sexta-feira

Manu se perde no parque



Adelaide Amorim

É preciso começar as coisas do princípio.
Hoje é dia do aniversário da Bella. Bella é Isabella, filha de uma amiga e agora também coleguinha de minha filha na sala dos mais crescidinhos da creche. São lindas, as duas. Sempre digo que se tivesse outra filha queria que fosse igual à Bella. Minha filha, Nina, é morena, tem olhos rasgados, cabelo comprido e promete virar uma linda gatinha daqui a uns anos. Bella é loura, cheia de cachos dourados, parece uma gravura de anjo.
Acordei mais cedo por causa do aniversário de Bella. A mãe dela marcou um piquenique no Jardim Botânico, bem lá dentro, onde é permitido comer e beber e há uma cantina em meio-círculo cercada de mesas redondas. O piquenique vai rolar lá pelas onze, quando começa o horário de almoço da garotada. O tempo está ajudando: ainda faz calor, mas o sol está meio escondido e corre um ventinho fresco de vez em quando. O trânsito não está dos piores, porque muita gente aproveita o sábado pra dormir até mais tarde ou vai à praia, e o Jardim é passeio para quem curte a natureza. Nós adoramos, eu e Nina. Ela está aqui, no banco de trás, e me pede pra pôr o CD do High School Musical número 2, que toda a turminha adora. Já estou saturada de ouvir e ver o DVD, mas filho é filho, a gente sempre acha força e paciência pra essas coisas. A musiquinha começa, e aí percebo que perdi o caminho. Puxa, como é que fui perder a entrada?
Isso me incomoda muito, porque acontece com frequência, sou uma negação em matéria de orientação espacial. Sou assim desde pequena. Toda semana me perdia nos corredores da escola, no caminho de casa, que ficava bem perto, e até uma vez...
Mãe, diz Nina, não é por aqui – eu sei, eu sei, filha. Agora tenho que dar uma volta enorme lá pela Gávea, é isso? Nem sei direito, mas chego lá. Pronto, achei – ela já se distraiu e agora canta junto com a Sharpey.
Enquanto caminhamos até o parque, imagino que se tivesse muita grana contratava um motorista só pra evitar essa perda de tempo, sem falar no estresse. Mas um motorista pode se tornar um problema pra uma mulher sem marido, como eu. Tem que ser alguém muito conhecido, recomendado. Chego a sonhar que estou perdida, numa rua estranha, num caminho desconhecido, e às vezes tenho pesadelos de acordar com o coração aos pulos, apavorada. Uma amiga me recomendou o analista dela, tomei nota do telefone e tudo, mas ainda não me animei a marcar uma sessão. O que é que eu vou dizer a ele? Estou satisfeita com minha vida, minha filha, não nos falta nada, graças a Deus tenho um bom emprego. O pai de Nina é empresário, faz questão de dar a ela a melhor escola, presentes, roupas, tudo do bom e do melhor. Somos amigos, nos entendemos muito bem quanto à educação de Nina. Ele tem outra família, outros filhos, dois, e nos damos todos muito bem. Francamente, será que preciso de terapia por causa dessa bobeira de errar todos os caminhos?
Olha, mãe, que lagarta enorme – Nina estica o dedo pra tocar aquele ser gorducho e listrado, mas consigo avisar a ela que o bicho pode queimar se encostar na pele. – Quem queima é taturana, mãe, essa daí só vira borboleta. Sabe tudo, Nina. – Mas é um bichinho gosmento, é nojentinha, filha. Nina já vai aos pulos na minha frente. O sol apareceu com força, está linda a manhã, mas o calor aumenta. Não corre, filha – peço a ela, que não me ouve. Dou uma corridinha para alcançá-la, e Nina ri, brincando de pegar comigo.
De repente percebo que não sei onde estou nem muito menos para que lado fica o parque. Consigo fazer Nina parar e procuro alguém que me oriente. Andamos a esmo, eu e ela, o suor escorrendo pela testa. – Mãe, quero parar, ela diz, correndo para um banco. – Filha, vamos perguntar a alguém...
Nesses momentos, o mundo me parece uma sucursal do inferno. Foram quase quinze minutos, estou em pânico, mas afinal passa um daqueles trenzinhos do Jardim e consigo me informar. Engulo em seco, porque a mim mesma parece idiota uma carioca se perder dentro do Jardim Botânico. Uma senhora me lança um olhar bondoso que me arrasa, e pergunta suavemente se sou de fora. Não sou, não, desde criança venho aqui, vinha sempre com meu marido, penso, mas não digo. Sorrio de volta e continuo andando como se não tivesse ouvido a pergunta.
O aniversário estava ótimo. Sanduíches, frutas, sucos e guaraná natural. As crianças se acabam de correr, comem e bebem trazidas pelos pais, não querem deixar os brinquedos – balanços, casinhas de árvore com escorregas, quadrado de areia para os menores. Há muitas crianças, nem todo mundo é da creche, mas os pequenos acabam se misturando e arranjando novos amigos, uma graça. Depois vem a torta maravilhosa e chocolates para todos, que amanhã é domingo de Páscoa, tempo de chocolate. A conversa corre solta, as pessoas se sentem livres ali dentro. Horas mais tarde vai começar a romaria de crianças e mães à bica lá nos fundos, todo mundo lavando os pés, as mãos, o rosto suado. Alguns trouxeram roupas para trocar. Dali seguem para outros passeios, um cinema, outro aniversário, a casa dos avós, quem sabe.
Olho para eles com o peito pesado, pensando na volta. – Será que posso seguir vocês até o túnel? – pergunto à mãe de Bella, que junta as cestas e caixas para levar de volta ao carro. – Claro, Manu – ela responde com naturalidade. A meu lado, a mão na minha mão, Nina me lança um olhar muito estranho. 

Um comentário:

Aloísio disse...

Original!
Gostei do conto.

Beijo