sábado

Exercício da noite




Amanhã começa outra vida. Uma vida que rói as vísceras, uma ansiedade florindo em redoma. A noite veloz só anuncia: coisas novas chegam amanhã. Como será te deixar para trás? Como será deixar de doer assim calada e passar a doer em liberdade rasgada? Será que brota desejo em terra mais fértil? A vida se adianta como miragem e renasce sempre mais adiante. Talvez descubra que chegou o fim e não haja mais nada a desejar, e poderei enfim viver de minha própria carne.
Mil vezes já passou esta noite. Mil vezes ela foi ensaiada em desespero e paciência e agora irrompe diante de mim e me deixa calada de saciedade. Um pouco de temor do desconhecido, é verdade. Uma felicidade corrosiva e difícil. Como será recomeçar do que nem se conheceu? Minha vida é uma trama oriental de muitos tapetes, e você me ajudou a tecer agonias como grandes estofados bizantinos num palazzo veneziano alagado de medo.
Não me apresento bobamente para tua aprovação, não fujo como em outro tempo e também não suspiro mais por você. Não te consulto – eis a grande novidade. Estou em outra dimensão da vida, uma dimensão que você não conhece e não está autorizado a freqüentar. Agora preparo mosaicos em imensos painéis que podem se animar a qualquer momento e preencher o céu com desenhos sem utilidade prática. Posso me dar ao luxo.
A glória que você podia me oferecer é uma grande morte com que não conto. Vou voar em outra direção, talvez na direção do capim que se alonga, e minha imagem vai renascer disso. Ainda não conheço todas as imagens de meus painéis. O resto se abre como o céu e você não está nele.
Estradas esquecidas que o carro desperta, estados sonolentos que passam velozes, tempo quase ausente. Quero ter tempo para experimentar. Pressentimentos como flores invisíveis em copas muito altas. Como você é fútil. Pensa que sabe tudo. Pensa que já decidiu o destino do mundo e não tem sequer os diagnósticos, porque o espaço é pouco para o mundo e você. 
         Alguém vigia e avisa: há vida lá fora. Um golpe traiçoeiro derrubou o dono da noite. Amanhã é outro dia. “Tá com enxaqueca outra vez?” Meu riso explode, escapa escandaloso. Pequeno gesto de reprovação: “que boba”, você diz. “Que é que você tem na cabeça?”

10 comentários:

Anônimo disse...

Uau, que texto! Quanta revolta! O copo transbordou e o outro nem se deu de conta.

Nanda disse...

Dade, estou torcendo pra que você se recupere completamente, o mais rápido possível. E vamos blogando menos, mas mantendo o contato. beijos.

dade amorim disse...

Pra você ver, Chorik - é aí que a coisa pega, quando o outro nem se dá conta.
Beijo pra você.

dade amorim disse...

Obrigada, Nanda querida.
Conto com essa torcida para chegar mais rápido.
Beijo beijo!

Adriana Riess Karnal disse...

Dade,
lindo tudo aqui...sim, há vida lá fora.

Anônimo disse...

Dade, isso é o que se pode chamar ponto de desgaste máximo...
É também mais um belo texto que você nos dá de presente.
Beijos
Kelly

Anônimo disse...

gostei da história! quero mais

=D

lu

dade amorim disse...

Ana, sempre que você aparece nos comentários, fico pensando no tempo que a gente passa sem conversar ao vivo, parece incrível.
Em todo caso, melhor assim :)

Beijocas.

dade amorim disse...

Oi, Lu! Tenho recebido umas histórias também :))

Beijo.

dade amorim disse...

Adriana, o mais importante de tudo é não se negar a viver a própria vida.

Um beijo e carinho.