segunda-feira

Uma história incompleta cap.5



5

O pessoal das igrejas tinha atribuído o desastre a um castigo divino, por causa dos excessos e da imoralidade de algumas pessoas no meio do público. Houve um excedente de feridos nos hospitais, que não davam conta do recado, e gente esperando em macas nos corredores e do lado de fora, nas calçadas. O desabamento foi o assunto principal dos jornais e dos noticiários de tv e rádio durante dois ou três meses. – Depois, como tudo que acontece nesta terra, a coisa toda foi caindo no esquecimento, e até hoje a parte mais consciente da sociedade em todo o país. Outros países, que na época foram solidários e prestaram ajuda às vítimas e às famílias, estão esperando uma explicação ao menos plausível, que reabilite nosso governo e os homens públicos. Podia ao menos haver a preocupação de tentar provar que não somos um bando de aborígines irresponsáveis, mas que nada.
Líria ouvia a digressão comprida de Pôncio, que se explicava menos como uma justificativa para o trabalho que desenvolvia no momento do que como um jeito respeitável de fugir do assunto principal. O encontro tinha sido um pouco menos cordial que o dos dois amigos, agora mais amigos que antes. Nada porém que desse a entender a hostilidade e o sentimento de ódio que Líria experimentara no começo da crise entre ela e o marido. Talvez isso se explicasse pela atitude de Pôncio, que fora polido, atencioso, e até ensaiara um gesto de certo carinho, dando-lhe um gentil tapinha nas costas que lembrava os velhos tempos.
Ela ouvia atenta, mas pensava em outras coisas – que ele continuava com a mesma cara de garotão grisalho, que era difícil acreditar que um dia lhe dissera coisas como aquelas. – Pôncio, ela disse afinal, me explique o que foi que deu em você quando resolveu me acusar daquele jeito de estar traindo meu marido. Ele sentiu que o terreno neutro lhe fugia dos pés. Pior, sentiu que estava sendo jogado de cara no chão sujo que um dia havia experimentado, quando a viu na companhia daquele sujeito saindo de um motel num carro que não era o dela. Mas se ela o arrastava de novo para esse chão, era desse ponto de vista que devia encará-la. Recolheu o vago sorriso de antes e olhou nos olhos da antiga amiga-quase-irmã, como a tinha chamado uma vez. – Você sabe o motivo melhor que eu, Líria. Esperou a resposta dela, que se limitou a abanar a cabeça em negativa e o encarou sem piscar. – Não sabe? – Se soubesse não estaria aqui, meu Deus do céu. Nunca entendi nada do que você fez. A princípio pensei que estava interessado em nos separar para ficar com Laio – ela disse, e Pôncio franziu o rosto numa expressão de nojo. Depois achei que talvez a coisa fosse comigo. Mas nada disso aconteceu, ao menos que eu saiba. Então, o que foi?
Pôncio teve um breve momento de hesitação. Depois se levantou, porque percebia que o antigo sentimento de rejeição ameaçava voltar. Era muita chinfra, como se dizia em seus tempos de estudante. Muito cinismo. Então a coitadinha não sabia. O que podia dizer a ela, senão alguma coisa que a ferisse, que a fizesse cair daquela pose de mulher séria?
— Cheguei a ter muita raiva de você, ela continuou, sem se alterar. Agora só queria que você me explicasse. Acho que muita coisa ficou por ser esclarecida.
Ocorreu ao jornalista que ainda não havia escrito uma linha de seu trabalho naquele dia. Começava a se impacientar, porque seus prazos estavam chegando ao fim, a primeira fase da série começaria na segunda-feira seguinte, e Líria o fazia perder aquele tempo oco, sem sentido, mentindo daquele jeito deslavado. Exatamente como antes.
Ela no entanto esperava uma resposta, sentada a sua frente sem o menor indício de querer se despedir ou mudar de assunto. Pôncio se moveu na cadeira, sentindo o desconforto de não saber que atitude tomar. Já não sentia a antiga aversão incontrolável, nem pretendia voltar atrás. Mas o olhar límpido com que ela o fixava era desconcertante. – Bom, começou, tentando ser o mais suave possível, é que os fatos... – Que fatos? – Líria, Líria, por favor, não me faça voltar no tempo, porque isso é uma das coisas que detesto. O que está feito... – Não é tão fácil. Você se deu conta do que aconteceu comigo, com Laio? Percebeu que a culpa foi toda sua?
Agora tinha sido demais. Essa mulher não sabe o que diz, ninguém pode ser assim tão falso. – Tudo tem que ter um limite, ele se pegou dizendo, e ela esperou. Muito bem, ele disse com uma tranquilidade que o surpreendeu, acontece que Laio é um irmão para mim, e eu só fiz o que gostaria que meu irmão tivesse feito: abri os olhos dele, contei o que tinha visto. Foi só isso. – E o que foi que você viu? Olhou-a com atenção e uma calma que não sabia de onde vinha. – Ponha sua memória pra funcionar, Líria. Onde foi que vi vocês, você e aquele seu colega de trabalho, lembra? Saindo daquele motelzinho de terceira, às cinco da tarde de uma quarta-feira de sol? Líria arregalou os olhos. – Meudeusdocéu, o que é isso? Dentro de um carro, segundo você mesmo disse, como pôde me reconhecer com tanta certeza? Você sabe que não era eu, criatura. Eu nunca fiz isso, nunca trairia um homem como o Laio. Ele suspirou e se distendeu em sua cadeira de braços. – Ok, Líria. Não sou dado a alucinações, tenho uma vista ótima e reconheci aquele seu vestido estampado. Agora, se você me dá licença... Ela deu a volta à mesa e parou a seu lado. – Se você me reconheceu só pelo vestido, então a coisa é mais grava do que pensei. Estou processando você por falso testemunho e danos morais. Quero me reabilitar aos olhos de Laio e das pessoas que nos conhecem, dos amigos, dos colegas de trabalho. Me aguarde, Pôncio. Ele se ergueu e foi abrir a porta. – Como queira, minha cara, e fez uma reverência que Líria não chegou a ver. Voltou à mesa com a sensação desagradável de alguma culpa indefinida. O trabalho rendeu muito pouco no resto daquele dia.
O dia seguinte correu inexpressivo e sem novidades. Enquanto esperava um telefonema do jornal, ele se pôs a arrumar a escrivaninha em desordem. Lá no fundo da última gaveta, encontrou o envelope com a letra de Líria. O carimbo do correio estava datado de outubro do ano anterior. Abriu e viu a carta, já quase esquecida, em que ela o acusava de ter destruído sua vida e ter transformado a vida dos dois – ela e Laio – em um inferno de desconfianças e acusações sem razão. Comparava-o a uma ave de rapina que mata para se alimentar de carniça. Acusava-o de inveja, deslealdade e alta traição. Encerrava dizendo que não queria vê-lo morto, mas acabado, roído de remorsos e sem ninguém na vida. Havia ainda uma ameaça velada de contar tudo a Larissa, o que não acontecera. – Talvez ela seja uma daquelas galinhas que cacareja mas não põe ovos, disse entredentes.
Depois ligou para Mônica Lessa e deixou um recado; precisava muito falar com ela. Acabou a arrumação das gavetas e recolocou a carta de Líria exatamente no mesmo lugar. Pouco depois falava com Mônica, pedindo-lhe que conseguisse um certo documento, indispensável para comprovar o que ela lhe havia dito sobre Lauro Munhoz. O telefonema do jornal demorava, e ele resolveu ir até a redação.

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