segunda-feira

Uma história incompleta cap. 10

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A reunião dos quatro em casa de Pôncio e Larissa foi marcada por um clima agridoce, que com o passar das horas foi ficando mais doce do que acre e acabou em puro mel. Líria chegou com um ar meio formal e Pôncio se esforçava para ser o mesmo de um ano antes, mas acabou desistindo e sentou ao lado dela no sofá debaixo da janela, um pouco distante do centro da sala. – Líria, acho que você já sabe por que fiz questão de convidar vocês dois para virem jantar conosco hoje. Acabei de concluir um trabalho que foi penoso e demorado, que me deu dores de cabeça e ainda vai dar algumas. – Por quê? Você não ficou contente com o resultado? – Ah, sim, por esse lado estou bem satisfeito e já comecei a preparar o livro sobre a história triste desse estádio e os personagens que fiquei conhecendo por causa dela. A questão é outra. Mas não é sobre isso que pretendo conversar com você agora.
Ela se empertigou e ficou esperando. Sentia um pouco de vergonha pela perturbação causada por tantos e-mails apócrifos, meu Deus, apócrifos, parece que estou falando da escritura sagrada. Mas não era sua vez de falar. Queria ver a atitude do ex-amigo, quase amigo de novo. De qualquer jeito, não pretendia voltar a mexer naquela sopa de ódio e ressentimento.
— O que preciso muito te dizer, Líria, é que agi como uma impulsividade desastrosa e fui bastante leviano quando me intrometi na vida de vocês dois. Logo de vocês dois, que sempre foram meus melhores amigos, as pessoas a quem sempre quis tanto bem, você nem imagina, – está bem, Pôncio, vamos pular essa parte da conversa. Sei bem o que nos custou essa leviandade de que você está falando, já tive vontade de matar você, mas agora entramos em outra fase. Não vou fingir que não aconteceu nada, mas acho que é tempo de ver as coisas com outros olhos. Me dá um beijo e vamos tentar recomeçar. Trocaram dois beijos fraternais e voltaram para junto de Laio e Larissa, que conversavam do outro lado. – Já ia chamar vocês para a mesa, disse ela. Durante a entrada, Pôncio apresentou desculpas formais aos amigos, sendo devidamente perdoado. Houve um brinde de champanhe, um presente à hora da sobremesa e depois do café ele pegou o violão e cantaram juntos, lembrando um antigo hábito que vinha do tempo de solteiros. Estavam um pouco altos, e a reconciliação os tornava mais felizes do que imaginavam ser possível.
Na semana seguinte, Laio e Líria aproveitaram um mês de férias por tirar e viajaram para a França, um projeto antigo, do começo do casamento. – Acho que temos que agradecer ao Pôncio, ela disse, sendo despertada por beijos e carícias num hotel da Provença. – Isso lá é hora de pensar em Pôncio – Laio respondeu, apertando seu corpo junto ao dele, tomado de urgência.


A fita gravada com a conversa entre os três, no café Tal e Qual – que Pôncio não pretendia envolver na história, em atenção ao proprietário, um homem de boa vontade – estacionara em sua gaveta de documentos confidenciais. À falta de um cofre, ele a mantinha trancada a três chaves com um dispositivo de segurança estrategicamente colocado na parte de trás, por baixo da escrivaninha. Tinha avisado o redator-chefe, mas Loredo – assim se chamava seu chefe – preferiu amadurecer a ideia, antes de fazer alarde sobre o caso. – Vou consultar o Castro, do jurídico. Ou melhor, vamos nos reunir com ele hoje mesmo, para analisar a questão. É preciso prudência com essas coisas. Mas também é preciso aproveitar enquanto a fita está quente. Te dou um retorno daqui a pouco.
Reunião marcada, logo após o almoço Pôncio se dirigiu à sala do redator e lá permaneceu durante mais de duas horas, sem celular. Não atendeu portanto à chamada de Mônica Lessa, que ligou para ele duas vezes e deixou mensagens um tanto ofegantes na secretária eletrônica do escritório. Também não recebeu o recado de um assessor de Lauro, querendo marcar “um encontro de seu interesse”. Tentava acompanhar em todos os detalhes os pareceres do Castro do jurídico e suas instruções quanto aos possíveis riscos a que a operação toda expunha o jornalista e, mais remotamente, mas não de todo remotamente, sua família. – Mas então o Lauro é um bandido, chefe de quadrilha ou coisa assim? Castro olhou para ele através da fumaça do parliament que nunca abandonava, – puxa, Pôncio, que foi que você bebeu na hora do almoço? Um cara que se envolve em tais, digamos assim, negócios é obviamente um bandido, um escroque, meliante que só difere do chefe do tráfico na favela pela roupa que veste e pelo lugar onde mora.
Pôncio imaginou que o advogado o considerasse um panaca completo, e tentou remediar a má impressão. – Para um senador da república sequestrar a família do jornalista que revelou seus podres à nação é de um baixo nível lamentável. – E ele é de um baixo nível lamentável. Ele é o fruto de séculos de políticas de educação e de trabalho calculadamente insuficientes e falhas, destinadas a manter os eleitores no nirvana dos alienados e garantir duas coisas fundamentais aos lauros munhoz da vida: carência econômica que os mantenha à mercê de uma esmola para sobreviver e incapacidade para processar corretamente as informações que chegam até seus ouvidos, muitas vezes já deturpadas. Eleitor não pode dispor de capacidade crítica. Toda notícia que ouve deve ser imediatamente avaliada segundo um critério único e exclusivo, que consiste em tentar descobrir em que os acontecimentos podem servir a suas necessidades e como tirar algum proveito deles. E os lauros alimentam esse estado de coisas, porque sem isso não conseguiriam chegar aonde querem. A desgraça dos famintos é a fortuna dos lauros, de modo que eles são os primeiros a incentivar essa atitude em suas campanhas e nos contatos diretos com a turba. No senado, na televisão ou nas declarações para o grande público, mantêm uma pose condigna e mentem tanto que se mentira matasse não conseguiríamos manter um só poder constituído nesta terra. Mas são esses eleitores que garantem a carreira e as venturas de nossos legisladores, de grande parte do executivo e por tabela as dos juízes e funcionários seus protegidos e corruptos como eles mesmos.
Loredo se mexia na cadeira, meio ansioso, e Pôncio teve um leve arrepio diante do quadro dantesco. Não ignorava a realidade crua da política de seu país, mas as palavras um tanto exaltadas do Castro tiveram um efeito de quase susto sobre ele. Pensou na família, nos filhos indo e vindo da escola, do inglês, da academia, da natação. Esteve a pique de dizer que preferia então destruir a tal fita e deixar tudo assim mesmo – mas assim mesmo como? Não poderia agora sair desmentindo a matéria que havia assinado com tanto entusiasmo e que pretendia aproveitar para um livro que, ele acreditava, lhe traria alguns trocados muito bem-vindos e, tinha esperanças, elevaria seu nome à galeria dos jornalistas de primeira linha.

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