Texto de
Alexandre Amorim
Adolfo gosta de futebol. Torce para o Bayern de Munique e, do alto de seus
dez anos, não se lembra da seleção alemã ter perdido a final da Copa do Mundo
para o Brasil, em 2002. Seu pai o leva para ver alguns jogos, comprou a camisa vintage
branca e preta, de 1974, e diz que Adolfo pode ser um grande jogador, se
treinar bastante. Adolfo nasceu na Costa do Marfim, mas foi viver na Alemanha
com os pais ainda muito pequenino. O pai é alemão, trabalha como contador e
casou-se em 1996 com a mãe de Adolfo quando foi trabalhar em uma firma de
exportação alemã que tinha filiais na África. A mãe de Adolfo se formou em
Administração no Congo e foi trabalhar na Costa do Marfim, onde conheceu aquele
alemão branquíssimo, de olhos muito pretos. Adolfo é mulato, de olhos
castanhos.
Ontem de manhã, Adolfo não foi à escola porque estava com dor de barriga, e
aproveitou para procurar na internet qual a chave da Alemanha na Copa. Acabou
descobrindo que seu país de origem também está no campeonato. Adolfo vai torcer
para a Alemanha, mas, se ela for eliminada, vai torcer para a Costa do Marfim.
Seus amigos da escola acham engraçado que ele torça por aquela seleção tão
chinfrim, mas ele se irrita e chama a todos de idiotas. Mal sabem eles que seu
país é enorme e que muitos alemães trabalham por lá, até seu pai já trabalhou.
Adolfo acaba se distraindo na internet e descobre que a África é chamada de
“berço da humanidade”, porque dizem que a raça humana se desenvolveu lá. Ele se
pergunta se foi na Costa do Marfim, onde nasceu, mas não consegue descobrir,
porque as informações na internet são muito confusas, e algumas até duvidam de
que tenha sido na África mesmo que o homem nasceu. Ele lê sobre Lucy, o fóssil
do primeiro ser humano, ancestrais na Sibéria, instrumentos e desenhos
encontrados nas cavernas da América Latina. Lê também sobre chimpanzés, linha
evolutiva, Darwin, design inteligente, Adão e Eva... Até que se cansa
e levanta da cadeira para ir até o sofá da sala e assistir à TV. Ele troca de
canal com pressa, porque nenhum desenho ou filme lhe interessa muito, mas passa
por um canal em que duas palavras que ele acaba de ler na internet aparecem na
tela: Sapiens e Neandertal.
Uma moça loura vestida de azul-marinho conta, em um jornal vespertino, que
cientistas alemães descobriram que o Homo Sapiens se acasalou com o
homem de Neandertal. A palavra “acasalar” não fica bem clara para Adolfo, mas
ele entende que os dois se casaram e tiveram filhos. Entende também que eram de
espécies diferentes e que ninguém acreditava nisso até que esses cientistas
alemães provaram que realmente aconteceu. E que muita gente está chateada com isso,
porque muita gente acreditava que o Homo Sapiens (que somos nós, pensa
Adolfo) era uma espécie pura, de linhagem direta e sem cruzamentos. A moça da
TV ainda comenta que esses cruzamentos aconteceram na Europa, mas não na
África, onde o homo sapiens não apresentava sinais de cruzamento com
outras espécies.
Adolfo não sabe bem o porquê, mas sente certo orgulho de ser africano. Se
sente especial, pensa que seus antepassados não se misturaram com aqueles
homúnculos atrasados, os neandertais. Seu pai liga para casa e pergunta a hora
de sua mãe chegar, e então Adolfo se lembra que o pai pode ser descendente de
neandertais, porque é europeu e não é puro como os sapiens africanos.
Ele volta para a internet, pesquisa e descobre que o primeiro neandertal foi
encontrado justamente na Alemanha. Povo idiota, ele pensa. Adolfo também pensa
que nasceu na África mas vive na Europa graças a seu pai, e sente raiva dele.
Sente raiva de seus colegas de escola, que mexem com ele, falam mal do futebol
da Costa do Marfim, mas também falam mal de sua cor. Os colegas de Adolfo
mencionam um homem com um nome parecido com o seu, de sobrenome cheio de erres,
que queria criar um povo puro, sem sujeiras, branco e perfeito. Adolfo sentia
raiva de achar que não era perfeito porque não era branco, mas agora sabe que a
perfeição e a pureza estão justamente onde nasceu, na África dos homens puros,
sem cruzamentos e acasalamentos com outras espécies.
À noite, sem conseguir dormir, Adolfo pede água a seu pai. Ele se levanta e
vai até o quarto com um copo pela metade. Entrega ao filho, que bebe dois goles
e devolve o copo. Pergunta ao pai por que a água tem que ser pura. O pai
explica que nada é puro, porque sempre existe alguma mistura. O que não pode
haver na água são elementos que causem doenças ou prejudiquem a gente. Como os
neandertais?, Adolfo pergunta. O pai olha com estranheza, mas se lembra de uma
conversa com colegas de trabalho sobre homo sapiens e neandertais.
Quer saber o que eles têm a ver com elementos que causem doenças. Adolfo explica
que eles prejudicaram os europeus, que não ficaram puros. O pai ri, diz que
ninguém é puro, que nada é puro, que a última pessoa que pensou em pureza
morreu triste e sofreu muito, porque isso não existe, que pensar assim é
burrice. E prometeu levar Adolfo ao museu de História Natural para ele ver como
os homens podem ser sábios.
Adolfo, naquela noite, sonhou com futebol, com homens brancos, pretos e
amarelos, grandes e pequenos, com homens felizes jogando bola e fazendo gols.
Da Revista de Educação Pública.
Publicado em 08/06/2010.
Alexandre Amorim é meu filho. Podem dizer que é corujice, porque é mesmo : D
Alexandre Amorim é meu filho. Podem dizer que é corujice, porque é mesmo : D
9 comentários:
Corujice cheia de fundamento. Adorei!
Beijos
Dade,
Quem não ia ser coruja depois de ler um texto desse?
Aliás, isso só comprova que talento pode ser mesmo hereditário.
Beijos pra você, corujinha feliz!
Carol
Obrigada, Maria Teresa. Concordo com você :D
Beijo.
Pois é, Carol. Menino bom ;)
Beijinho
Não é surpresa para mim, o texto está ótimo. Esse menino vai longe.
Beijo para os dois,
JN
:) Obrigada, Jota.
Beijo!
Dade, mas pode ser coruja. O texto tem cadência, leveza, estrutura, muito legal mesmo.
Filho de peixe.....
Obrigada, Walkyiria querida.
Um beijo.
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