segunda-feira

Martírio


                               Foto Boris Kossoy.


Era vizinho de nossa família nos tempos de minha infância. Estudou com meu irmão na escola municipal do bairro, e cursavam direito juntos quando resolveu ser padre. Ingressou no seminário, concluiu o curso, e ao fim de uns anos lá estava ele, um missionário radiante de felicidade. Meu irmão, ateu convicto, e eu, meio desligada de tudo que não fosse jornalismo e literatura, não deixamos no entanto de amá-lo, cada qual a seu jeito. Ele correspondia com a doçura que era só dele.
Um dia, os dois na varanda depois de um almoço lá em casa, eu disse a ele que o martírio era uma bobagem sem tamanho. Ele me olhou com um misto de surpresa e repreensão – a repreensão suave de que seria capaz:
— Mas como... O que é que você está dizendo? Já se deu conta? Nem falo só do martírio religioso, há outros...
Eu nem pestanejei. Achava aquilo mesmo. Sentia muito se o decepcionava, mas não via vantagem em morrer por uma causa. Mesmo a vantagem política me parecia questionável. O que seria mais importante: a força moral ou a força do braço que trabalha para mudar as coisas? Não é morrendo que...
Ele tocou meu braço e o apertou um pouco mais do que seria de esperar.
— Peraí, peraí. Você está delirando. Então você acha que vale mais quebrar pedra do que inaugurar um monumento?
— Se ninguém quebrar a pedra, o monumento não sai.
Ele refletiu por uns segundo, sem soltar meu braço. Acho que o olhei de um modo diferente, porque pareceu se dar conta do que estava fazendo.
— Ah, disse, como quem se apercebe, largando meu braço, desculpe, eu... Mas você dizia – e se ajeitou na cadeira.
— Nada, respondi. Nada, não disse nada. Foi só um impulso.
Ele sorriu. O mundo estava em paz outra vez. Levantou a mão e fez um sinal de absolvição diante de mim. Naquele momento percebi: nunca seria meu.

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Ainda o blog da Bethânia

Pois é. Cês leram a coluna do Noblat, no Globo de hoje?
Nunca mais defendo nada sem antes me informar detidamente.
Mas já devia ter desconfiado, neste país de larápios do dinheiro dos outros.

 Agora está tramitando no Congresso uma lei para substituir a Rouanet, que deixa muito espaço para mãos grandes. Essa nova lei deve deixar ainda mais.

4 comentários:

Anônimo disse...

Também desconfiei de tanto amor à poesia. O resultado? Mais uma mina jorrando por baixo dos panos.
Beijo
AnaC

Tania regina Contreiras disse...

Morrer por uma causa...Metaforicamente falando, penso que já morri algumas vezes. Concretamente falando, muitos morreram. Não sei dizer, teoricamente não acho impossível.
Desde que não seja uma causa...religiosa...

E essa paixão pela poesia, pois sim!
Beijos

dade amorim disse...

É triste, não é não, Ana?

Beijos.

dade amorim disse...

Bom, teve seu momento meteórico de idealização, passou mais rápido que o vento e agora demos de cara com a dura (e imutável) realidade do Brasil.
Uma pena.

Beijo pra você, Tania