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Revendo a papelada e os artigos
sobre o desastre do estádio, Cosme se deparou com o nome de Antônio Malafate,
autor do primeiro parecer que Mônica havia conseguido sobre a culpabilidade de
Munhoz naquela história mal engonçada. – Vou falar com esse cara, declarou, e
saiu do escritório de Pôncio sem fazer qualquer ruído, mesmo quando abriu e
fechou a porta. Ele anda como uma sombra, pensou o jornalista, sorrindo. Tinha
aprendido a estimar aquele caboclo intuitivo, inteligente e discretíssimo, que
já considerava um amigo.
Estirou as pernas sob a
escrivaninha e jogou a cabeça apoiada nas mãos para trás, um gesto muito
peculiar que repetia quando precisava pensar em alguma coisa que exigisse
abstração do resto. Na verdade, duas coisas dividiam agora suas preocupações –
a ameaça de uma sanção injusta, como se veem tantas nesta terra, e o vago
mal-estar que percebia dentro de casa. A primeira questão estava em boas mãos,
e só lhe restava esperar que o detetive, o Castro, as testemunhas e os amigos
conseguissem as condições para enfrentar com vantagem o poder do dinheiro e do
que considerava a podridão moral de seu adversário. A morte de Mônica Lessa, na
flor da idade, havia de comover as pessoas e comprometer aquele crápula. Não
lhe restava a menor dúvida sobre quem fora o mandante – ou até o próprio
assassino.
Quanto à segunda questão, o
relacionamento com Larissa tinha de novo mergulhado numa espécie de limbo.
Talvez o motivo fosse só a pressão dos últimos meses, aquele turbilhão de
acontecimentos em que tinha se envolvido por causa de uma inocente reportagem.
Ela bem que tinha tentado reavivar o desejo de antes, e ele lhe era grato por
isso. Tinha realmente sido um apoio e uma alegria retomar aquele amor, mas
agora o tempo do amor parecia muito distante, as coisas caminhavam para um
estado pantanoso, e tudo que conseguia encontrar dentro de si era um tédio que
não predizia nada de bom.
Enquanto Cosme se punha em campo
para descobrir o paradeiro de Malafate, ia pensando nas chances de seu cliente.
Nada de muito promissor lhe chegava quanto às providências já tomadas. As
testemunhas estavam sendo instruídas pelo Castro, mas o detetive sentia necessidade
de um contato mais intenso com essas pessoas. Tudo lhe parecia ainda meio
solto, e não poderia confiar cegamente na disposição de alguém que conhecesse a
situação, sabendo da força política e econômica do senador.
Não saberia explicar bem por quê,
mas o nome de Antônio Malafate lhe dizia alguma coisa ainda obscura. Precisava
descobrir a razão de o antigo colega de Mônica ter se decidido a colaborar com
ela contra Lauro Munhoz. Podia ser que se tratasse de um ingênuo ou de um
sujeito predisposto contra o ex-prefeito para quem trabalhara. Nesse último
caso, devia ser também um indivíduo corajoso ou ligado a algum grupo que lhe
desse apoio, o que era mais provável. Munhoz contava com inimigos aos montes,
mas sua força política e seu mau caráter mantinham à distância os desafetos. A
não ser que – só mesmo cara a cara é que vai ser possível avaliar a situação,
pensou, estacionando seu velho Passat a alguns metros da companhia em que
Malafate trabalhava. Era uma empresa pequena num edifício novo da Glória, de
poucos empregados, prestadora de serviços de tecnologia e informática, segundo
o pequeno letreiro no portão.
Larissa apareceu em casa de Líria
de surpresa, no momento em que a amiga saía para o trabalho. – Nossa, que foi
que houve? Você está com cara de quem viu um fantasma; olhou com atenção para a
visita e completou – um fantasma alegre. – Quase isso, a outra respondeu.
