quarta-feira

Uma história incompleta cap. 14


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Loredo costumava frequentar a casa de um cara chamado Canhedo, um novo-rico sem deslumbramento, ainda com hábitos de homem do povo, cujo maior prazer na vida era reunir amigos e conhecidos e cozinhar para eles. Ocupara grande parte do espaço ao lado da casa com uma espécie de cozinha do gourmet, equipada com uma adega respeitável, dois fogões, uma enorme churrasqueira de tijolos, grelhas, freezers, geladeira, uma ampla despensa, bancadas que se estendiam a toda volta e todo tipo de temperos e especiarias. Um imenso galpão, caprichosamente coberto de telhas sobre um bonito arcabouço de madeira lustrada, sob o qual havia mesas de quatro lugares e uma outra, mais comprida, para os dias de comemorações íntimas, onde oferecia almoços e jantares para cerca de quarenta a sessenta pessoas.
Canhedo conhecia a nata da zona Sul, e em seu galpão era fácil encontrar secretários municipais ou estaduais, vereadores, juízes, autoridades policiais ou clericais, lado a lado com violeiros, tecladistas ou percussionistas, além de pés rapados que curtissem música, gente de boa voz, artistas ou escritores. Vez por outra, um governador e com mais frequência o prefeito da cidade podiam ser encontrados lá, numa noitada um pouco exótica, mais divertida e agradável que uma boate. Além do ambiente eclético e do talento de anfitrião, Canhedo dava um tom família a suas reuniões, onde vips e plebeus podiam levar suas mulheres e onde os limites de cada um para beber eram respeitados. Não que fosse careta, ao menos quanto a drogas, por exemplo. Ele mesmo bebia seu vinho com classe e, se algum dia usara aditivos do tipo, estava livre deles. Nunca no entanto se aborrecia ou excluía alguém de sua casa por causa de um baseado ou de uma cheirada discreta. Mas havia certa moderação pairando no ar, de modo que todos se sentiam à vontade.
Além de tudo, no entanto, o que atraía grande parte daquela gente era a comida apreciável que o dono da casa sabia preparar, farta e bem feita, embora sem pratos muito sofisticados. O paladar do homem era excelente, e seu tempero afamado entre chefs de restaurantes de respeito. Ser convidado pelo Canhedo significava almoçar ou jantar como um príncipe do povo. Quando alguém que não o conhecesse bem queria saber por que não abria um restaurante, ele sorria um pouco misterioso, o rosto redondo e moreno alargado, e mudava de assunto com uma sutileza inesperada para um personagem com aquela aparência um tanto rústica.
Ninguém sabia ao certo de que vivia o Canhedo. Que era rico, ninguém podia duvidar, diante do casarão cercado por um terreno razoável, numa ruazinha escondida atrás da Epitácio Pessoa, no coração do bairro da lagoa Rodrigo de Freitas, e diante da prodigalidade com que tratava seus convidados. Mas seu passado e sua ocupação eram assunto de muita especulação, embora bem poucos soubessem tudo sobre sua vida, distante do clichê do livro aberto.
Loredo era um desses poucos. Conhecera o homem ainda saindo da adolescência, filho de gente humilde, retirantes do Acre, onde uma ação desastrada do governo estadual destruíra sua casinha de lata e madeira para deixá-los na rua poeirenta e esburacada. Numa viagem pelo Norte, Calixto Loredo, seu pai, funcionário público estadual no Rio de Janeiro, condoído com a situação da família, tinha dado um jeito de trazer os quatro – Silvino Canhedo, a mulher e dois filhos com cara de fome. Acomodou os quatro nos fundos da casa em que ainda viviam os avós do Loredo, num subúrbio não muito distante, e colocou Silvino e a mulher como contratados a serviço do governo, além de conseguir escola para os meninos e mais tarde uma formação profissional eficiente, que transformou Canhedo filho num soldador de respeito e seu irmão menor num eletricista de sucesso. Isso lhe valeu uma gratidão sem limites e a amizade que cresceu entre Loredo e o garoto mais velho, agora esse gourmet afamado.
Pôncio esteve algumas vezes com o chefe na casa da lagoa, e ultimamente levara Larissa e os meninos para um almoço regado a vinho chianti da melhor qualidade e cerveja muito gelada. Tinha sido um sábado divertido, de conversa amena e boa música, por conta de um conjunto recentemente incorporado ao grupo, que crescia sempre. Mas o que o redator-chefe visava não era só amenizar aquele período difícil da vida de um de seus repórteres mais destacados. Havia um interesse, cada vez mais claro para eles, no convívio dos amigos juízes e altos funcionários da segurança. Havia até um novo agregado, o Hartmann, comandante da Polícia Federal, pessoa de convívio muito agradável, entendido em história e sociologia, fala bem articulada e maneiras polidas, que encantou Larissa e deixou os jornalistas muito bem impressionados. A casa do Canhedo tinha esse dom de abrir novos caminhos, e não era só a comida de qualidade a responsável pelo sucesso e pelo crescimento de suas reuniões. E o sucesso era tanto que, pouco tempo depois da adesão de Pôncio ao grupo, os ágapes tinham ficado restritos aos sábados. – Não há tatu que aguente, desabafou o Canhedo para seu irmão postiço. Mas para os amigos do peito não tem dia nem hora – e isso incluía Pôncio e família.


