segunda-feira

Alice


Foto Katia Chausheva.

A paz do lugar para onde mudara induzia a refletir. Nunca se cansava de acompanhar os voos dos pássaros e a dança dos galhos e folhas, que lhe pareciam meio mágicos. Na verdade era uma atração desproporcional à singeleza dos acontecimentos. Mas o que mais atiçava sua imaginação era mesmo a vizinhança, famílias que pareciam ter uma vida rotineira, mas de vez em quando davam indícios de que, por trás de tanto sossego, talvez os acontecimentos não fossem tão pacatos quanto o dia-a-dia do lugar.
O filho do senhor do terceiro andar do pequeno prédio vizinho, por exemplo, aparecia de vez em quando, sempre muito tarde da noite, acompanhado de uma mulher muito esbelta, cuja silhueta dava impressão de ser bem mais jovem que ele. Alice, sua própria mulher, classificou laconicamente a moça de “perua engomada”. Curiosamente, o barbudo rapaz e sua acompanhante não entravam no apartamento do pai dele, e sim no apartamento de baixo, ainda vago. O casal entrava discretamente, com muito cuidado para não se deixar ver, e saía horas mais tarde, às vezes pouco antes do amanhecer.
Com sua insônia habitual e uma varanda de vista estratégica, ele acompanhava os movimentos dos dois sem ser visto. Deduziu que na certa o filho do vizinho estava tendo um caso com a moça e não desejava aproximá-la do velho.
— Só não entendo – comentou certa vez com Alice – é por que não vão a um hotel do Rio, onde moram, em vez de vir para tão longe.
Ela fez sua expressão mais marota.
— Ora, ora, você está mesmo ficando fora de forma – disse. Não te passa pela cabeça que aqui é o lugar onde mora o pai dele, e por isso ele tem um álibi perfeito para ficar indo e vindo a esse lugar? Ninguém pode estranhar, nem mesmo a mulher dele.
Olhou-a com muda admiração. E enquanto a olhava, lembrou muito nitidamente dos anos em que ela visitara a mãe em Arraial do Cabo com admirável assiduidade, chegando às vezes a passar dias em sua companhia, enquanto ele ralava na empresa de transportes que havia herdado do pai. Uma pergunta chegou até seus lábios, mas achou melhor não a articular, e preferiu mudar de assunto.

10 comentários:

Anônimo disse...

Fez bem em mudar de assunto. Salvo pela tangente...
Beijo, JL

Unknown disse...

Quantas vezes o silêncio nos salva?

Excelente!

Beijos

Mirze

Marcelo Pirajá Sguassábia disse...

Olha só, todo mundo com telhado de vidro... assim é a vida. A vida como ela é, como diria o Nelson. Mais um ótimo texto, Dade. Um grande abraço.

dade amorim disse...

Pois é, JL querido.
Abraço.

dade amorim disse...

Há prudências que é preciso ter, não é mesmo Mirze?
Beijo.

dade amorim disse...

Telhado de vidro é uma denominação bem certeira,não é?
Gracias, Marcelo.
Beijo.

Jorge Pimenta disse...

ainda assim, há silêncios que perturbam mais que mil palavras :)
beijinho, dade!

Anônimo disse...

Hehehe, muito bom Dade. Haverá algum embasamento da tática em fatos reais? Hein, hein? rs

dade amorim disse...

Tem razão, Jorge, mas ainda assim às vezes os guardamos,com medo de quebrá-los e sofrer mais.
Beijo.

dade amorim disse...

Ah, menino, deixa de ser maldoso :)

Beijo Chorik.