quarta-feira

Nicinha

Foto Robert Mapplethorpe*



Todo mundo tem sua zona de sombra no intelecto. Isso é normal, não significa absolutamente um QI precário; apenas lá uma hora ou outra alguma conexão vacila, um neurônio rateia, e sai um produto com defeito – um riso fora de hora, uma pergunta cretina ou uma frase mal formulada. O caso de Nicinha, no entanto, era mais específico, por assim dizer. A zona de sombra de Nicinha era um ombrelone tamanho gigante.

Quem já conhecia a moça se limitava a cumprimentos de praxe e um mínimo de palavras necessário ao bom andamento dos trabalhos, porque qualquer narrativa bobinha de um acontecimento do dia-a-dia era pretexto pra Nicinha entrar em detalhes que não vinham ao caso, tipo como era a camisa do sujeito em questão, que idade aparentava, se estava sozinho ou acompanhado. E, não satisfeita de aguar a história, ainda fazia aquela cara compassiva de quem diz “você não sabe explicar nada, estou tentando melhorar sua performance”. O interlocutor acabava desistindo, saindo de perto dela puto da vida e ainda por cima se sentindo culpado de ter destratado a colega. Piada então, nem pensar: Nicinha dissecava e escalpelava o caso até reduzir o humor do outro a subnitrato.

No dia em que o Carlito começou a trabalhar na empresa, veio se apresentar aos colegas mais próximos de sua baia, Leandro, Rubem e Nicinha. Todo comunicativo e sorridente, puxou logo assunto com ela. Os outros se entreolharam com um ar meio canalha e ficaram esperando o diálogo. “As vagas aqui no estacionamento não são marcadas, né?” – perguntou, e ela, espantada: “Ah, que pena, então você é daltônico? E como é que tirou carteira de motorista?” Carlito não entendeu nada. “Daltônico, eu? Não, não sou não.” Nicinha apertou os olhos como quem mata uma charada. “Ué, então como é que não viu as faixas amarelas no chão da garagem?” Os outros viraram o rosto e voltaram a suas mesas segurando o riso. O Carlito disse duas ou três palavras meio sem sentido e saiu pra beber água. Lá fora, o Rubem quis saber o que tinha achado da moça, já preparado pra comentar suas ratas e rir um pouco. Mas para sua surpresa, o Carlito disse apenas, “cara, que mulher charmosa, que tetéia. Ela tem namorado?”

*Imagem




Março, mês da água



Foto Helena Monteiro. Lago na Bretanha.


Em matéria de água, em vez de ritos mágicos ou poemas grandiosos, tudo que podemos fazer por nós, terráqueos, é poupar, reciclar, achar meios de reduzir gastos. É prosaico, pode ser chato e tira um pouco de nosso conforto, concordo. Mas é em favor da vida. E não só em março, mês dedicado ao elemento água. Março serve pra lembrar, fazer refletir sobre o assunto. O que resolve mesmo é poupar sempre, gastar menos e defender, na medida do possível, os interesses vitais das gerações que vem por aí. É possível e vale a pena.



Em tempo

Bispo do Rosário por Marcílio Medeiros


No Cronópios, um belo artigo de Marcílio Medeiros sobre Arthur Bispo do Rosário, neste ano do centenário de nascimento do artista. Siga o link, vale a pena.

16 comentários:

Jens disse...

Oi Adelaide.
Eu já disse, mas repito: deliciosos estes petiscos literários em forma de histórias curtas que serves à hora do café (são 17h25 e estou tomando café com leite). Como tenho imaginação fértil, construo um futuro para Nicinha e Carlito: ela abandonou o emprego por ocasião do casamento; tiveram um casal de filhos (Bruno e Carla); adquiriram uma casinha simpática no subúrbio, onde ela tornou fez amizade e se tornou a figura mais popular da vizinhança; nos fins de semana ele faz churrasco e depois dorme no sofá, esperando a hora do jogo na tevê. Com altos e baixos, são felizes até hoje. Cândido, né?
Um beijo.

Carol Timm disse...

Dade,

Adoro suas histórias! Nicinha é apenas mais uma das possíveis histórias de amor incompreensíveis que dão certo...

Pensando bem, se o amor for muito compreensível, provavelmente pode ser chato também.

Um pouco de "loucura e humor" é sempre interessante nos realcionamentos, mesmo que somente "enquanto dura o amor".

Beijos,
Carol

Anônimo disse...

Taí a prova de que a mulher pra agrdar o homem não precisa ter neurônios, basta ter ancas, e a Nicnha devia tê-las bem proeminentes. Meu beijo.

dade amorim disse...

Jens, ao que tudo indica, sua lógica é perfeita ;) Beijo!

dade amorim disse...

Pois é, Ery. O dia-a-dia dá panos pra mangas, não é mesmo? Beijo pra você.

dade amorim disse...

Carol, concordo com você: o amor entre iguais acaba ficando aguado. As diferenças alimentam esse estranho sentimento :)) Beijocas.

dade amorim disse...

Jota, não conheço a Nicinha, a não ser no genérico, por isso não sei como são as ancas da moça. Mas o Carlito sabe. Beijo.

Anônimo disse...

Compreender o Amor não tem graça, gostoso mesmo é amar sem saber como, nem quando, nem onde!


bjssss

Aninha Pontes disse...

Taí. Dizem que cada caldeirão tem sua tampa né?
Acho que o Carlito encontrou a dele então.
Muito boa.
Beijos meu bem.

dade amorim disse...

É mesmo, Vanessa!
Beijo pra você.


Aninha, grande verdade!
Beijão.

Anônimo disse...

Dade, meus neurônios estão quase entrando em greve...rs - Mas vamos em frente, reciclando a mente e o ambiente! Beijos!

dade amorim disse...

Eles aguentam, Nanda, não se preocupe. Pense no que está ganhando, e eles voltam a sorrir ;)
Beijos

Cris disse...

Oi, Adelaide,

Esse texto é delicioso porque é rapidinho ou rapidinho porque é delicioso? Eis a questão.
Dei esperança de amor à minha Nicinha aquí do escritório, depois dessa...

beijo, querida.

dade amorim disse...

Faça isso, Cris. Ela merece :)
Beijo pra você.

Marco disse...

Ré, ré, ré...
Delícia de conto. É o tal negócio: quando menos se espera eis que o inesperado faz uma surpresa. Sabe que eu conheci um cara assim que nem a Nicinha?
Daqui a pouco a galera vai entender que a falta de água vai atingir TODO mundo. Carpe Diem. Aproveite o dia e a vida.

dade amorim disse...

Pois é, Marco. Todo mundo conhece um(a) ou mais Nicinhas(os) nesta vida. Beijão e ótima semana pra você.