A mensagem de Marconolo para Pôncio dizia apenas isso: sua história sobre a tragédia do estádio está incompleta. Nenhum indício de que o remetente pretendesse ajudar a esclarecer a parte que faltava, nenhum oferecimento de telefone, nada mais que isso: uma história incompleta. Aquele cara inibido, meio fóbico, não resistira a enviar um e-mail. Não se arriscava além disso, e só esse ato já lhe havia custado uma cruel luta consigo mesmo, que a consciência vencera, porque além de fóbico Marconolo era escrupuloso em seus atos. Media e pesava prós e contras, voltava a medir e pesar quantas vezes a dúvida o maltratasse. Havia uma espécie de prazer neurótico nesse processo, no vaivém da vontade, nas idas e vindas que pareciam percorrer, incessantes, todo seu corpo.
O teor da mensagem no entanto chamava a atenção de Pôncio, mais agora do que no momento em que a recebera. Envolvido pelas investidas de Lauro Munhoz e instado por Cosme, tinha examinado detidamente cada uma das mensagens conservadas na caixa de correio sobre a reportagem. Selecionou então as que lhe diziam alguma coisa e, com a ajuda de seu detetive caboclo, elegeu como a mais interessante essa que falava de uma história incompleta. Para mal dos pecados do pobre Marconolo, Cosme queria saber de quem se tratava, onde poderia ser encontrado esse sujeito de nome estranho e por que afinal enviara esse recado sucinto e enigmático sem ir mais a fundo em sua observação. – É preciso dar atenção a essas aparentes insignificâncias, coisas inexplicadas, por trás das quais há uma explicação que pode ser desde falta do que fazer de um remetente boboca a um dado decisivo que ele não explicitou. – Mas se fosse tão importante, por que o cara não entraria nos detalhes, afinal? – Vai saber por quê, disse o outro, encolhendo os ombros. As pessoas funcionam de modo muito específico, e você ficaria surpreendido se pudesse adivinhar o que se passa em cada cabeça. – Tenho uma ideia disso, respondeu Pôncio, pensando em Mônica Lessa. Eu mesmo – ia dizendo, mas se interrompeu, porque agora pensava no caso de Líria e na mancada que ele mesmo fora capaz de dar naquele dia em que quase tinha destruído as melhores amizades de sua vida. – Um cara que se dá ao trabalho de endereçar uma frase dessas a alguém, num caso como esse de sua reportagem, pode ser um lunático querendo aparecer a qualquer custo, mas também pode ser uma testemunha valiosa, que não teve a coragem suficiente para arriscar mais do que isso. Nesse caso, ele diz uma verdade importante sem identificar suas razões, deixa uma pulga atrás da orelha, e o único jeito é correr atrás dessa testemunha. Vai ver é isso que ele deseja.
Pôncio concordava com o detetive, e Castro também reconhecia a necessidade de buscar esclarecimentos que justificassem a mensagem. – Tudo nos interessa nesse caso, precisamos da verdade mais cabal, em todos os pormenores. Quanto mais detalhes e explicações de todas as circunstâncias, melhor para nós – para você em especial, Pôncio.
No momento em que Pôncio redigia a resposta solicitando esclarecimentos a Marconolo e encarecidamente explicava suas razões profissionais para tal pedido, sem entrar em detalhes de justiça e no envolvimento direto de Munhoz na história (Castro lhe explicara que esses dados podiam espantar a presa), sua mulher chorava, sozinha em casa, trancada no quarto, inteiramente dominada por uma aflição angustiada que não podia partilhar com o marido, já sobrecarregado de problemas. Pouco depois, como se adivinhasse, Líria chegava a sua casa trazendo um belo quiche para o almoço, que pretendia partilhar com a amiga. As duas se abraçaram e choraram juntas, porque, ao contrário de Larissa, ela e o marido ainda viviam a doçura da reconciliação, e Líria podia avaliar a agonia da outra, convencida de que Pôncio se desinteressara dela de uma vez por todas. – O pior de tudo, soluçava a mulher do jornalista, é que nem ao menos posso falar com ele sobre isso agora, e pode ser que tudo seja só por causa dessa maldição desse caso do senador. Mas como é que eu posso ter certeza? Ele mal olha pra mim, Líria, e eu não vou aguentar se o Pôncio me deixar. – Ai, sua boba, deixa disso, respondia a amiga, as lágrimas escorrendo aos pares, você vai ver que não é nada disso. Bem no íntimo porém, Líria temia tanto quanto ela que fosse verdade.

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