12
Não havia jeito de Pascal se
acostumar com as batidas do relógio da sala de sua dona. Se estivesse dormindo
– e geralmente estava – dava um saltinho e virava os olhos azulíssimos para o
alto da parede. – Ele resolveu que o relógio é a ameaça maior em sua vida, e
Líria morria de rir por causa da postura defensiva do filhote, que acompanhava
os movimentos do pêndulo. Cinho e Paula passavam agora parte do tempo em sua
casa, e já andavam à procura de um bichinho daqueles, mesmo antes de consultar
a mãe sobre o assunto.
Laio também se divertia com as
gracinhas do gato, e mais ainda com o entusiasmo de Líria, que ele via com uma
indulgência paternal. Ultimamente no entanto a situação do amigo o preocupava
mais do que tudo. As manobras do Castro lhe pareciam ineficientes. Pôncio
andava abatido, com um olhar sombrio que não lhe caía nada bem. Estava
habituado a ver seus olhos determinados, e se havia um cara cujo rosto podia
ser definido como resoluto, esse era Pôncio. Mas o pior de tudo talvez fosse a
relação entre ele e Larissa, que, eles temiam, podia sofrer algum abalo com a
história do assédio a Mônica. – Não acredito, ela disse a Líria, logo no
início; ele não é um homem desse tipo.
Visto no conjunto do pacote,
porém, esse item era mortificante para ela. Teria preferido tudo a essa
acusação, mesmo injusta. Era incômodo, deixaria qualquer mulher constrangida, e
Larissa era uma pessoa naturalmente discreta e um pouco tímida. Mas naquele
momento, achou que devia pensar mais no marido do que em si mesma, e tentava
passar-lhe uma sensação de segurança que na verdade não sentia. Dispôs-se a
testemunhar a favor dele, procurava distraí-lo e propôs uma pequena viagem que
ele deixou em suspenso – quero ficar por perto, saber o que está acontecendo
dia a dia. No fundo, Larissa começava a sofrer de uma dúvida bem mais difícil
de suportar do que os processos e toda aquela chateação com o advogado e as
conversas intermináveis ao telefone, no escritório e até em casa: e se fosse
verdade? Por seu lado, Pôncio se inquietava cada vez mais com a perspectiva de
que ela tomasse conhecimento da tal prova circunstancial de que Mônica falava,
e que só podia ser mais uma fita nessa história. Uma bacia hidrográfica cheia
de afluentes que se multiplicam, como tinha dito o Loredo, com a testa franzida.
Excetuando-se as estrepolias de
Pascal e a lua-de-mel de Líria e Laio, nada parecia acontecer durante as
semanas que antecederam o desfecho da primeira instância. Um processo em geral
demorado, que afinal correu surpreendentemente rápido, o que só se explicaria
pelo envolvimento dos interesses de um senador da república. Pôncio atravessou
o tempo da espera numa espécie de hibernação afetiva que só Larissa conseguia
quebrar de vez em quando e que o protegia – ou reprimia? – da ansiedade
excessiva que ele não queria demonstrar. Laio diagnosticava a aparente
tranquilidade do amigo como autodefesa. – Tem andado como um robô, comentava o
Loredo, que também não esperava o resultado muito tranquilo.
Em parte se confirmaram os maus
prognósticos quanto a Pôncio, embora o resultado tenha sido favorável ao
jornal. Mônica teve sucesso contra o jornalista, considerado culpado dos crimes
de que ela o acusava. – Vamos para a segunda etapa, animava-o o advogado, nada
está perdido. Tenho certeza de que vamos sair bem dessa, a sujeitinha vai ver.
Já encaminhamos seu habeas corpus ad
subjiciendum, cara, não há por que se preocupar. Você não vai pagar por um
crime que não cometeu ou eu não me chamo José Getúlio de Castro Almeida.
