quinta-feira

Umqa história incompleta, cap.11

11

– Meu lindo, você vai me dar muita sorte, eu sei que vai – Líria repetia, olhando o gatinho que cochilava sobre a almofada, parte do enxoval comprado na véspera para fazer da vida de Pascal, o gato, um paraíso completo. Encontrou-o no jardim de seu edifício, aparentemente abandonado; não devia ter mais de um mês de vida. Era um bichinho cinzento e gorducho, e os olhos azuis e redondos que olhavam para ela como se pedissem ajuda a conquistaram sem remédio. Mais ainda se encantou quando o viu pular de susto por causa das badaladas do relógio na sala. Pascal mamava numa chuquinha de plástico, e era uma alegria sem nome ver o leite diluído em água sumir em poucos minutos. Encarregou sua nova ajudante de alimentá-lo enquanto estivesse fora de casa, trouxe vitaminas e brinquedinhos macios, dos quais ele a princípio manteve uma distância muito prudente; mas logo depois, para êxtase de Líria, fazia piruetas e dava corridinhas atrás da bola e mordia delicadamente um panda minúsculo, que logo deixava de lado, mostrando sua preferência inequívoca pela bola.
De repente a vida valia a pena de novo, e ela se sentia subitamente mãe de todos os desvalidos. Na falta do filho que não podia ter, criaria Pascal como um bebê, até quem sabe quando. Talvez até adotasse um bebê de verdade, mas isso ainda era apenas um desejo sem forma definida. Por enquanto, ela e Laio passavam pela fase deliciosa de inventar um filho de todas as maneiras possíveis. E quando a noite ia chegando, ela corria para casa e se preparava para a chegada dele como uma adolescente que ama pela primeira vez, Cleópatra se banhando em leite de cabra para Marco Antônio, como qualquer mulher muito apaixonada.
As mensagens de Mônica na secretária eletrônica do escritório despertaram várias sensações em Pôncio, algumas bem contraditórias. Primeiro, um tédio agudo, quase uma repulsa que o teria enojado, caso logo a seguir não crescesse uma curiosidade avassaladora que o empurrou para o telefone; não completou no entanto a ligação, porque uma onda de sensatez o conteve, e ele pensou no caso do senador e da prudência que seria bom manter quanto a essa mulher venal. Nesse momento alguém tocou a campainha da porta e ele foi abrir com a expectativa de quem espera alguma novidade. Quando a figura de Mônica apareceu à luz que vinha da janela em frente, imaginou que tipo de proposta iria lhe fazer e de que missão Lauro Munhoz a teria encarregado. Tudo foi tão rápido que depois seria difícil reconstituir a cena – Mônica se colando a seu corpo, os dois aos beijos no sofá e a transa intensa e apressada, logo repetida, prolongada e sonsa, em que ele mergulhou inteiramente esquecido de tudo e de todos até adormecerem, exaustos e relaxados.
Quando caiu em si, eram sete e meia da noite, e a consciência do que tinha acontecido caiu sobre ele como um golpe que o pôs de pé a caminho do banheiro. Ela o seguiu pouco depois, mas o encantamento tinha cessado, e em lugar do fauno encontrou um sujeito mal-humorado, que fechou a porta em sua cara. – Prefiro que vá se arrumar bem depressa e siga seu caminho, ele disse, como quem dispensa uma rameira. – Eu volto, ela avisou, e ele respondeu – melhor não, mas ainda ouviu a voz da moça chegando através do ruído da água – volto sim, pode ter certeza.
Saiu do banho com a cabeça pegando fogo. Ligou para casa e não teve resposta, mas logo em seguida Larissa ligava para seu celular. – Ainda está no escritório? – É, ele respondeu, vacilante. – Vamos jantar fora? A proposta da mulher o apanhou desamparado, sem saber como voltaria a olhar para ela, como devia agir agora. O episódio da tarde estava atravessado em seu corpo, em sua cabeça, e ele disse que sim, que era uma boa ideia, quase sem saber o que dizia. – Os meninos foram para a casa do Laio, parece que eles têm um gatinho agora, os dois ficaram lá – mas Pôncio não entendia bem suas palavras, e de repente lhe deu um desejo desenfreado de beijar Larissa. – Sim, meu amor, te encontro lá no Piacere.
Desligou o telefone com um misto de desespero, medo e culpa, muita culpa. Naquela noite levou uma enorme rosa vermelha para ela e não quis demorar no restaurante. Mal conseguia se controlar, acariciando o braço da mulher sobre a mesa. Larissa olhava o marido com uma espécie de deslumbramento, sentindo em seu toque uma força diferente, como se do contato da pele dos dois se desprendesse um fogo brando e persistente que ia tomando conta dela toda. Além da culpa, a escorregada da tarde tinha libertado nele um homem ainda desconhecido, que trazia o desejo à flor da pele e praticamente não deixava mais espaço para o cara sensato, jornalista respeitável e pai de família austero que tinha sido até aquele dia. Mas o que mais a intrigou foi que, na hora do amor, ele tremia e viu que havia lágrimas em seus olhos.
O dia seguinte seria inaugurado por um telefonema do Loredo, que o convocava – agora mesmo, é claro. – Alguma coisa com a fita? que foi que houve? perguntou, sobressaltado, mas o outro desligou sem responder. Pôncio chegou à redação em tempo recorde e achou que tinham lhe passado um trote, porque tudo parecia calmo e as poucas pessoas daquele horário trabalhavam normalmente. Foi à sala do Loredo, que o mandou sentar e assumiu um ar de conspirador. – Munhoz está processando o jornal, mas não é só isso, cara. Ele está processando você também. E a tal da Mônica avisou agora há pouco que entra hoje com uma ação contra você por assédio sexual e atentado violento ao pudor.
Pôncio sentiu os olhos escurecerem por alguns segundos e ficou imóvel, olhando para o Loredo. A cena da tarde anterior passou por sua cabeça como num filme. Inacreditável como podia ter caído na lábia daquela vadia. Tinha sido de uma fraqueza inconcebível, insuportavelmente idiota. Como não percebeu logo?
— Loredo, o que é mesmo que ela alega? – perguntou para ganhar tempo e poder pensar melhor. – Ora, ora, cara, ela avisou que possuía provas circunstanciais de que você a atacou ontem em seu escritório, onde foi procurá-lo para discutir a situação. – Que provas, que tipo de provas? Ele perguntou, tentando esconder o sobressalto. – Ah, não sei, ela só disse que – bom, de qualquer jeito você vai precisar de um advogado da pesada. O Castro, ia adiantando, mas Pôncio o interrompeu. – Loredo, vamos conversar primeiro. Ontem – começou, debruçado na mesa do redator-chefe. Pensava em Larissa, nos filhos, nos amigos. Pensava em tudo e todos ao mesmo tempo, enquanto contava ao outro os acontecimentos da véspera.

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