Podemos almoçar hoje lá naquela cantina perto do teu trabalho? – Claro, vamos
sim. Ando até querendo acertar a conversa com você, saber como vai o estresse
do Pôncio. – Ah, ele está bem, mesmo dentro dessa situação toda, você sabe. O
Pôncio é um cara metido a forte, não entrega o jogo assim. Havia um toque de
impaciência na voz da outra, um pouco de ansiedade, mas sua expressão era quase
radiosa. Por isso Líria se encaminhou para a cantina certa de que haveria
novidades, e nem se surpreendeu quando Larissa, mal tocando no prato, anunciou
que estava se sentindo como uma adolescente que vai ao encontro do primeiro
namorado.
Depois que a amiga se foi, sem
sobremesa nem café, Líria ficou pensando no resultado daquilo. Que maluquete.
Uma mulher tão louca pelo marido, os dois filhos adolescentes em casa, e ela
inventando álibis para encontrar com um cara que acabara de conhecer, e ainda
se dando ao desplante de afirmar que dele podia vir a salvação para Pôncio. A
coisa devia ser mesmo muito forte. – Mas você pretende subornar o tal Hartmann
pra conseguir apoio da polícia federal? A pergunta era um tanto irônica, porque
para Líria aquilo não passava de uma desculpa esfarrapada para ir ao encontro
do tal Roberto. Na verdade o verbo que lhe ocorrera nem era subornar, mas não
queria dizer nada que pudesse agredir a amiga ou a reprimisse naquele momento.
Imaginou que talvez Larissa
tivesse atingido o limite da tolerância em relação à suposta indiferença de
Pôncio. Às vezes não depende da gente, as coisas fogem ao controle, e nadando
naquela baía de carência, podia ser que a atenção de outro homem – por
coincidência tão atraente e interessado nela – fosse um remanso, um consolo, um
elemento de reconstituição da auto-estima, quem sabe. De qualquer modo, um jogo
arriscado, que tanto pode salvar um casamento como afundá-lo de vez. Suspirou
como quem aceita o fato consumado e foi pagar sua conta dupla, ao mesmo preço
de sempre, porque Larissa trouxera para a mesa um prato quase vazio.
Pôncio reagiu com surpresa ao
fato de chegar ao escritório de Cosme – uma salinha antiga que alugara na Lapa –
e encontrá-lo embevecido, ouvindo bem baixinho uma música que, chegando mais
perto, identificou como o Adagietto da quinta sinfonia de Mahler. O detetive
lhe fez um sinal para que esperasse um pouco. Um minuto depois a música
terminava e ele se dirigiu ao outro com a mesma cara de sempre. – Não conhecia
esse seu lado amante da música. E que música! Você é mesmo um cara diferente.
Cosme abriu aquele sorriso ofuscante que lhe iluminava toda a cara morena e arredondada,
a despeito da magreza de seu corpo. – Ah, a música é um refúgio no meio do
dia-a-dia. Se a música não existisse, a vida seria ainda mais difícil de viver.
– Por que você acha a vida difícil? Pôncio quis saber, com genuína curiosidade.
Sempre achei, pela sua cara serena, que você era um cara zen e cheio de paz
interior. – Nem sempre a cara diz a verdade, Cosme respondeu, com o olhar um
pouco mais pensativo que de costume. Há umas coisas que nem a paz interior
ameniza. Pôncio ficou calado, esperando o resto do discurso, que não veio.
— E então, conseguiu falar com o
amiguinho da falecida? – indagou, desistindo de interrogá-lo sobre assuntos
mais pessoais. O outro balançou a cabeça com uma cara de profunda preocupação.
E como não repondesse diretamente à questão, o jornalista quis saber mais.
Cosme positivamente não devia estar num bom momento, porque se limitou a
levantar os ombros ossudos e continuou calado, oferecendo-lhe um copo dágua
apenas através de gestos. Pôncio então desistiu da entrevista e achou melhor
voltar para o escritório, onde o esperava uma coluna por escrever e a
correspondência do dia, que não poderia ser negligenciada numa hora daquelas. –
Te ligo depois, disse, ao que o outro respondeu – vou ligar pra você assim que
tiver certeza.
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