terça-feira

Tragédias da banalidade





Patrícia Melo. Inferno. São Paulo: Planeta de Agostini, 2003. 368p.


Matutando aqui a respeito de minhas leituras mais recentes, lembrei do livro Inferno, de Patrícia Melo, e a imagem de um pântano de areia movediça me veio à imaginação, talvez inspirada na epígrafe do romance: “A descida é fácil, as portas do inferno estão abertas dia e noite.” (Virgílio, Eneida, Livro VI)

Linguagem dinâmica é pouco para definir o texto de Patrícia. Assim como a vida dessas pessoas que o livro retrata, em que viver é sem sossego e sem apelação, a história e sua linguagem também traduzem o desassossego e a intensidade da superfície. Como já disseram pessoas tão diferentes e tão importantes em seus guetos, como Jacques Lacan e Paulo Leminski, a profundidade está na superfície. Existir num lugar desses é acelerar a própria decadência, bem no ritmo alucinante de um funk em que o batidão é de cravar estacas no chão, para mais um puxadinho, e ao mesmo tempo no peito das pessoas. Se isso é sentimentalismo eu não sei, mas ali ninguém tem mais tempo pra ser sentimental. Foi-se o tempo do samba de favela, do romantismo, dos Cartolas e da poesia que pairava sobre a cidade derramada lá de cima. Agora é morte em vida, vida resistindo, fumando e cheirando, menino arrumando renda pra família com o chefe da boca – e pior, família empurrando o menino para a tarefa que vai, quase inevitavelmente, destruir essa vida que mal começa e ajudar na destruição de muitas outras.

Isso faz da biografia de Zé Luís, o Reizinho, uma leitura que, se tira um pouco o fôlego do leitor (e o Leitor é uma das figuras mais emblemáticas dessa história), é também mais um bom texto de autor brasileiro sobre o tema da vida bandida. Autores estrangeiros, como Claude Lévi-Strauss e Jean Baudrillard, falaram do assunto em seus ensaios; José Eduardo Agualusa e John Updike fizeram ficções sobre as favelas cariocas, o primeiro talvez com maior sutileza. O Orfeu Negro, de Marcel Camus (1959), adapta o mito grego de Orfeu e Eurídice a habitantes da favela, tendo como cenário o carnaval carioca.

O texto de Patrícia Melo, porém, assim como Cidade de Deus, romance de Paulo Lins, aborda o tema com o realismo possível do brasileiro, familiarizado com os tons dessa tragédia urbana repetida e banalizada pela população sofrida que, mesmo sem viver seu dia-a-dia numa favela, sabe do dinamismo delirante e das ameaças que representam os morros do Rio, dominados pelo tráfico de drogas e pela crueldade recorrente de seus soldados.


2 comentários:

Primeira Pessoa disse...

fiquei com vontade de ler. e de ler com vontade de ler. com vontade de ler muito mais.
e de voltar a rabiscar umas coisas, também.
certas coisas motivam a gente, já notou?
abração,

r.

AC disse...

Dade,
Por aquilo que diz, o livro retrata vidas aparentemente paralelas, mas transversais, ou seja, o paralelo já se insinuou nos passos, nos gestos, nos olhares...

Beijo :)