coisas além do que ele mesmo já teria idealizado. Aquilo que permanece fora da percepção e do desejo imediato, e no entanto ele menciona:

São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.


Adoro mergulhar de vez em quando nesse tipo de divagação, que nossa cultura do pragmatismo evidentemente considera inútil e em muitos casos desprezível.
Por que não imaginar o que está distante, o que apenas podemos supor, que não é passível de conhecimento? Por que não mergulhar no diferente, no que outros podem pensar? Não é um bom exercício imaginar uma outra vida que não a nossa, outro tipo de rotina e de sensibilidade? Na mais fraca das hipóteses, essa pequena aventura nos abriria os olhos e a sensibilidade para quem vive a nosso lado.

Quando ele conclui

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.


está completando uma viagem sem estrada nem barco, que no entanto o levou bem mais distante do que qualquer via terrestre ou marítima poderia percorrer. E porque foi capaz de realizar viagens assim, Pessoa foi também capaz de nos deixar aquela quantidade excepcional de textos, poemas e histórias, fruto de sua criatividade fantástica. Uma criatividade que lhe permitiu inventar pessoas diferentes dele mesmo, parceiros imaginários de uma bagagem poética diversificada e riquíssima, de estilos e conteúdos tão variados.

6 comentários:

Carol Timm disse...

Adade,

Ler Fernando Pessoa sempre uma nova possibilidade, uma nova janela que se abre. Os dias sempre tão únicos e diferentes parece que estão contidos na sua poesia, multifacetada e única.

Adorei ler o que escreveu sobre ele, me deu muita saudade do tempo que lia bem mais e que o descobri no "Eu profundo e outros eus".

Beijos e saudades,
Carol

PS: Uma boa semana para nós!

Jens disse...

Ah, estas vadiagens pela imaginação...
Coisa de artistas, como Pessoa e você, Adelaide (e - menos - eu também. Cada um no seu quadrado).

Beijo e boa semana pra você.

dade amorim disse...

Carol, Pessoa é mesmo uma inspiração pra qem lê. E sempre vale a pena - "tudo vale a pena, quando a alma não é pequena". Beijo beijo!

dade amorim disse...

Jens, você disse bem, cada um tem seu quadrado, nem maior nem menor, mas sempre diferentes e capazes de enriquecer os outros. Beijo e boa semana pra você também.

Sandra disse...

LIndo poema.
Gostei de passar por aqui também.
Com carinho
Sandra

dade amorim disse...

Obrigada, querida, um beijão.