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– Sofre-se muito com a solidão, especialmente quando
não era desejada, ele disse, e de imediato se arrependeu. Não pretendia
queixar-se da vida nem provocar a piedade dela. – Acho que há coisas muito
piores, como a ingratidão, a injustiça, o abandono, ela respondeu, pousando a
xícara sobre o pires. Laio não se moveu. Se depois de doze meses era isso que
tinha a dizer, então – Mas me conta como está sua vida, ele disse, e Líria deu
de ombros. – Não há nada pra contar. Vamos direto ao assunto. Estou pensando em
acionar o seu amigo, e preciso ter certeza de que você não vai ficar contra mim
e depor a favor da figura. Ele a olhou longamente e balançou de leve a cabeça.
– Preferia que você não fizesse isso. As palavras lhe saíram lentas e num tom
mais grave do que o habitual. – Por que não? Aceito a acusação, abaixo a cabeça
e consinto em ser aquela mulher traidora que ele inventou? Ou você se recusa a
– Calma, Líria. Não me recuso a coisa nenhuma. O que houve com a gente foi uma
intromissão infeliz de um cara bem intencionado. Daquelas boas intenções que
vão para o inferno, como se diz. – Ah, entendi. Então é preciso poupar o
pobrezinho. – Não, nada disso. Não é isso, tenta entender. Fazer reviver uma
história mentirosa pode ser pior do que ficar calado e deixar que ela seja
esquecida. Um processo é um desafio. Se você ganhar, a reputação dele como
jornalista fica seriamente prejudicada. Se ele vencer, você fica para sempre
tachada de adúltera, mesmo que não tenha sido verdade. – Mas o que eu mais
quero é ver a reputação daquele canalha rolando pelo chão.
Laio se debruçou sobre a mesa e olhou-a nos olhos. –
Mas ele, aquele canalha, como você está dizendo, não é mais o mesmo. Está em
dúvida quanto ao que fez, acha que pode ter-se enganado em relação a você. –
Ele te enrola e você acredita. Estive com teu amigo há uma semana, e ele me
tratou com aquela superioridade arrogante de sempre. Se inventou essa história
foi pra te tirar do páreo, pra te envolver de novo, como já fez antes. – Não é
verdade. Estive com ele depois da tua visita. Me fez ir ao estúdio para
conversar, mostrou-se arrependido e inseguro. Bancou o durão com você,
provavelmente pra não te dar o gostinho da vitória, e deve estar se sentindo
mal com tudo isso. Eu mesmo saí de lá irritado com ele, fui duro, deixei o cara
falando sozinho. – Acho interessante que só agora você se irrite. Ele destruiu
nosso casamento, arruinou tudo que nós tínhamos, e que não era pouco – ou era?
– Então, Laio disse, tocando pela primeira vez em sua mão, em nome de tudo que
nós tivemos, desiste dessa ideia.
Pode ter sido só uma impressão, quem sabe um desejo
velado, mas pareceu-lhe que ela estremecia ao toque de sua mão. – Se tudo não
passou de um engano, vamos tratar de esquecer, acho que é o melhor para nós
todos. Líria resistia, não queria desmoronar assim aos olhos dele. – Se um
ladrão tivesse levado nosso carro ou nossas joias, na certa teríamos registrado
o roubo e tentado reaver o que era nosso. Laio estreitou a mão dela, que agora
certamente tremia dentro das dele. – Não há termo de comparação entre o que nós
perdemos e o carro e as joias. – E além disso, ela falou depois de alguns
minutos lutando para não chorar, nós nem tínhamo joias. As primeiras lágrimas
correram quando Laio se inclinou para beijá-la. Foi um beijo intenso, longo,
que chamou a atenção das poucas pessoas em outras mesas.
A quinta e última parte da reportagem de Pôncio sobre
a tragédia do estádio trazia o depoimento de Mônica Lessa e os documentos que
ela pacientemente conseguira recolher e incriminavam Lauro Munhoz com dados
agora irrefutáveis. Pôncio estava satisfeito, mais que satisfeito com o
resultado da pesquisa e a eficiência de Mônica, que afinal mostrava a que viera.
Tinham convivido quase diariamente durante essas três
semanas. A cumplicidade e o companheirismo, insinuados desde o primeiro
encontro, agora eram laços quase sensíveis que transpareciam nos olhares, nas
entonações da fala e até, em alguns momentos, em toques físicos – um abraço
mais longo do que pede a etiqueta, um aperto de mão que se demora, o beijo
supostamente fraterno que hesita um momento entre a face e a boca. Pôncio
estava bem consciente da atração que crescia entre os dois. Isso o preocupava e
deleitava em porções tão equivalentes que seria difícil prever a atitude a
tomar daí em diante. O trabalho estava feito, não havia razão para continuar
encontrando Mônica. Longe dela, na certa tudo se diluiria em distância e
esquecimento e nada iria mudar na vida dele. Era cedo para tomar qualquer
decisão, mas talvez fosse tarde para deixar que ela se distanciasse sem uma
palavra sobre o fato.
