sábado

Mulher escrevendo






Escrever era só a sobra. O que restava depois que o dia ia se cumprindo e ela cumpria seu papel – a casa bem cuidada, as garotas na escola, o almoço bem temperado, a roupa limpa e guardada, não fossem os vizinhos – ou pior, o marido – chamá-la de relaxada. Tinha uma reputação a cuidar. Dias ainda havia para as compras, estantes e tanta coisa por limpar e arrumar. E sempre, sempre os eternos ciscos, migalhas nas bancadas da copa, poeira aqui e ali, a gordura no fogão. Tinha empregada, sim, mas essas empregadas cada dia fazem menos e saem mais cedo, uma lástima: todas relapsas.
E ao fim do dia, os momentos de ócio necessários para azeitar as idéias e deixar fluir certa energia semicósmica – porque em parte vinha era de dentro. Nem sabia se era mesmo energia: era mais concreto, como liberar alguma coisa física, um miniparto. E porque nada ainda estava dito, era então preciso colher palavras, limpar a terra, o sangue, a aura estranha, revirá-las sobre o teclado e plantá-las no monitor entre as outras, em sequência de alguma lógica, às vezes nem isso. Sentir e pesar seu efeito, seu tempo de validade, porque às vezes ficavam murchas, pobres, indigestas ou indigentes de sentido, caso em que nada resolviam de sua necessidade: as palavras são como as cores para o pintor. Há um efeito final a levar em conta que, esse sim, vem de dentro, e é preciso ser-lhe fiel. Então deixava passar um tempo e voltava a elas, as palavras. Assim podia ter uma idéia mais clara do que estariam fazendo ali, corrigir algum rumo sem destino como um piloto em voo. O voo era sempre meio cego.
Havia tardes e noites em que as palavras pareciam fluir tão facilmente, e ela enchia páginas e páginas seguidas, contente, realizada, achando o tempo um sonho. Mas não durava muito e a dor secreta dos dias voltava a se insinuar. A dor era sempre, não cessaria nunca e se expressava de um jeito surdo, devorando as entrelinhas. Chegava de leve, depois aumentava de intensidade e afinal causava um mal-estar que a obrigava a se curvar como quem carrega um peso maior que suas forças. Então às vezes apareciam poemas no monitor.

segunda-feira

Sufoco à italiana






Luiz Ruffato. Mamma, son tanto felice. Rio de Janeiro: Record. (Tomo I da coleção Inferno Provisório.)


Resultado de um trabalho de 15 anos, os cinco volumes da série Inferno Provisório estão agora à disposição dos admiradores desse escritor de mil e um recursos. Ao primeiro título, o incrível Mamma, son tanto felice, seguem-se O mundo inimigo,
Vista parcial da noite, O livro das impossibilidades e Domingos sem Deus.

 O estilo de Ruffato é bem conhecido, desde Eles eram muitos cavalos, seu primeiro livro, versando sobre a cidade de São Paulo, que lhe valeu o prêmio Jabuti. O moço começou como todo escritor gostaria de ter começado. E no seu caso, foi um prêmio merecido.

O primeiro livro dessa coleção deixa a gente em cócegas para conhecer os que vêm depois. É bem significativo o trecho do poeta Jorge de Lima que anuncia como uma epígrafe este romance/narrativa de abertura da série:

Também há as naus que não chegam
mesmo sem ter naufragado:
não porque nunca tivessem
quem as guiasse no mar
ou não tivessem velame
ou leme ou âncora ou vento
ou porque se embebedassem
ou rotas se despregassem,
mas simplesmente porque
já estavam podres no tronco
da árvore de que as tiraram.

Ruffato escreve como quem está vivendo os fatos. Arrasta o leitor para o ambiente da história, cerca-o de seus cenários, e tudo se torna tão real que a própria linguagem fica dispensada de maiores perfeccionismos. Não que ele escreva mal, nada disso. Muito ao contrário: Ruffato domina a linguagem de tal maneira que consegue se comunicar por meio de frases incompletas, sinais fora de lugar, tipologias misturadas. Se no primeiro romance ele se expressava de modo “fragmentário e frenético”,  como se anuncia na orelha de Mamma, essa continua sendo sua estratégia (muito eficaz) para arrastar o leitor e situá-lo no cerne das ações de que trata o livro – ações e acontecimentos capazes de nos afetar como se fôssemos nós mesmos personagens da trama.

É essa narrativa não-linear, tumultuada como a história que (não) narra, mas apresenta os fatos por assim dizer ao vivo, é, mais que um texto, uma espécie de epifania envolvendo o leitor. E quando, chegando ao fim do romance, ou seja lá como se possa caracterizar esse livro sui-generis, tem-se a ilusão de entrar enfim em uma narrativa dotada de sequencialidade, logo se perceberá que não é bem isso o que acontece.