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Na semana seguinte, a segunda
parte da reportagem falava dos números iniciais do show, do sucesso do novato
Tasso Gouveia, que desapareceu no desastre junto com os três músicos que o acompanhavam.
No último box, sob o título “Desídia e omissão”, insinuava-se que o prefeito
Lauro Munhoz poderia ter sido mais atento quanto à segurança das obras sob sua
administração, o que na certa teria evitado a calamidade e a perda de tantas
vidas. Às dez horas, em sua mesa no fundo da redação, Pôncio relia a matéria,
pensativo, e um suspiro escapou de seu peito. – Sua besta, pensava – ou falava?
– você está querendo um pouco mais de confusão em sua vida. Já entendi, te
conheço há quarenta e seis anos, você não me engana. O primeiro passo foi a
confissão desnecessária, a indignação justíssima de seu amigo, quem sabe se
ainda, e o peso dessa culpa que não tem jeito, vai pendurada em sua carcaça
pelo resto da vida. Agora você se castiga por ser tão estupidamente babaca e
honesto e publica isso, louco pra ser processado pelo senador também, que um
processo só é pouco, seu verme incongruente. Outro suspiro. Não podia ter feito
aquilo, praticamente acusando um senador da república sem uma prova efetiva de
sua culpabilidade. – Merda, rugiu, onde é que eu estou com a cabeça? Uma onda
de calor lhe subiu ao rosto e ele pensou até, por um instante, em recolher a
tiragem daquela maldita primeira edição. Tinha o laudo que Mônica lhe
entregara, triunfante, mas o laudo não valia nada. Era um mero instrumento
particular registrado em cartório, assinado por um ilustre desconhecido –
Antônio Malafate – supostamente empregado da prefeitura à época da coisa toda.
Malafate declarava que a obra de reparo do estádio, “que já apresentava riscos
e fora precariamente restaurado para o show”, não passava de uma promoção que
“daria prestígio ao município, em um ano que precedia as eleições”. – Sabia que
ele está sendo alvo de investigações sobre sua administração passada e sobre
sua atuação hoje em dia? – Mônica lhe explicava, de olhos brilhantes. Esse
homem é um mentiroso, e está sob suspeita de sonegação, remessa ilegal de
dinheiro, enfim, a sujeira de hábito entre essa gente. Uma boa hora pra
reforçar as acusações. Malafate resolveu me ajudar porque foi testemunha do que
Munhoz fez comigo. Você é um iluminado, Pôncio, um jornalista de prestígio. Não
vai perder essa chance de marcar pontos em seu currículo e prestar um serviço à
sociedade, ajudando a desmascarar mais esse bandido que se esconde atrás do
mandato dado pelo povo.
Um dos pontos de apoio de Líria
durante aquele tempo foram os afazeres do dia-a-dia, a cama por fazer, a louça
por lavar, as compras do mercado – essas tarefas que nos salvam de pensar todo
o tempo na morte ou no que deu errado em nossa vida. Havia ainda as tarefas do
RH, que às vezes a faziam esquecer um pouco seus problemas; gente aflita,
colegas no sufoco, licenças, férias, gratificações ou aumentos, anotações que
lhe davam também alguma alegria, contagiada por antecipação pela ajuda ou
alívio que representavam para seus destinatários.
Verdade que nada disso durava
muito, porque logo o conhecido desconforto se antecipava às lembranças. Ou o
cheiro delas, um odor peculiar que aprendeu a identificar logo que se separou
de Laio, mais precisamente quando se decidiram pelo divórcio e ela voltou para
casa lançando mão de todo seu auto-controle para não chorar em público. Um
cheiro estranho, mistura de mato queimado com incenso, que lhe invadia as
narinas de vez em quando sem mais aviso, em qualquer tempo ou lugar. A
princípio imaginou que alguma coisa em seu apartamento cheirasse assim, ou que
talvez viesse das vizinhanças. Logo no entanto aprendeu a reconhecer o cheiro
de divórcio, como o chamou, porque se manifestava no carro, no trabalho, no
supermercado ou na rua. Nada mais apropriado, pensava, com sarcasmo e amargura,
divórcio deve cheirar mesmo a rescaldo de incêndio.
Tinha pensado em procurar um
serviço comunitário, e preferia reeditar a experiência de alguns anos, quando
dera aulas de alfabetização para adultos no salão comunitário de alguma
paróquia. Foi impossível, porque os horários destinados a isso pareciam
planejados propositadamente fora de seu tempo disponível. Procurou um orfanato
do estado para saber como poderia ajudar aquelas crianças, todas menores de
seis anos, mas fora informada de que só uma contribuição em dinheiro seria
bem-vinda, porque o corpo de empregados encarregados do cuidado dos menores
estava completo. Ainda propôs vir nas tardes de sábado para ler histórias e
brincar com eles, mas a atendente respondeu a sua insistência com uma cara
gelada e um sinto muito que desanimaria a própria madre Teresa de Calcutá.
Quando Laio ligou, logo de manhã,
por pouco não a encontrou em casa. Há muito não ouvia sua voz. O cheiro de
divórcio invadiu seu nariz com tanta intensidade que a deixou meio tonta.
