domingo

Do diário de meu tio

Passei em frente à casa de Marina. Gosto de ver aquela casa, tem um jeito que chama a gente. O jeito de Marina. Entrei lá duas ou três vezes, joguei botão com o irmão dela que mudou pra Recife e uma vez tomei lanche com eles. Depois de terminar o namoro com Marina às vezes passava lá, na esperança de vê-la na varanda como naquele dia, e contra toda lógica teimo em pensar que isso seria como um sinal de que tudo podia recomeçar.
O cheiro que vinha da casa era uma viagem. Pão doce, cheiro de pão doce fresquinho, novo, dourado. Imaginei a mesa posta, o aipim desmanchando na boca, a manteiga derretida por cima e aquela cobertura morena de canela e açúcar. Pãozinho francês estalando dentro da cesta de vime com o paninho de crochê de bico, branquinho e engomado de leve. A manteigueira, o açucareiro, o bule do café e a leiteira do jogo branco e azul. Os queijos, sempre três ou quatro, o presunto rosado e tenrinho, o requeijão cremoso, fresco, delicioso. O pote do mel de laranjeira, e na tigela branca os sequilhos, biscoitinhos de nata, ao lado do vidro bojudo das torradas e do outro, da geléia. Três ou quatro sucos naturais, um doce de goiaba, outro de leite; o bolo de milho no prato de pé.
Altíssimo astral junto à janela de vidro aberta para o pôr-do-sol e as montanhas azuladas. A mesa coberta pela toalha leve de xadrez miudinho e claro, recendendo a capim-cheiroso; os guardanapos bordados de florinhas e as xícaras azuis.
(Silêncio reverente, suspiro calado, profundo mergulho no âmago do ser.)
As margaridas no canteiro da cerca lá fora e gerânios na jardineira sobre o muro que esconde a área de serviço.
Daria muito por esse momento. Mas não fico muito tempo diante da casa. Tenho medo de que meu desejo se realize e ela apareça na varanda, caso em que eu seria bem capaz de perder a cabeça e voltar com ela, mesmo sabendo o que viria depois. Porque é verdade que seria capaz de dar quase tudo por esse momento – menos a liberdade.

Imagem James Tissot. A despedida. 1871.

22 comentários:

Melina disse...

Achei. Oba!!!
Vou ali me atualizar dos seus posts e volto já.
Beijos,

Cris disse...

Oi, querida!
Em teu nome eu falo com todos os amigos que leem minhas crises em forma de texto, porisso fiz um chamado para você lá no sítio.

beijão, linda.

Jens disse...

Oi Adelaide.
Sei não, tenho a impressão de que esta seria uma doce prisão. Delicioso, o texto.
Um beijo.

dade amorim disse...

Melina, seja muito bem-vinda, aqui como lá, nos outros blogs, e onde a gente possa se comunicar. Um beijo enorme.

dade amorim disse...

Cris querida, doce menina, beijo beijo e até breve.

dade amorim disse...

Jens, pode ser que você tenha razão. Mas quem sabia dele era ele mesmo.
Beijo!

Estela disse...

Olá Adelaide,
Que lindo texto! A gente consegue se ver diante da mesa posta, o cheiro de pão doce... chega a dar água na boca.
E as margaridas e os gerânios parecem saltar da página.
Bjs.

☆Lu Cavichioli disse...

Adelaide, que texto maravilhoso. Tão bem escrito que interpreto como um bordado fino em linho especial.

Narrativa sensível, gostosa de ler. Que pena que acabou. Tem continuação?

Adorei e quero mais.
bjão querida e vem me ver de vez em quando.

Lu

dade amorim disse...

Que bom que gostou, Estela! Beijos.

dade amorim disse...

Lu, obrigada pelo carinho! Esse diário ainda vai dar samba :D.
Beijos!

Beatriz disse...

Silêncio reverente, suspiro calado, profundo mergulho no âmago do ser.
Lindo!
Cena proustiana

dade amorim disse...

Por quem sois, Bea, obrigadíssima.
Beijo! :D

Beti Timm disse...

Dade,

tem coisas na vida que se quer muito, que parece ser perfeito, mas o preço´é alto demais, por isso é melhor esquecer!
Obrigda pela tua visita lá no Rosa e desculpe minha ausência aqui. Tem horas que estou correndo atrás de tudo.

Beijos

Aninha Pontes disse...

Adelaide querida, você com toda sua competência, cnseguiu com o texto, transportar todos os leitores para o lugar do personagem.
Consegui ver a mesa posta e sentir exatamente o que ele sentia.
Pena que ele sentisse medo de ser feliz, ou infeliz né?
Muito bonito.
Um beijo, bom domingo e uma ótima semana.

Nanda disse...

Será que tanta liberdade não o aprisionou com a solidão? Mistérios! =) Beijos, dade!

Nade T. disse...

Olá, querida!
Estou de volta, graças a Deus!
Estava com muita saudade disso tudo... É bom escrever aqui novamente também!
Ah, têm selos no meu blog pra você. Talvez já deva ter ganho, mas receba estes mimos de coração...
Faço também um convite para participar de uma Blogagem Coletiva que estou elaborando sobre o Dia da Música, que é dia 21 de junho... Espero que aceite meu convite!
Grande beijo e um excelente domingo pra você!

Jacinta Dantas disse...

Pois é Adelaide,
estou aqui, lendo seu texto. Ah! melhor dizer, estou aqui saboreando cada cantinho desse casa,com seus cheiros e cores e gostos, e, a sentindo em mim, a grande vontade de me jogar nas loucuras que a paixão nos propõe. Mas, como a personagem do texto sugere, só não quero pagar o preço da liberdade.
Lindo e gostoso texto, como sempre.
Beijo

dade amorim disse...

Beti, é assim mesmo, a vida é como o mar, vai e vem, muda todo dia. Um beijo.

dade amorim disse...

Oi, Aninha! Nada como uma pessoa sensível como você pra entender um texto. Um beijo e carinho.

dade amorim disse...

Nanda, acredito que você tenha razão. É talvez o preço da liberdade maior, não é? Beijo pra você.

dade amorim disse...

Jacinta, é um prazer muito grande ver você aqui e ver seu comentário, sempre tão gentil, viu? Um beijo e carinho.

dade amorim disse...

Nade, também estou na Tertúlia, assim, à última hora. É que acho essa iniciativa um agregador melhor que o Twitter :) Beijos.