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Marconolo – nem Marcondes nem
Marcolo – era um homem de ar austero e muito moralista. No momento em que a
reportagem de Pôncio trouxe a público o lado B de Lauro Munhoz e a vida do
jornalista foi envolvida num ciclone, ele perdeu o sono e o sossego. A mensagem
que endereçou ao jornal fora uma encabulada tentativa de repor as coisas em
seus devidos lugares. Não conseguia ver senão a verdade – ou o que lhe parecia
ser a verdade – estampada naquela reportagem de um veículo de grande
circulação, motivo de noticiários um tanto desencontrados e boatos de efeito.
Sabia que ao menos parte da história publicada antes era falsa. Uma joia falsa
muitas vezes faz mais vista que uma verdadeira, guardada no escurinho de um
cofre. Mas além de escrupuloso quanto à verdade dos fatos, Marconolo era também
um homem tímido, que tinha horror à publicidade. Não suportava a ideia de se
expor à vista dos outros, ter sua cara exibida em uma foto ou num vídeo. Ainda
mais naquele contexto perigoso. Suava frio, imaginando as consequências que
poderiam advir de uma declaração sua. A coisa era genética, herança de um pai
professor universitário e tão amedrontado com a vida que literalmente morrera
de medo, durante a ditadura militar, quando o AI5 abriu espaço para que colegas
seus fossem indiciados por incitar os alunos a práticas subversivas. O velho
foi fulminado por um infarto no momento em que recebia a notícia da prisão de
um de seus pares.
Olhando por esse ângulo,
compreende-se que Marconolo suasse e tremesse, só de pensar na hipótese de uma
denúncia contra um senador da república. E a coisa iria até mais longe, caso
viesse a público o que ele sabia sobre um dos depoimentos decisivos de que a
reportagem se valera. Marconolo tivera um cargo de confiança na prefeitura
daquela época. Toda desídia, toda mentira, toda desonestidade lhe eram
repulsivas, e no entanto convivera com essas fraquezas do ser humano durante os
anos em que atuara, a bem dizer de olhos fechados, olhando em outra direção para
não ver o que acontecia diante dele, a consciência torturada e oprimida,
sentindo-se um verme. Deixou o cargo altamente remunerado por puro asco.
Preferiu voltar ao posto antigo de almoxarife de um depósito de materiais, onde
receberia duas vezes menos.
Marconolo porém sabia muito mais.
Sabia também de falsidades ideológicas, tramas envolvendo segredos de alcova e
até do destino de elevadas verbas malversadas. Seu medo era certamente
patológico, mas não deixava de ter algum fundamento, levando-se em conta o que
acontecera com Mônica Lessa, que ele e Lauro Munhoz conheceram ainda muito
jovem.
Enquanto, a pedido de Cosme,
Pôncio fuçava as mensagens dos meses anteriores, sobretudo aquelas das semanas
que precederam a publicação da história do desastre do Rio Comprido, Larissa
remoía ainda a fita da transa com Mônica – aquela devassa sem caráter, que Deus
a tenha – e tentava amenizar a úlcera do marido, que ameaçava ressurgir, anos
depois de ter lhe dado um susto daqueles. – Cheguei a pensar num câncer de
estômago, contava ela a Líria e a Pascal, que a olhava com uma atenção notável
para um gato. Tinha ido buscar os filhos de volta para casa, porque esses
meninos não fazem mais nada senão babar o Pascal, nem estudar direito estudam
mais. Líria sorria, encantada, e Pascal se enroscava em seu braço, meigo, como
se entendesse o drama da amiga de sua mãe adotiva. – Às vezes parece que ele
ri, quando os meninos vêm brincar. Um tanto desconcertada, Larissa sorria
amarelo. – Tenho que voltar, Pôncio não demora e tenho que preparar a dieta
para o jantar. Se deixar por conta dele, não sai do computador e não larga os
noticiários. – Que horror, isso, comentava Líria. A gente vê vocês hoje à
noite. Laio já programara um bom filme, desses que fazem esquecer um pouco as
agruras da vida, e iria com a mulher passar umas horas na casa dos amigos.
Larissa dirigia um pouco
distraída, e Cinho teve que conter um pequeno grito de susto quando um caminhão
de mudanças por pouco não os abalroa num cruzamento onde o sinal acabara de
fechar para eles. A mãe se voltou para o bando de trás, ela mesma assustada, –
e aí, tudo bem? Desculpem, não reparei no sinal, falha nossa. Os dois se
debruçaram no banco da frente. – Mãe, nunca vi você dirigir assim, disse ele,
como um adulto. Paula sorriu e voltou a se encostar no banco. – Você bem que
podia deixar a gente ter um gatinho. Larissa não respondeu, muito atenta ao
sinal e um pouco perturbada por uma inquietação que não saberia explicar nem
eles entenderiam. – É mesmo, mãe, Cinho reforçou, voltando a ser um menino de
onze anos.
Chegaram sem maiores incidentes. Os
dois subiram para o banho e Larissa correu para a cozinha, porque o marido não
tardaria, cansado, abatido e com fome, talvez, embora ultimamente seu apetite
andasse bem fraco. Pode ser que nem só o apetite, Larissa se pegou pensando. O
mal-estar inexplicado continuava a perturbá-la. Tanto que acabava de fazer um
corte no dedo, e ficou olhando o sangue pingar e escorrer como um riachinho
novo pelo granito da bancada.
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