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Loredo costumava frequentar a
casa de um cara chamado Canhedo, um novo-rico sem deslumbramento, ainda com
hábitos de homem do povo, cujo maior prazer na vida era reunir amigos e
conhecidos e cozinhar para eles. Ocupara grande parte do espaço ao lado da casa
com uma espécie de cozinha do gourmet,
equipada com uma adega respeitável, dois fogões, uma enorme churrasqueira de
tijolos, grelhas, freezers,
geladeira, uma ampla despensa, bancadas que se estendiam a toda volta e todo tipo
de temperos e especiarias. Um imenso galpão, caprichosamente coberto de telhas
sobre um bonito arcabouço de madeira lustrada, sob o qual havia mesas de quatro
lugares e uma outra, mais comprida, para os dias de comemorações íntimas, onde
oferecia almoços e jantares para cerca de quarenta a sessenta pessoas.
Canhedo conhecia a nata da zona
Sul, e em seu galpão era fácil encontrar secretários municipais ou estaduais,
vereadores, juízes, autoridades policiais ou clericais, lado a lado com
violeiros, tecladistas ou percussionistas, além de pés rapados que curtissem
música, gente de boa voz, artistas ou escritores. Vez por outra, um governador
e com mais frequência o prefeito da cidade podiam ser encontrados lá, numa
noitada um pouco exótica, mais divertida e agradável que uma boate. Além do
ambiente eclético e do talento de anfitrião, Canhedo dava um tom família a suas
reuniões, onde vips e plebeus podiam levar suas mulheres e onde os limites de
cada um para beber eram respeitados. Não que fosse careta, ao menos quanto a
drogas, por exemplo. Ele mesmo bebia seu vinho com classe e, se algum dia usara
aditivos do tipo, estava livre deles. Nunca no entanto se aborrecia ou excluía
alguém de sua casa por causa de um baseado ou de uma cheirada discreta. Mas
havia certa moderação pairando no ar, de modo que todos se sentiam à vontade.
Além de tudo, no entanto, o que
atraía grande parte daquela gente era a comida apreciável que o dono da casa
sabia preparar, farta e bem feita, embora sem pratos muito sofisticados. O
paladar do homem era excelente, e seu tempero afamado entre chefs de
restaurantes de respeito. Ser convidado pelo Canhedo significava almoçar ou
jantar como um príncipe do povo. Quando alguém que não o conhecesse bem queria
saber por que não abria um restaurante, ele sorria um pouco misterioso, o rosto
redondo e moreno alargado, e mudava de assunto com uma sutileza inesperada para
um personagem com aquela aparência um tanto rústica.
Ninguém sabia ao certo de que
vivia o Canhedo. Que era rico, ninguém podia duvidar, diante do casarão cercado
por um terreno razoável, numa ruazinha escondida atrás da Epitácio Pessoa, no
coração do bairro da lagoa Rodrigo de Freitas, e diante da prodigalidade com que
tratava seus convidados. Mas seu passado e sua ocupação eram assunto de muita
especulação, embora bem poucos soubessem tudo sobre sua vida, distante do
clichê do livro aberto.
Loredo era um desses poucos.
Conhecera o homem ainda saindo da adolescência, filho de gente humilde,
retirantes do Acre, onde uma ação desastrada do governo estadual destruíra sua
casinha de lata e madeira para deixá-los na rua poeirenta e esburacada. Numa
viagem pelo Norte, Calixto Loredo, seu pai, funcionário público estadual no Rio
de Janeiro, condoído com a situação da família, tinha dado um jeito de trazer
os quatro – Silvino Canhedo, a mulher e dois filhos com cara de fome. Acomodou
os quatro nos fundos da casa em que ainda viviam os avós do Loredo, num
subúrbio não muito distante, e colocou Silvino e a mulher como contratados a
serviço do governo, além de conseguir escola para os meninos e mais tarde uma
formação profissional eficiente, que transformou Canhedo filho num soldador de
respeito e seu irmão menor num eletricista de sucesso. Isso lhe valeu uma
gratidão sem limites e a amizade que cresceu entre Loredo e o garoto mais
velho, agora esse gourmet afamado.
Pôncio esteve algumas vezes com o
chefe na casa da lagoa, e ultimamente levara Larissa e os meninos para um
almoço regado a vinho chianti da
melhor qualidade e cerveja muito gelada. Tinha sido um sábado divertido, de
conversa amena e boa música, por conta de um conjunto recentemente incorporado
ao grupo, que crescia sempre. Mas o que o redator-chefe visava não era só amenizar
aquele período difícil da vida de um de seus repórteres mais destacados. Havia
um interesse, cada vez mais claro para eles, no convívio dos amigos juízes e
altos funcionários da segurança. Havia até um novo agregado, o Hartmann,
comandante da Polícia Federal, pessoa de convívio muito agradável, entendido em
história e sociologia, fala bem articulada e maneiras polidas, que encantou
Larissa e deixou os jornalistas muito bem impressionados. A casa do Canhedo
tinha esse dom de abrir novos caminhos, e não era só a comida de qualidade a
responsável pelo sucesso e pelo crescimento de suas reuniões. E o sucesso era
tanto que, pouco tempo depois da adesão de Pôncio ao grupo, os ágapes tinham
ficado restritos aos sábados. – Não há tatu que aguente, desabafou o Canhedo
para seu irmão postiço. Mas para os amigos do peito não tem dia nem hora – e
isso incluía Pôncio e família.
