terça-feira

Martírio



                                                                    Ela. Foto sem nome de autor.


Era vizinho de nossa família nos tempos de minha infância. Estudou com meu irmão na escola municipal do bairro, e cursavam direito juntos quando resolveu ser padre. Ingressou no seminário, concluiu o curso, e ao fim de uns anos lá estava ele, um missionário radiante de felicidade. Meu irmão, ateu convicto, e eu, meio desligada de tudo que não fosse jornalismo e literatura, não deixamos no entanto de amá-lo, cada qual a seu jeito. Ele correspondia com a doçura que era só dele.
Um dia, os dois na varanda depois de um almoço lá em casa, eu disse a ele que o martírio era uma bobagem sem tamanho. Ele me olhou com um misto de surpresa e repreensão – a repreensão suave de que seria capaz:
— Mas como... O que é que você está dizendo? Já se deu conta? Nem falo só do martírio religioso, há outros...
Eu nem pestanejei. Achava aquilo mesmo. Sentia muito se o decepcionava, mas não via vantagem em morrer por uma causa. Mesmo a vantagem política me parecia questionável. O que seria mais importante: a força moral ou a força do braço que trabalha para mudar as coisas? Não é morrendo que...
Ele tocou meu braço e o apertou um pouco mais do que seria de esperar.
— Peraí, peraí. Você está delirando. Então você acha que vale mais quebrar pedra do que inaugurar um monumento?
— Se ninguém quebrar a pedra, o monumento não sai.
Ele refletiu por uns segundo, sem soltar meu braço. Acho que o olhei de um modo diferente, porque pareceu se dar conta do que estava fazendo.
— Ah, disse, como quem se apercebe, largando meu braço, desculpe, eu... Mas você dizia – e se ajeitou na cadeira.
— Nada, respondi. Nada, não disse nada. Foi só um impulso.
Ele sorriu. O mundo estava em paz outra vez. Levantou a mão e fez um sinal de absolvição diante de mim. Naquele momento percebi: nunca seria meu.

6 comentários:

Tania regina Contreiras disse...

...ou nunca mais foi o mesmo, vai lá se saber!

Beijos, Dade!

césar disse...

Sempre me pareceu uma babaquice essa história de padre não poder casar. E a maioria... Bom, deixa pra lá.
Bj

Ivan disse...

Um lindo texto!
Beijos do Ivan

dade amorim disse...

Pode bem ser, Tania, embora pelo jeito tenha seguido mesmo o que ele acreditava ser sua vocação...
Bjs.

dade amorim disse...

Pois é, César...
Bjs

dade amorim disse...

Obrigada, amigo velho...
bj pra vc tb