sábado

Coração escarlate



                            
                                                
          Um segundo antes de a lâmina romper o céu e encobrir para sempre o sol, ainda consegue pensar que tudo aquilo é uma tremenda injustiça. “Não tenho nada a ver com ests malditos conflitos entre muçulmanos e judeus, sou apenas um turista atordoado pela beleza milenar de Jerusalém.” É seu último pensamento. Os nervos explodem, o pescoço se abre, na calçada o sangue macula pela bilionésima vez a terra santa. Dor infinita rasgando entranhas. Ainda leva a mão à garganta, gesto derradeiro, inútil como a guerra. Tremor violento rompe os últimos filamentos do seu pescoço. Então a cabeça morena, pequena e pontuda de Leopoldo começa a rolar ladeira abaixo, distanciando-se do corpo, no alto. Ouve o que confusamente parecem repiques de sinos, trombetas misturadas a marés, e mergulha para sempre no outro mundo.
          Silêncio. Leopoldo sente-se pairar no vácuo, ele próprio ou o que resta dele ou a sua essência – não sabe – suspenso acima do mundo. Ao mesmo tempo vê-se dentro do antigo corpo, ensangüentado em solo palestino. Percebe-se também no interior da cabeça, estraçalhada agora contra um poste, que interrompera sua rolagem ladeira abaixo. Os olhos da antiga cabeça estão arregalados de espanto e medo.
Descobrir-se em tantas dimensões confunde. Não sabendo quem é, deixa-se flutuar no espaço. Não sente mais dor, apenas letargia. Tem certeza de que está em outra dimensão quando enxerga a si mesmo – ou ao que um dia fora, ou ao que fora e ainda é, ou ... – de uma perspectiva aérea, divisando lá embaixo, embaralhados entre si, fragmentos de sua vida.



          Avista-se desembarcando sozinho em Jerusalém, dias atrás: o cinquentão elegante, desenvolto, cabelos grisalhos, casaco bem talhado, habituado a circular nas altas rodas do mundo. Mas – de onde está, Leopoldo agora enxerga – dois buracos trazia por olhos, no coração, mandacarus, e aquele espanto desolado nas mãos. Ombros baixos e boca amarga, a do homem que chegara a Jerusalém.
          À época, não sabia a razão da viagem repentina, contrariando sócios e clientes, temerosos por sua segurança. Não era judeu nem tinha interesse especial por Israel. Aquela vontade súbita de ir, e pronto: entrara na agência, comprara a passagem, reservara o hotel. Agora Leopoldo está enxergando, inscrito a sangue no corpo que desembarcara em Jerusalém: Saudade da morte. “Se você está decidido a se destruir, Léo, realmente eu não posso fazer mais nada”, revê o desespero amoroso no olhar do amigo, o único a compreendê-lo, intuindo sentimentos que ele próprio, Leopoldo, desconhecia.
          Cansaço mortal, sentia. De todos e tudo. Muros altos da rua onde morava, desertos que nunca vira. Difícil mover-se. Solidões. Vontade de detonar a ciranda de poder, sedução e dinheiro em que a vida se transformara. Quase enlouqueceu o pessoal da agência. Ninguém mais o entendia. Anúncios de néon, hologramas, pop-ups, gigantescas modelos absolutamente iguais em poses para os clics, colunistas, colunáveis... Lixo. Ir pra onde? Procurar o quê? Interferências dos sócios, ataques de nervos das mulheres, brigas terríveis, no trabalho, em casa, em público. Madrugadas inteiras pelas ruas úmidas de São Paulo, mãos enterradas nos bolsos, cabisbaixo em meio às putas, travestis e mendigos que sequer via. Fedor. Entulhos. Sede, mas sede de água pura, água de mina.
          Saudade insuportável de Helena, que um dia se enchera das suas traições, jogara as roupas numa mala e fora embora chorando. Crateras pelo corpo inteiro. Helena de rosto lavado, Helena descalça, olho no olho, Helena gosto de pitanga com hortelã, cabelos secados ao vento. Helena inteira, mulher. Ele, estilhaços que feriam plantas, luas, fêmeas... Procurando o quê? Não sabia. Caríssimas garotas de programa, alpinistas sociais, portentos de quem devia puxar o saco, ninguém mais tinha nome em sua vida. Rondas de festas, clientes, fusões, poder, trabalho, cocktails, vaidades, traições, mais trabalho, dietas, recepções, disputas, liftings, trabalho insano, jantares de negócio com direito a todas as sacanagens, fortunas, prêmios, seduções. Sua vivacidade esvaindo-se em anúncios, outdoors, campanhas, sites, marketing político... Puta que pariu!
          Um dia quis mais. Um dia sonhara coisas realmente bonitas. À noite, sob estrelas, papos intermináveis com amigos sobre melhorias no bairro, no país. Jovens ao redor de uma mesa recheada de risadas e projetos sociais, vontade de mudar o mundo. Esperança, compromisso. Coisas que valiam a pena, iluminavam semblantes. Cadê Helena? Helena se casou, Helena se mudou. Cantava cirandas, os olhos sorridentes. Decerto se escondeu em algum sítio poeirento, plantando chuchu sem agrotóxico. “A cara dela”, pensou com desdém, vontade de sair gritando de dor enquanto pensava. Mãos vazias. Dois buracos em cada mão, olhos desolados e aquele desespero por onde sua energia escoava, transformada em cartão postal.
         


