terça-feira

De um certo caderninho




 

Lavo a alma lendo boa poesia, é verdade. O antigo caderninho de onde tiro poemas, pequenas crônicas e textinhos inclassificáveis às vezes me parece meio pedante, meio besta mesmo. Esse manifesto que encontrei no tal caderninho foi escrito numa fase um pouco exaltada, assim meio condoreira (menos, Dade, menos!), mas tem lá seus encantos. Gosto dele, apesar de tudo.

Acredito na poesia como uma experiência que não para de se renovar, e ao longo do tempo pode tornar as pessoas melhores. O exercício da poesia induz o autoconhecimento, sem o qual ninguém sai do lugar. Dá a medida e o peso do que é preciso saber, porque ilumina a razão com a experiência mais íntima das coisas e dos acontecimentos. Aliás, poesia é acontecimento.

Poesia não serve para rimar palavras ou burilar frases de efeito. Ela relativiza as defesas que criamos para nos aprisionar; remove as máscaras com que tentamos nos esconder ou nos engrandecer. Desmistifica toda fantasia que não exista para celebrar, mas para enganar os outros e a nós mesmos. O exercício da poesia revela a inutilidade de nossos álibis. É o par de asas a nosso alcance.

Acredito profundamente na poesia, porque aproxima estranhos e diferentes, semeia um conhecimento para o qual não existem currículos bastantes, desperta o corpo e a alma das pessoas para uma liberdade que nada pode destruir, porque consegue dizer o que nenhuma outra linguagem comunica. Um bom poema é o simulacro de um momento na vida de alguém, com sua grandeza e fragilidade.

Acredito na força da poesia, capaz de revelar a beleza de uma fruta, um corpo ou uma guerra; uma paixão ou um canto de casa empoeirado, a lama da estrada, as nuvens de chumbo – melhor ainda se o arco-íris não aparecer.

E porque não se impõe nem obriga a nada, acredito que a poesia é a expressão mais verdadeira da difícil liberdade humana.


‘A palo seco’*, poema de João Cabral de Melo Neto, poeta brasileiro nascido em Recife, 1920, que morreu no Rio de Janeiro em 1999, fala de um conceito de poesia que me parece coisa de gênio (que ele era).

Aqui vão alguns trechos:

1.1 Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;

(...)

4.1 A palo seco canta
o pássaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre;

a palo seco canta
ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pássaro
dá o seu assovio.

* Do espanhol, Cantes a palo seco diz respeito a um tipo de música pertencente à categoria dos palos flamencos. São tradicionalmente cantados à capela ou, em alguns casos, acompanhados apenas por algum instrumento de percução.

Um comentário:

Aloísio disse...

Esse é um poeta que prezo e admiro.

Obrigado pelos versos!

Beijo