O que deveria ser o último encontro, mais comemorativo
do que de trabalho, deu-se no fim da tarde da terça-feira depois do
encerramento da série. Na segunda do encerramento, um grupo da redação se
reunira com ele para um chope e Larissa tinha participado da festinha. Tudo
estava bem dosado, os ânimos alegres, e na volta ela preparou o ambiente,
vestiu-se para trazer de volta as noites de alguns anos antes e envolveu o
marido num jogo de carícias sem limites. Ele nem pensou em resistir. Larissa
ainda o atraía bastante, apesar do tempo e da rotina. Deixou-se levar de volta
ao paraíso que haviam conhecido nos primeiros anos, quando a visão da mulher o
atirava numa espécie de vertigem. A luz da manhã não os despertou, e se não
fossem as batidas de Cinho à porta do quarto, talvez tivessem dormido até o
início da tarde em que Pôncio iria ao que, ele decidiu assim que abriu os olhos,
seria o último encontro com Mônica Lessa.
Quando chegou ao escritório naquela tarde encontrou um
envelope que alguém havia jogado por baixo da porta. Estava endereçado à
redação do jornal, carimbado com um urgente em grandes letras vermelhas. Preso por
um clipe, um bilhete manuscrito avisava que o envelope tinha sido entregue na
noite anterior. Abriu com certa apreensão, imaginando o que poderia ser aquilo,
e quando deu com o nome de Lauro Munhoz Clemente no papel timbrado sua
curiosidade ensombreceu um pouco. Depois das flores vêm os ossos, pensou,
largando-se na cadeira de braços para saber o que desejaria o senador. O
bilhete dizia apenas: Ao jornalista Pôncio Rodrigues de Mattos. E mais abaixo:
Prezado sr., gostaria de agendar uma troca de impressões, que acredito
produtiva, a respeito de seu brilhante trabalho de reportagem publicado na
série ora encerrada em seu jornal. Peço-lhe que compareça ao café Tal e Qual,
esquina da rua Raul Pompeia com Júlio de Castilhos, hoje, dia 29 de setembro,
às 18h. Desde já agradecido, L.M.
Pôncio balançou a cabeça e suspirou até deixar os
pulmões flácidos, completamente esvaziados. Que arrogância, pensou. Depois lhe
ocorreu que o sujeito talvez tivesse vindo ao Rio só para cuidar desse assunto,
mas logo resmungou – não é possível, ele deve ter assessores saindo pelo
ladrão, por que viria pessoalmente? A não ser que as intenções sejam tão
escusas que não tenha tido coragem de encarregar alguém da – entrevista?
entrevero? Ligou para a redação e chamou Caio Benévolo, encarregado de uma
coluna de fofocas políticas. – Você é um jornalista de certo prestígio, Pô. Ele
não ia se arriscar a mandar alguém no lugar. – Obrigado pelo prestígio, mas o
que eu quero mesmo é saber como pegar esse peixe no pulo. O outro fez um silêncio
de alguns segundos, e depois disse apenas – leva um gravador e registra tudo
que ele disser, ora. - E se estiver com um gorila e me revistar no banheiro?
Caio riu, mas concordou – é, pode até ser. Faz uma coisa: pede ao cara do café
pra instalar o gravador debaixo do tampo da mesa. – E o brucutu não vai manjar
esse truque? – Aí é jogar com a sorte, cara.
Chegou ao café Tal e Qual às três da tarde e procurou
o dono. – Vou lhe pedir um favorzinho, disse, depois de se identificar. Posso
até lhe oferecer uma chamada na seção de gastronomia do domingo, que tal?
Estendeu o gravador ao homem, que de repente se tornara muito atento. – Quero
reservar uma mesa para as seis horas, e gostaria muito que desse um jeito de
prender esse aparelhinho debaixo do tampo, lá pelas cinco, depois que colocar a
placa, para evitar que alguém ocupe a mesa à última hora. Pode deixar ligado, a
pilha está nova. O dono do café se endireitou e pareceu refletir por um
instante. – Senhor, o que é que está acontecendo? Alguma investigação sigilosa?
Tem envolvimento com a polícia? – Nada disso, amigo. É só uma brincadeira com
um amigo. Uma surpresa. Pode ficar tranquilo, é só isso mesmo. Não se preocupe,
tem minha palavra. Vamos escolher uma mesa que não fique muito à vista, propôs
Pôncio, sentindo que o sujeito vacilava, desconfiado. Levou-o até uma mesa de
fundo, meio disfarçada por uma coluna larga de mármore. – Pode ser essa aqui.
Depois que eu e meu amigo sairmos, por favor, deixe passar uma meia hora – não
antes disso – retire o aparelho de lá e guarde que venho buscar logo em
seguida. Mas não entregue o aparelho a ninguém, por favor. Como eu disse, é um
pequeno favor que vai lhe render uma propaganda inteiramente grátis.
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