terça-feira

Pavana da velha senhora


Foto Imogen Cunningham

Agora tudo nos lugares e ninguém para desarrumar. Da porta de entrada até as poltronas, o piso lustroso de desenhos bonitos que um dia temera tanto ver arranhado. Os cinzeiros no lugar certo, os pés da mesinha bem alinhados com o sofá. Os badulaques do lustre desenhando triângulos no teto em nítidas linhas de luz. As cortinas ameaçam uma solenidade despropositada. O espelho alto traz para dentro a vista da janela – a lagoa, o verde, o céu cruzado de improvisos.Examinou o rosto com cuidado: as imagens do espelho guardam sempre um traço de falsidade, mas a pele cansada estava nítida. Uma senhora extraordinariamente respeitável, no entanto; bolsas debaixo dos olhos, sorriso impassível. Um certo ar de enigma lhe cairia bem, mas já não havia motivo para isso. Em lento desconsolo, os ombros descaídos, notou entre o corpo que envergava e a imagem uma nota dissonante, e foi como se alguém a olhasse no fundo dos olhos em um momento crítico.Pratas e cristais a sua volta se tornaram presenças agravantes, como se lhe virassem a cara. Não há de ser difícil conseguir a paz, tentou convencer-se a caminho da janela, e teve a sensação de pisar sobre pequenas flores murchas. A tarde ia escurecendo ligeira, numa dança de luzes e trevas, e uns sons abafados chegavam a seus ouvidos.Lembrou de tanta coisa de repente – as lutas sem fim, as crianças, os adultos em que haviam se transformado, uma certa indiferença nos olhos deles – agora com certeza não mais os mesmos. Onde estariam nessa noite de sábado?Pouco importaria a quem quer que fosse se a casa estava ou não arrumada. Nem mesmo a ela. Mas era preciso tentar.Entreabriu a vidraça. O ar novo no rosto e a súbita fisgada romperam o equilíbrio precário, construído como um mosaico de peças trazidas de fora, que não respondiam a nenhum de seus apelos. Cravou os olhos no lado mais escuro do céu e se aprumou diante da noite. Um vento indiscreto e atrevido ameaçava seu penteado.Voltou para dentro da sala. Do sofá olhou devagar para tudo, lembrando o tempo em que a sala não parava arrumada, o espelho respingado, marcado de dedos, até uma boca de batom tinha encontrado. A indignação daquele dia era uma lembrança alegre. O tapete, a franja sempre embaraçada, a ponta virada. A luminária de opalina em mil cacos. A cortina comprida com os fios da barra repuxados pelas unhas da gata Clotilde, os olhos fosforescentes no canto escuro junto ao sofá. As paredes, ora acetinadas em creme, naquele dia encardidas, manchadas de mostarda do sanduíche de Marquinhos, dedos sujos de tinta de carimbo do jogo de Maria Isabel.Tinha afinal alcançado a perfeição sonhada durante todos aqueles anos. Mas tinha sido há tanto tempo... As lágrimas lhe desenharam linhas sinuosas e negras rosto abaixo.



Amigos, depois de umas férias que me deixaram sem conexão, é uma delícia voltar.Obrigada mesmo pela presença e pelo carinho, beijos gerais e até breve!Se tiver escapado alguma grafia fora das novas diretrizes, não liguem não. Pior ficaram as palavrinhas que perderam pedaço, como se pode ver aí embaixo:

10 comentários:

Anônimo disse...

Adelaide,

que bom que voltou com TUDO! Já corrigi o link no VARAL.
Vou levar este seu texto para o QUEM CONTA UM CONTO...

Bjs e nos mande outros!

Carol Timm disse...

Adade,

Este texto traz uma grande melancolia do passado, dos tempos idos. E que não a sente de vez em quando? A ironia está em alcançar a tão sonhada "paz" e perceber que o "caos" deixou imensas saudades... Como somos assim inconstantes... mutantes, não é mesmo?

Quanto ao Novo Umbigo está lindo, Casa Nova sempre é bom!!! Ainda mais quando quem a habita é uma querida amiga de sempre...

Beijos,
Carol

Jens disse...

Oi Adelaide.
Lembrei do Vinicius: "filhos, melhor não tê-los. Mas se não os temos omo saber a alegria de tê-los?"
***
"A tarde ia escurecendo ligeira, numa dança de luzes e trevas" Belo, belo, belo.
Um beijo.

Anônimo disse...

Moça, lindo texto, viu? Saudades!

Bjocas,

Anônimo disse...

Queridíssima! Você estava fora do ar, por motivos de informática...rs E eu, fora do ar, por obrigações chatas e domésticas.
Li seu texto e me lembrei de quanto é prazeroso seu jeito de escrever, sua maneira de contar, sua forma elegante e criativa de narrar.
A velha senhora, que parece perdida, na paisagem arrumada, asséptica e bem posta, de sua casa, agora, me deixou uma ponta de nostalgia. E até me puxou a orelha...Vivo tento esses desejos de ver minha casa maravilhosamente em ordem. Tudo bobagem, não?
Essa desarrumação eterna da casa é sinônimo de vida, de existência em ebulição, de encontros mais importantes que a simetria e a limpeza dos objetos.
Belo texto, amiga!
Deixo-lhe um beijo bem saudoso!
Dora

Anônimo disse...

Adelaide querida, bom estar com você de novo.
A casa nova está linda.
Um texto maravilhoso, como é característica sua.
São sentimentos contraditórios, que ora realizamos o que queríamos, mas o resultado é penoso e sombrio.
Fica então a certeza de que é hora de repensar nossos valores.
Parabéns pelo belo texto.
Engraçado, amanhã falo mais ou menos sobre isso no programa da Pier.
As fases da nossa vida.
Um beijo querida

Anônimo disse...

Nossa! Que texto sublime! Adoro te encontrar através dessas palavras de encantar.

A Glorita voltou a blogar, agora fez três de uma vez. Vai lá: gloriahorta.net/blogs.htm

Beijos e saudades :*

Lord Broken Pottery disse...

Adelaide,
Felicíssimo em poder voltar aos seus textos. A mesma qualidade de sempre. Que bom! Já corrigi o link, tá?
Beijo

Gabriel Machado disse...

Muito boa a "tirinha" hehe

Vc não me conhece, mas sou o Gabriel, filho da Maria Regina. Minha mãe deve ter comentado que tenho um blog, e até escrevi lá sobre a reforma ortográfica (texto "A escrita correta").

O endereço é http://machadoseperdidos.blogspot.com

Abraços

Anônimo disse...

Dade querida, bem vinda de volta! A casa nova está linda e guarda o ar acolhedor da casa antiga; vamos ter mais motivos pra conversar, refletir e sonhar contigo. Beijos!