Pôncio tinha contado o episódio
todo a Larissa, que o escutou sem interrupções e aparentemente muito serena,
como se estivesse ouvindo uma história de terceiros. Ela não pode ser tão
controlada assim, ele pensava, enquanto descrevia a cena, até que uma espécie
de engasgo o paralisou e os dois se abraçaram. Alguma coisa ali soava como uma
perda. Pôncio queria saber o que a mulher estaria sentindo, mas Larissa parecia
um tanto catatônica e não disse nada. Naquela noite fizeram um amor quase
violento.
— Homens como o Pôncio não podem
pisar em falso, comentava Loredo, em conversa com o Castro, na redação. Não
sabem como agir, não têm a manha. – Coisa rara, disse o Castro, mas há uma
razão séria para isso: eles se reprimem demais e nem têm consciência disso. Acabam
numa espécie de redoma invisível, internalizam de tal forma seus princípios
morais que se tornam prisioneiros de alguma coisa que só depende deles, e quase
sempre o corpo reclama e quer seus direitos. O resultado é que qualquer Mônica
os faz escorregar feio. – Não é fácil, considerava o Loredo, ela é uma mulher e
tanto, vamos reconhecer. Castro espichou os lábios e balançou a cabeça, – se é.
– Mas não acho que Pôncio seja por assim dizer um cara prisioneiro de
escrúpulos. Não é, não. É preciso perceber a diferença entre um cara puritano e
um sujeito de caráter. Ele não tem a manha porque não tem o hábito, não por
falta de, digamos assim, talento para a coisa. Conheço o Pôncio há mais de
trinta anos, nos conhecemos moleques ainda, vizinhos no Grajaú. É temperamento
dele, sempre foi assim. As namoradas que teve se contam nos dedos, e com cada
uma delas ele foi fiel e sincero. – Um santo, disse o Castro, levantando-se e
pegando a pasta. Então o castigo é de todo imerecido. Vamos tratar com carinho
desse caso.
A situação de Pôncio se agravou
na semana seguinte com a notícia do assassinato de Mônica Lessa, no apartamento
do Leblon para onde se mudara menos de um mês antes. Estampadas em todos os
jornais, e logo em algumas revistas, fotos da arquivista morta a tiros na
própria cama, conseguidas por um fotógrafo furão; muitas outras fotos, oficiais
ou flagrantes em festas e boates, fotos de biquíni e desfilando modelos
exclusivos apareciam em praticamente todas as publicações. De um dia para outro
o caso se tornou o assunto do momento e invadiu os noticiários de televisão e
rádio, divulgando detalhes, alguns sem nenhum interesse concreto, apenas porque
o público supostamente queria saber tudo sobre a moça. Uma celebridade póstuma,
como disse o Loredo.
Uma denúncia anônima, vinda pelo
telefone, apontava o jornalista como mandante do crime, e o Castro arregalou os
olhos diante do fato. Isso atrasava o processo e ia criar maiores dificuldades
ainda para provar a inocência de Pôncio, que em certo momento se flagrara como
o inocente, e quase tinha perdido o fôlego com um acesso de riso. – Que foi?
quis saber Loredo, espantado. Foi difícil explicar ao outro o que acontecia em
sua cabeça, porque quanto mais tentava, mais ria.
O riso às vezes é um modo de
liberar um peso que vai se tornando insuportável, como ser considerado um
criminoso e ver tudo meio nublado pela frente, sentir-se ameaçado de sofrer por
alguma coisa que não se cometeu. Há mesmo uma teoria do riso que nada tem de
alegre, e o conceitua como uma espécie de transbordamento do que não se pode
mais conter; a água que se acumula em um balde fatalmente irá transbordar,
quando seu volume ultrapassa as bordas. E a água que transborda e escorre
livremente pelo chão ameaça encharcar o que está pelas redondezas; já não se
compara à contenção de um aquário ou de um lago, capazes de acalmar e dar
prazer a quem os contempla. Um cara que ri descontroladamente desnorteia suas
testemunhas, preocupa os amigos e corre o risco de passar por louco com todas
as consequências desagradáveis que se seguem.
