sexta-feira

Turbulência


Egon Schiele. A mulher do artista.



Foi como se alguém tivesse morrido, mas sem cadáver para enterrar, e tudo ficara em suspenso: ela preencheu os dias com pequenos afazeres, cuidou que não sobrasse tempo livre, chorou escondido. Depois passou o tempo do luto e o morto-sem-cadáver adormeceu de vez em algum limbo indeterminado. Não queria saber com quem estaria, para onde teria ido ou o que pretendia fazer.
Ela vivia uma vida sem muito entusiasmo, mas em todo caso uma vida. Saía, deixava-se levar, deixava os olhos acompanharem as histórias de outros personagens no teatro ou no cinema. Chegou até a dançar de novo, mas era como se seu corpo fosse de outra pessoa. Ou como quem perdeu um membro e continua a sentir sua presença. E nem se importava quando os amigos lhe elogiavam a roupa ou o penteado: não faziam mais que a obrigação deles. Pois não eram amigos? Achavam que ela melhorava a olhos vistos. Pois que achassem. Não ia azucrinar seus ouvidos com lamentações. Fazia tudo que os outros faziam, pronto. Se ninguém a chamasse, dormia cedo, junto com o menino. Dormiria pelo resto da vida sem se dar conta e sem lamentar o tempo perdido.
Mas havia o filho. Não queria que pesasse para ele também. Era muita coisa para uma criança tão pequena, ter uma mãe assim desesperançada da vida que só despertava por obrigação, para cuidar dele. Policiava o próprio olhar para que fosse um olhar de mãe, para não se perdesse além do pequeno e o deixasse desamparado e sem rumo. Não que fosse forte. Era uma forma de preservar o filho. O filho, que era outra pessoa, uma vida independente dela mesma, que nada tinha a ver com a solidão que Murilo havia lhe deixado nem com essa, interior, que ela mesma se havia imposto (e eram duas solidões diferentes). Sabia o que fazer para que ele fosse feliz. Crescia desanuviado e de bem com sua vidinha, sempre alegre, gorjeando pela casa e até seu choro era o choro das crianças felizes. Tinha medo de pedir mais do que ele poderia lhe dar. Por isso reaprendia a sorrir, reaprendia o próprio prazer por esse caminho da inocência.
Quando começava a se equilibrar com mais segurança na corda esticada de sua vida, o telefonema de Murilo. “Oi, Maura” –, ele dissera, e ela emudeceu sentindo uma queda por dentro. Não achou o que dizer e ele interpretou o silêncio como uma repreensão. “Eu sei, você tem o que censurar.”
A voz de Murilo acendeu a consciência clara do que havia esperado durante esses quatro anos: viu a si mesma como uma Penélope maternal e paciente. As lágrimas começaram a correr.
“Queria tanto ver você, falar com você”, ele dizia.
Ela deixou escapar um som desarticulado, porque nenhuma palavra expressaria o que estava sentindo e menos ainda o que estava deixando de sentir. Vazia, o coração aos saltos como um eco de tambor, um frio subindo das mãos e dos pés e correndo pelas veias.
“Você está bem? Está no Rio?” – ouviu-se dizer, e as palavras ecoavam num grande vazio.
Uma onda de cólera a assaltou, independente de sua vontade. Como ousava ele distorcer as coisas desse jeito? Quatro anos, e à última hora ele dizia “eu suportei demais”. Não sabia de nada. Como podia ser assim tão leviano? “Tentei refazer a minha vida enquanto você estava refazendo a sua” – não sabia o que dizia! Só conseguiu responder que muita coisa tinha mudado, e tentava com isso defender um espaço que era seu, não deixar que a enchente chegasse até o último reduto. Embora não estivesse certa se haveria mesmo um último reduto.
Ele nem sabia da existência do filho. As coisas que não podia mais controlar iam acontecer apesar de tudo. “O que mudou, Maura?” – ele insistia como se engasgasse. “Era verdade então?” “A verdade”, ela disse lentamente como se alguém lhe ditasse as palavras, “a verdade são quatro anos que você deixou passar entre nós sem ao menos explicar por que tinha ido embora.” Ele calou um pouco. “E isso foi tudo o que mudou?” “Foi pouco?” “Foi menos do que eu imaginava.”
Murilo tinha sofrido, ela sabia. Tinha fugido sem coragem de perguntar o que realmente estava acontecendo entre ela e o melhor amigo, que nunca fora mais que isso: o melhor amigo. “Minha vida está refeita em um sentido que você desconhece”, disse ela, e ele suspirou do outro lado como se a resposta o tivesse aliviado, e parecia sorrir brandamente quando falou: “O que é que eu desconheço?”
Pensara ainda em se fazer difícil, mas isso seria brincar. Pensou no menino, imaginou como se sentiria diferente das outras crianças. Pensou na inutilidade de tentar suprir aquela ausência. Percebeu na modulação de sua própria voz a voz de outro tempo. Não era a ele que devia outra oportunidade, mas a si mesma e ao filho. À vida. Não lhe cabia impedir isso.
Marcou encontro com Murilo para aquela noite. E foi de vestido decotado, argolas nas orelhas e sandálias de salto, sem esquecer seu perfume predileto que – agora sabia por quê – nunca tinha deixado de usar.

4 comentários:

Tania regina Contreiras disse...

Penélope e suas tantas solidões, que ninguém nunca pôde ou soube decifrar. Solidão de espera. Muito bom, Dade. Fiquei a pensar nas solidões internas e externas, no feminino que continua tecendo enquanto diz não e em cada laçada que vai desenhando uma possibilidade.
Beijos,

mfc disse...

Afinal pouco ou nada mudou.... como na nossa vida!
Embora nós pensemos que conseguimos mudá-la!!

dade amorim disse...

Sim Tânia, mulheres têm dessas coisas. Também queimo alguns neurônios pensando nessas coisas.

Beijo beijo.

dade amorim disse...

Pois é, amgo mfc, tudo parece permanecer igual, apesar de tantas mudanças aparentes.

Beijo pra você.