sábado

Martírio




Era vizinho de nossa família nos tempos de minha infância. Estudou com meu irmão na escola municipal do bairro, e cursavam direito juntos quando resolveu ser padre. Ingressou no seminário, concluiu o curso, e ao fim de uns anos lá estava ele, um missionário radiante de felicidade. Meu irmão, ateu convicto, e eu, meio desligada de tudo que não fosse jornalismo e literatura, não deixamos no entanto de amá-lo, cada qual a seu jeito. Ele correspondia com a doçura que era só dele.
Um dia, os dois na varanda depois de um almoço lá em casa, eu disse a ele que o martírio era uma bobagem sem tamanho. Ele me olhou com um misto de surpresa e repreensão – a repreensão suave de que seria capaz:
— Mas como... O que é que você está dizendo? Já se deu conta? Nem falo só do martírio religioso, há outros...
Eu nem pestanejei. Achava aquilo mesmo. Sentia muito se o decepcionava, mas não via vantagem em morrer por uma causa. Mesmo a vantagem política me parecia questionável. O que seria mais importante: a força moral ou a força do braço que trabalha para mudar as coisas? Não é morrendo que...
Ele tocou meu braço e o apertou um pouco mais do que seria de esperar.
— Peraí, peraí. Você está delirando. Então você acha que vale mais quebrar pedra do que inaugurar um monumento?
— Se ninguém quebrar a pedra, o monumento não sai.
Ele refletiu por uns segundo, sem soltar meu braço. Acho que o olhei de um modo diferente, porque pareceu se dar conta do que estava fazendo.
— Ah, disse, largando meu braço, desculpe, eu... Mas você dizia – e se ajeitou na cadeira.
— Nada, respondi. Nada, não disse nada. Foi só um impulso.
Ele sorriu. O mundo estava em paz outra vez. Levantou a mão e fez um sinal de absolvição diante de mim. Naquele momento percebi: nunca seria meu.

12 comentários:

Marco disse...

Olá, Adelaide.
Conto ficção ou real? De tão bom, fiquei na dúvida. De qualquer forma, acho tolo e estúpido se morrer por uma "causa". Morreria para salvar alguém, nunca por uma causa.
Que bom que retornou.
Carpe Diem. Aproveite o dia e a vida.

Anônimo disse...

A história é ótima, bem resolvida e tem aquela beleza mística que amarra a gente. Adorei, Dade.
Um beijo saudoso
AnaG

Lupuscanissignatus disse...

a flor

da liberdade

não cresce

em redomas

dade amorim disse...

Marco, ou muito me engano ou toda ficção tem um traço de real. Forçando um pouco, o inverso também é verdadeiro. Daí...

Beijo.

dade amorim disse...

Obrigada, Ana.
Um grande beijo pra você

dade amorim disse...

Tem razão, Lupus. Dá o que pensar, esse seu comentário.

Beijo.

Vera Basile disse...

Oi Adelaide!!!
É incrivel como vc consegue nos passar tantos questionamentos num só diálogo...
Adoro suas escritas!
Bjs

dade amorim disse...

Vera, isso vindo de você me deixa toda prosa.

Beijo beijo

Anônimo disse...

Há uma nostalgia da transcendência nesse texto que o torna maior do que poderia ser um simples relato. Belíssimo, de verdade.
JN

dade amorim disse...

Obrigadíssima, Jota.
Valeu.

Melissa disse...

Tem vezes que o silêncio é a melhor resposta... E certas questões vão se acomodando dentro de nós até que possam ser ditas e vividas. Ou não!

Um beijo, Dade!
Mel

dade amorim disse...

É a vida, Mel, sem paradigmas nem linhas pré-traçadas. Beijo beijo.