Eu sou, tu és, ele é. Às vezes duvidamos, mas somos todos.
Sois, assim como eles são.
O que, afinal? Além de gente, bípedes implumes sem asas nem
córneos bicos, essas figuras de origem biológica clara – ou quase – e
metafisicamente obscura. Dizem alguns entendidos que nem existe mais
metafísica. Isso arranca as pretensões mais petulantes de nossas árvores
genealógicas em suas raízes últimas (ou primeiras, dependendo de se você vai de
cá pra lá ou vem de lá pra cá) e impiedosamente nos põe em pé de igualdade.
Já ouço um alarido de protestos. São na certa senhoras da
mais antiga aristocracia rural, cavalheiros formados em Harvard, gente com
antepassados ilustres de nossa história e até pessoas simples, legalistas,
conservadoras, seres medianos sem culpa no cartório que não podem admitir ser
postos em pé de igualdade com gentinha da classe D. Sem falar em cintilantes
emergentes carregando seus pets perfumados, seguidas de maridos algo
embaraçados pela atitude beligerante das consortes.
A verdade é que somos. Não adianta espernear: viemos todos do
mesmo buraco, da ameba original, da água e da célula primeva. A partir daí
tiveram início evoluções e equívocos em desenfreada corrida. Parece que a
sentença do Éden foi mais ou menos assim: "Do caos viestes, para o caos
retornareis", e desde então homens e mulheres se empenham em construir
para destruir, mentir para si mesmos, proteger para abandonar, amar à beira do
ódio – não necessariamente nessa ordem, mas invariavelmente e em todos os
tempos e lugares. Às vezes a própria construção já começa sem qualquer
prognóstico favorável, como aconteceu com a torre de Babel e os prédios do
Sérgio Naya.
Espécime ambíguo e pouco confiável que é o ser humano.
Investimos recursos incomensuráveis para fazer a guerra – que é o jeito oficial
e socialmente aprovado de dar vazão à fera que vive em nós. Alguns apostam a
vida no jogo da violência sem lei; outros usam a lei para arquitetar golpes
milionários, enquanto falta o mínimo para que tantos possam viver com decência.
Quantas maneiras existem de matar?
Parece bem verdadeiro que o coração não se perturba com o que
os olhos não veem. As equipes econômicas trabalham com abstrações e eternos
métodos de ensaio-e-erro, dando seu jeito de fugir ao óbvio com o ar de quem
sabe tudo. Entra governo, sai governo, insistem em que a economia vai bem,
obrigado, embora os famintos continuem a existir em número assustador. Seus
saberes passam ao largo das necessidades primárias de dar de comer a quem tem
fome ou permitir uma vida digna a todas as camadas da sociedade. Interesses
mais altos se alevantam, e além disso existe esse ser metafórico e mutante a
que chamam mercado – álibi perfeito utilizado para preservar a ganância dos
mais fortes.
Enquanto isso, criam-se programas de nomes tocantes, campanhas
de efeito fugaz, e se abraça o Pão de Açúcar invocando a paz. Como se a paz
fosse um orixá e não um estado de espírito. Ou então desloca a atenção para
outros temas, como o BBB, novos modelos de bonés ou a brincadeira de berlinda
dos comissários do governo.
Mas
afinal, quem somos? Será que von Trier foi pessimista demais quando construiu
sua Dogville?
10 comentários:
Esse está difícil. Fiz 17 anos deanálise, mas não para saber quem era. E aprendi a conviver com esses seres autoritários que se complementam em outros. A PAZ! Seria apenas um estado de espírito? Mas quem pode ter az, assistindo crianças sendo mortas pelos pais etc etc...Nem me fale de BBB Este absurdo que temos que engolir.
Enfim um texto para se meditar ad-eternum.
Beijos
Mirze
Uma análise clarividente sobre o desastre que estamos a deixar construir com a nossa inação!!
Somos biliões e essa gentinha apenas uns Zés de Harvard como tão bem os caracterizou!
E sabe?! Detesto o mercado!!
... nem dá para fazer com arroz!!
Beijos,
Dade, texto lúcido, leve pra ler e profundo pra pensar.
e, sim, somos todos entre a ameba e o que se imagina ideal para o ser pensante, estamos no início do caminho...
beijos
É, Dade, quanta matéria para refletir e refletir e depois refletir. Apesar de minúsculos, não é possível que não possamos fazer absolutamente nada para mudar um pouco esse quadro.Da teoria para a prática, mãos à obra!
Beijos
Dade, este teu texto é notável. Parabéns pela eloquência e pela maneira como fazes a abordagem do tema.
Se eu fosse o editor de uma revista, convidava-te para escreveres uma página deste gabarito por semana...
Beijos, querida amiga.
Difícil ás vezes entender a vida e as pessoas, não é mesmo, Mirze?
Beijos mil pra você.
Tem toda razão, mfc amigo, toda razão.
Beijos.
Obrigada, Andrea, fico feliz de ver você por aqui.
Beijo beijo.
Sim, Maria Teresa, mãos à obra! É o único jeito de alimentar alguma esperança.
Beijos.
Obrigada, Nilson. Espero que você tenha uma revista em breve...
Beijos.
Postar um comentário