Ondas concêntricas agitam o ar em torno de Leopoldo. Encantado, percebe: o ser alado em que se transformou pode girar de todas as formas, em parafuso, mergulho, dobradura, ponta-cabeça.  Ângulos inusitados do mundo lá embaixo, da cidade santa, do seu corpo e cabeça separados em Jerusalém. Deixa-se flutuar, expandindo novas possibilidades.
Lembranças muito antigas do seu ser. Vê-se transportado até um tempo em que flutuava nu, despreocupado, livre, nutrido por um cordão mágico que o estimulava a crescer e explorar o útero em volta.  Paz, proteção, sensações que ignora desde quando fora expulso daquele vácuo primordial.
Sente-se puxado para baixo com violência. “Ainda não pertenço inteiramente a este mundo”, é a sensação ou idéia ou inspiração ou reminiscência que o assalta, enquanto despenca veloz rumo ao corpo desprotegido em Jerusalém. Em volta dele soam as primeiras sirenas de polícia, passantes fogem em várias direções. 
Momento quase religioso, o do retorno ao corpo. Pela primeira vez Leopoldo dá-se conta da sua extrema fragilidade. Cisco no universo, capaz no entanto de carregá-lo, identificá-lo durante toda uma existência  “Esse corpo era eu”, reflete, ondas de amor formando-se à sua volta.
É aspirado para dentro do corpo. Barulhos ensurdecedores de gases, correntezas, fluidos.  Move-se instintivamente, assustado. É jogado dentro de uma cavidade escura, de espessas paredes rugosas. Toca, cheira meticulosamente cada ruga, calo, mancha, aspereza, curva, reentrância. Repetidas vezes. Emocionado, percebe as marcas internas do tempo, calendários do seu corpo. O buraco fétido apareceu, está claro agora, quando completou a lucrativa fusão da sua agência com os italianos, deixando à míngua o primeiro sócio. E a ferida que ainda supura parece tão... antiga! Enxerga o menino, rostinho colado à janela salpicada de garoa; lá fora o corpo esguio da mãe, abraçado a um desconhecido, desaparece para sempre no nevoeiro de São Paulo.
Leopoldo é tragado por uma correnteza vermelha, densa, que o conduz até o lugar mais macio, acolhedor e feliz onde jamais estivera. Enfim relaxado, pode entregar-se às madressilvas encarnadas, aos sussurros mansos dos rios, aos foles que nunca param de tocar, às pétalas aladas sobre a neve, aos desvarios de bocas entreabertas, às curvas dos cachos de crianças, aos arrepios das nucas, à vegetação rarefeita dos cumes das montanhas. Sabe-se instantaneamente desejado, perdoado, consolado  – amado.
Do mundo das madressilvas encarnadas, Leopoldo enxerga a antiga cabeça, espatifada contra um poste de Jerusalém. Amorosamente a envolve –  a ela, que por toda a vida o guiou até a fama e a fortuna, mas jamais lhe concedeu um segundo sequer de amor, perdão, esperança, compaixão. Com cuidado, limpa-a de todas as sujeiras, da terra e do sangue que nela se grudaram, e também do excesso de miolos. Fecha para sempre seus olhos, beija-a, e a reúne ao corpo, recompondo a figura que um dia fora.
           Nesse momento, Leopoldo divisa a menina palestina. Ela acaba de vir ao mundo num beco escuro da medina, em meio à noite de guerra, horror e mísseis. É apenas um corpinho nu, chorando sobre a calçada. Leopoldo envolve a menina em sua onda quente, e nela enterra o seu bem mais precioso, aquele em que acaba de se transmutar, um coração escarlate. 

4 comentários:

AnaC disse...

Que texto, Dade! Incrívelmente belo e perfeito.

Beijo grande.

Camilla disse...

Maravilha, Dade!

Beijo

Ivan disse...

Gostei, gostei mesmo!

Beijos do Ivan

Tania regina Contreiras disse...


Ah, prontíssima para estender a escrita até um livro. MUITO BOM!

Beijos,