Pôncio não chegaria a esse
extremo, no entanto. Segurou o riso antes que pudesse agravar sua situação. –
Não se preocupem, meninos, disse, enxugando os olhos, foi só um ataque
passageiro. – Já sei o que vou fazer, disse o advogado, batendo em seu ombro.
Você precisa de um bom detetive. – Nós precisamos, corrigiu Loredo. – Sim, como
você preferir. Ligou o celular e se afastou deles alguns passos. Voltou minutos
depois com um sorriso de alegria estampado no rosto meio quadrado, que lhe
havia rendido o apelido de Italiano, nos tempos de faculdade. – Cosme está
chegando, anunciou, triunfante. Ninguém perguntou nada e Pôncio declarou que ia
tomar um café. Loredo foi com ele.
Cosme, o detetive, era um sujeito
magro, moreno, com cara de caboclo nortista; tinha uns olhos rasgados, grandes
e brilhantes de chamar a atenção logo à primeira vista. Havia também o sorriso,
uma iluminação de dentes branquíssimos, que às vezes ele exibia com uma
expressão de alegria interior capaz de impressionar um pouco. Fora esses
pormenores, o cara era econômico com as palavras e falava com voz mansa,
pausada, uma fala descansada como se não pertencesse ao mundo a que devia
pertencer por sua profissão. Pôncio ficou um pouco impressionado com ele, mas
não muito tranquilo. O sujeito lhe pareceu estranho, talvez um excêntrico, e
ele receava perder tempo, num momento em que cada minuto era crucial. Livrar-se
das acusações que agora pesavam sobre si passou a ser uma obsessão, uma aflição
tão grande que lhe tirava a capacidade de trabalhar e concentrar-se em qualquer
outra coisa. Foi preciso um esforço sobre-humano para recuperar o autocontrole.
A primeira reunião com Cosme e o
Castro, na manhã seguinte bem cedo, no entanto, lhe trouxe um pouco de sossego,
ou talvez nem isso, mas de qualquer modo um princípio de tranquilidade. O
detetive era um cara zen, mas não desligado da realidade. Estava atento, bem
informado sobre tudo que dissesse respeito aos fatos e seus raciocínios
pareciam perfeitamente lógicos e bem fundados. Ao fim desse encontro, Pôncio
levava mais fé em Cosme do que no Castro, e o rapaz parecia ter percebido isso.
Passada a primeira semana sem notícias, ele lhe trouxe um relatório que não só
inocentava seu cliente com um álibi imbatível como forneceu material para que o
advogado conseguisse livrar o jornalista da acusação, agora comprovadamente
falsa. Aliviado e mais tranquilo, Pôncio ardia de curiosidade para saber com
certeza de onde partira aquele imbróglio. O que afinal nem foi tão difícil.
Difícil ia ser inocentar da culpa
o mais provável mandante do crime, cujo álibi, além de confuso, era
inconsistente. Os indícios mais evidentes, que Cosme ia descobrindo e
confirmando um a um, encontravam no entanto uma barreira de subterfúgios
capazes de adiar o julgamento e as manobras legais que o dinheiro pode comprar.
— Agora não dá pra sossegar antes
de jogar esse sujeito na cadeia, dissera o jornalista a Loredo. Mas o
redator-chefe se mostrava reticente. – Ele tem vários queijos e muitas facas na
mão – o que lhe soou um tanto enigmático. Não vai ser tão simples como nós
gostaríamos. Mas vamos continuar tentando. Tanto mais que agora abriram uma CPI
para averiguar os atos do ilustre. Pode ser que a maré esteja virando para o
Munhoz. Embora a gente esteja do lado mais fraco, do lado de lá já está bem
desgastado. Pode ser que a Mônica acabe conseguindo a vingança que tanto
queria. – E se não me engano, nunca deixou de querer, completou Pôncio.
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