A mensagem de Marconolo para
Pôncio dizia apenas isso: sua história sobre a tragédia do estádio está
incompleta. Nenhum indício de que o remetente pretendesse ajudar a esclarecer a
parte que faltava, nenhum oferecimento de telefone, nada mais que isso: uma
história incompleta. Aquele cara inibido, meio fóbico, não resistira a enviar um
e-mail. Não se arriscava além disso, e só esse ato já lhe havia custado uma
cruel luta consigo mesmo, que a consciência vencera, porque além de fóbico
Marconolo era escrupuloso em seus atos. Media e pesava prós e contras, voltava
a medir e pesar quantas vezes a dúvida o maltratasse. Havia uma espécie de
prazer neurótico nesse processo, no vaivém da vontade, nas idas e vindas que
pareciam percorrer, incessantes, todo seu corpo.
O teor da mensagem no entanto
chamava a atenção de Pôncio, mais agora do que no momento em que a recebera. Envolvido
pelas investidas de Lauro Munhoz e instado por Cosme, tinha examinado
detidamente cada uma das mensagens conservadas na caixa de correio sobre a
reportagem. Selecionou então as que lhe diziam alguma coisa e, com a ajuda de
seu detetive caboclo, elegeu como a mais interessante essa que falava de uma
história incompleta. Para mal dos pecados do pobre Marconolo, Cosme queria
saber de quem se tratava, onde poderia ser encontrado esse sujeito de nome
estranho e por que afinal enviara esse recado sucinto e enigmático sem ir mais
a fundo em sua observação. – É preciso dar atenção a essas aparentes
insignificâncias, coisas inexplicadas, por trás das quais há uma explicação que
pode ser desde falta do que fazer de um remetente boboca a um dado decisivo que ele não explicitou. – Mas se fosse tão importante, por que o cara não entraria nos detalhes, afinal? – Vai saber por quê, disse o outro, encolhendo os ombros. As pessoas funcionam de modo muito específico, e você ficaria surpreendido se
pudesse adivinhar o que se passa em cada cabeça. – Tenho uma ideia disso,
respondeu Pôncio, pensando em Mônica Lessa. Eu mesmo – ia dizendo, mas se
interrompeu, porque agora pensava no caso de Líria e na mancada que ele mesmo
fora capaz de dar naquele dia em que quase tinha destruído as melhores amizades
de sua vida. – Um cara que se dá ao trabalho de endereçar uma frase dessas a
alguém, num caso como esse de sua reportagem, pode ser um lunático querendo
aparecer a qualquer custo, mas também pode ser uma testemunha valiosa, que não
teve a coragem suficiente para arriscar mais do que isso. Nesse caso, ele diz
uma verdade importante sem identificar suas razões, deixa uma pulga atrás da
orelha, e o único jeito é correr atrás dessa testemunha. Vai ver é isso que ele
deseja.
Pôncio concordava com o detetive,
e Castro também reconhecia a necessidade de buscar esclarecimentos que
justificassem a mensagem. – Tudo nos interessa nesse caso, precisamos da
verdade mais cabal, em todos os pormenores. Quanto mais detalhes e explicações
de todas as circunstâncias, melhor para nós – para você em especial, Pôncio.
No momento em que Pôncio redigia a
resposta solicitando esclarecimentos a Marconolo e encarecidamente explicava
suas razões profissionais para tal pedido, sem entrar em detalhes de justiça e
no envolvimento direto de Munhoz na história (Castro lhe explicara que esses
dados podiam espantar a presa), sua mulher chorava, sozinha em casa, trancada
no quarto, inteiramente dominada por uma aflição angustiada que não podia
partilhar com o marido, já sobrecarregado de problemas. Pouco depois, como se
adivinhasse, Líria chegava a sua casa trazendo um belo quiche para o almoço,
que pretendia partilhar com a amiga. As duas se abraçaram e choraram juntas,
porque, ao contrário de Larissa, ela e o marido ainda viviam a doçura da
reconciliação, e Líria podia avaliar a agonia da outra, convencida de que
Pôncio se desinteressara dela de uma vez por todas. – O pior de tudo, soluçava
a mulher do jornalista, é que nem ao menos posso falar com ele sobre isso
agora, e pode ser que tudo seja só por causa dessa maldição desse caso do
senador. Mas como é que eu posso ter certeza? Ele mal olha pra mim, Líria, e eu
não vou aguentar se o Pôncio me deixar. – Ai, sua boba, deixa disso, respondia
a amiga, as lágrimas escorrendo aos pares, você vai ver que não é nada disso.
Bem no íntimo porém, Líria temia tanto quanto ela que fosse verdade.
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