Queria dizer não a tudo que ele propusesse, mas acabou combinando encontrar com
ele à noite no bar do outro quarteirão. Estava contrariada, embaraçada,
irritada e excitada, do que sentia vergonha, mas também lhe dava alguma alegria
no meio daquela confusão. Várias vezes pensou nele, e até a foto da carteira de
trabalho de um colega lhe deu a ilusão instantânea de ser a foto de Laio.
Não tinham faltado paqueras e
propostas durante aquele ano. Tinha chegado a sair com um colega, conhecido
antigo dos tempos de solteira, que havia reencontrado na companhia. Jantaram e
conversaram durante horas, mas quando ele deu a entender que gostaria de subir
com ela ao apartamento, Líria riu na cara dele e se despediu com uma
brincadeira fraterna e quase infantil. Em seu grupo de amigos e amigas no
trabalho, quem conhecia bem sua história desde antes da separação era Ana Rosa.
Havia também o Marlon, um cara boa pinta que virava a cabeça de muitas mulheres
mas nunca ficava com nenhuma, o que dava o que falar e gerava boatos
desencontrados entre os colegas. Líria deixara que ele se aproximasse e gostava
de seu carinho discreto, expresso em cavalheirismo e numa atenção confortável
que lhe parecia muito doce nos momentos de crise. Estava pouco se lixando para
o que dissessem dele ou o que pensassem da amizade dos dois. Bastava que ela e
ele soubessem do que se tratava. Devia a Ana Rosa e a Marlon os poucos momentos
de alegria e paz, a esperança tímida que chegara a viver durante aquele ano.
Não esquecera Larissa, sua amiga
de tantos anos que afinal tinha se condoído dela, mas Larissa estava ligada
àquele homem odioso, e por mais que tentasse separar as duas imagens ele
prevalecia sempre e projetava um pouco de sombra na mulher. Larissa não sabia
de nada ainda, mas vivia com ele, dormia com ele, era mãe de seus filhos, e isso
a afetava tanto que Líria acabou percebendo que era impossível continuar
gostando dela como antes.
A essas alturas, no entanto,
estranhando que Pôncio não tocasse nunca no divórcio dos dois, que tantas vezes
tinha qualificado como quase-irmãos, Larissa resolvera questionar a atitude do
marido. Ele tentou sair pela tangente – Meu Deus, filha, por que ficar
cavucando essa história triste – e mudara de assunto. – Não sei, Pôncio, às
vezes penso que você tem mais a ver com isso do que parece.
Depois da conversa com Laio e
sentindo-se mais culpado que nunca, o marido afinal tomou a iniciativa e contou
a ela tudo que havia acontecido. Larissa não soube o que dizer a princípio.
Estava desapontada, nunca teria esperado isso dele. Pôncio também estava mal
consigo mesmo, dava bem para perceber. O casamento deles entrara numa fase
difícil; estavam juntos mas viviam vidas separadas, e Pôncio praticamente não
lhe falava senão o estritamente necessário. Tudo isso a impelia para um acerto
de contas, e a oportunidade não podia ser melhor. – Então você resolveu jogar a
Líria no fogo por amizade a seu amigo? Bonita amizade, que precisa eliminar
alguém para sobreviver. – Ora, minha filha, – não sou sua filha, Larissa cortou
o que ele ia dizer. O tom com que falava não deixava dúvidas: tinham um
problema em andamento. Pensou rapidamente no trabalho do dia, nas dificuldades
que teria que enfrentar, e fez menção de sair, mas a mulher o segurou pela
manga. – Quero saber de tudo, Pôncio. Não gostei do que você fez. Tenho o direito
de saber, não quero mais esse papel de mulherzinha resignada. Por favor, tenha
a decência de me contar. Ainda somos leais um ao outro, ou não?
A sugestão de procurar Líria para
se desculpar já atravessara a vontade do jornalista algumas vezes, e a conversa
com a mulher o encorajou. – A única coisa que me impede é que não tenho certeza
de estar errado, ele disse afinal. – Bobagem, ela respondeu. Se não tem
certeza, então ela é inocente para todos os efeitos. E além disso já pagou por
qualquer erro que tenha cometido. A não ser que você queira muito ver a Líria
como culpada, e temos que examinar essa hipótese com cuidado. – Por quê? – ele
perguntou, sem entender. – Porque você talvez quisesse dispor da liberdade
dela. Pôncio considerou a mulher por uns segundos sem saber o que dizer. – Você
está insinuando... – Estou, ela confirmou. Pode ser que você tenha resistido a
reconhecer isso, porque afinal é um homem de princípios. Além de tudo sua vida
ia ficar um bocado complicada, e pelo jeito Líria nunca esteve disposta a
embarcar nessa sua trama, se é que ela existe. Mas é bem possível que haja uma
intenção tortuosa te levando a cometer tamanha besteira.
Algumas vezes antes, Larissa lhe
fizera um pouco de medo, Pôncio não sabia precisar por quê. Naquele dia em especial,
despediu-se dela tomado daquela espécie de temor que se vota às pessoas dotadas
de algum poder extranatural. Não demonstraria isso à mulher, é claro. Saiu de
cabeça erguida, resmungando até logo com a cara de durão com que se escondia
dos olhos dela nesses momentos.
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